domingo, 2 de outubro de 2016

Ensino Superior: Diversidade ou Hierarquização



Aparece inserido no último Estado da Educação do Conselho Nacional de Educação (http://www.cnedu.pt/content/noticias/CNE/Estado_da_Educacao_2015_versao_digital.pdf), um artigo muito oportuno de Hugo Figueiredo com o título "O sistema de ensino superior português à entrada da idade adulta: diversidade ou hierarquização". Conclui que "O sistema de ensino superior /.../ Deverá igualmente saber agora transformar o potencial científico que tem vindo a acumular em melhorias efetivas de produtividade promovendo, nomeadamente, maior articulação entre instituições de ensino superior e atores externos, sejam empresas ou mesmo outras entidades do setor público e terceiro setor. As estratégias de diversificação, nos moldes que fomos defendendo ao longo deste texto, poderiam ter um papel importante a desempenhar na resposta a ambos os desafios. Por um lado, na promoção de uma massificação de níveis de ensino superior assente em novos perfis de competências, com o potencial de reduzir desencontros de expectativas e gastos desnecessários de recursos. Por outro, na promoção de novos perfis de missão para as instituições de ensino superior, assentes em maior ligação ao meio, que podem em si mesmo ter um papel importante na criação de mecanismos de feedback no reconhecimento do valor dessa diversidade e aumento de procura destas instituições por parte de alunos e empregadores." Mas alerta logo de seguida que "O sistema de ensino superior português é já hoje, contudo, caracterizado por um elevado nível de hierarquização e desigualdade. A questão que se coloca é a de sabermos se esse nos parece um cenário inevitável, em vista dos vários incentivos que existem hoje presentes no sistema, ou se pretendemos promover um cenário alternativo de maior diversidade."
Portugal tem ainda uma desigualdade relativamente elevada em função do nível educativo (Education at a Glance, 2016), apesar de ter vindo a baixar ao longo dos anos.
Esta realidade pode ser vista como um atraso no desenvolvimento social e está muito provavelmente ligada à massificação tardia do nosso ensino superior e ao atraso ainda existente na universalização do secundário. Apesar desta tendência (ver fig. 7 do artigo citado de Hugo Figueiredo),nos anos mais recentes, os diplomados do 2º ciclo do ensino superior estão a segurar bem o seu prémio salarial. A opção do legislador de 2006, ao adotar a designação tradicional de licenciatura associada às antigas profissões (medicina, direito, engenharia, professorado) para o novo primeiro ciclo de 3 anos, pode ter causado alguma confusão que se mantém ainda no mercado de trabalho. O espaço ocupado pela nova licenciatura (de 3 anos) está ainda mal definido. Note-se que Portugal foi o único país europeu onde se optou por esta desvalorização do antigo padrão de educação superior! A França, de onde veio o impulso inicial para o que veio a ser conhecido como processo de Bolonha, manteve as designações anteriores, apenas adotando o termo "master" para o que ainda é apresentado como Bach+5, isto é diploma do secundário com 5 anos de educação superior. Assim conseguiu realizar o objetivo inicial do ministro Claude Allègre (1998) de garantir uma compreensão internacional dos seus graus académicos, especialmente dos concedidos pelas Grandes Écoles. Na Espanha, foi adoptada uma nova designação, simplesmente "grado", para evitar confusão com a antiga licenciatura que era semelhante à portuguesa (de 4 a 6 anos).
Numa interpretação excessiva e ineficaz da liberdade de construção do percurso educativo individual, evitou-se a diferenciação entre as (novas) licenciaturas focadas na continuação de estudos e as que assumem a entrada no mercado de trabalho como primeiro objetivo. Criou-se o conceito de mestrado integrado para as profissões universitárias mais tradicionais (com o Direito auto-excluído),  mas apenas nas universidades mais reconhecidas. Todas as outras licenciaturas universitárias ficam na situação ambígua de aparecerem como terminais com vista ao mercado de trabalho embora se acene quase sempre com o mestrado como complemento relevante. Os antigos bacharelatos politécnicos foram transformados em licenciaturas que se pretendem profissionalizantes pela missão atribuída às instituições mas sem uma etiqueta diferenciadora que as valorize no mercado de trabalho. Ao esconder a diversidade, valoriza-se uma hierarquização que é reforçada pelo peso da história institucional. Chegamos assim a uma diferenciação institucional que é mal compreendida por quase todos (http://www.fc.up.pt/pessoas/jfgomes/documentos/2011+/10ThesisHE(19Out12).pdf) e mal querida por muitos; a licenciaturas que ninguém sabe bem que objetivos assumem, nem estudantes ou famílias, nem  empregadores. E as instituições universitárias ou politécnicas evitam toda a palavra que possa clarificar esta ambiguidade pelo temor de que se estejam a desvalorizar aos olhos dos seus públicos.
Teríamos muito a ganhar se tornássemos muito claro que um diplomado com o secundário pode escolher uma de três vias de educação superior, dependendo da sua urgência de entrada no mercado de trabalho (e da suas preferências mais académicas ou mais vocacionais):
  1. um percurso de cerca de 3 semestres complementado com um 4º semestre de estágio de inserção profissional (TeSP) que o habilita para um posto de trabalho concreto;
  2. um percurso de 6 semestres que pode incluir estágio (Licenciatura Politécnica) que lhe permite a entrada num percurso profissional específico;
  3. um percurso de 10 (a 12) semestres que pode incluir estágio (Mestrado Integrado ou Licenciatura Universitária seguida de Mestrado) que lhe deve permitir a escolha de um percurso profissional.
Teríamos opções claras com a segurança de que o percurso pode ser ajustado em qualquer altura. Neste ponto as nossas instituições falham. Falham no secundário porque um aluno que queira mudar de via tem de o fazer a suas expensas, sem apoio da escola. Falham no superior porque, nem as universidades nem os institutos politécnicos, oferecem apoios à reorientação do percurso educativo nem dão a necessária ajuda para que o estudante possa construir o seu percurso individual com seriedade e sucesso. Em contrapartida, a flexibilidade formal é total e a mudança de percurso é quase sempre autorizada e até facilitada pelas instituições que aspiram a ter mais estudantes. Mudança de percurso sem apoio personalizado significa um alto risco de insucesso ou, e ainda mais pernicioso para o sistema educativo no seu todo, conduz a um facilitismo que mantém as boas estatísticas sem nunca ser evidenciado pelos reguladores. Os danos aparecem mais tarde na frustração do diplomado e no descrédito perante o público.
A disponibilidade de percursos de mais rápida profissionalização oferece também a possibilidade da reorientação profissional de ativos que viram esta utilidade dos TeSP logo no seu primeiro ano de implementação. De facto, um Mestrado deve ser visto como a especialização de um licenciado já profissionalizado (no politécnico) ou como um aprofundamento com eventual componente profissionalizante (no universitário). Seria desvalorizar este segundo ciclo se viesse a ser usado como instrumento de requalificação de ativos sem a especialização ou o aprofundamento esperado de um ciclo de estudos pós-licenciatura.


Na banda esquerda da menor diferenciação salarial (na figura acima) estão alguns países apreciados pelas menores desigualdades sociais. Apesar dos aspetos negativos e até dolorosos do abaixamento progressivo do prémio salarial dos diplomados, isto significa também o caminho para uma menor desigualdade e permite esperar uma melhor aceitação social de diversidade do ensino superior sem que isso seja percebido como uma hierarquização. É também em alguns daqueles países que a diversidade do ensino superior, oferecendo pelo menos os três tipos de percurso descritos acima, é mais bem aceite e está mais bem enraizada. Portugal é conhecido pela forte carga social (será ainda um privilégio?) associado ao uso do título de doutor ou engenheiro. Se a relevância social desta marca era compreensível quando menos de 5% detinham o título, ela é hoje ridícula quando nos aproximamos de 40% para as coortes jovens. O ensino superior manterá o seu mérito social pelo valor da experiência educativa que proporciona. Infelizmente, conhecem-se casos em que a etiqueta é procurada apenas pela marca social, o que tem levado a comportamentos desprestigiantes de algumas instituições de ensino superior.
Tem sido discutido na literatura (http://ejournals.bc.edu/ojs/index.php/ihe/article/view/8580/7712; https://www.brookings.edu/opinions/the-role-of-education-in-the-arab-world-revolutions/) o papel da educação na chamada primavera árabe, a série de protestos e revoluções iniciados em 2010 no norte de África e no Médio Oriente. Podendo haver perspectivas diferentes sobre a relação de causalidade, há acordo sobre algumas consequências do rápido crescimento da oferta educativa, especialmente na área da sua qualidade e relevância. Acresce que a economia não acompanhou a expansão do sistema educativo criando situações de frustração generalizada dos jovens cujas qualificações formais não permitiram construir um percurso profissional digno levando at grandes bolsas de desemprego. Muitos estudos recentes de organismos internacionais chamam a atenção para a necessidade de manter um equilíbrio entre a economia e a educação, especialmente no que diz respeito à expansão da educação superior e da sua relevância para a sociedade onde está integrada.
A manutenção ou até o reforço da diversidade exige que se mantenha um sistema plural mas é necessário que a sua percepção pública seja vista como tal. Historicamente, o subsistema politécnico é muito mais recente e é ignorado frequentemente no discurso público. Isso pode ser um sinal de que é percebido como estando num nível hierárquico diferente do universitário. Ao mesmo tempo, há sinais frequentes de uma deficiente perceção da diferença entre a sua missão e a das universidades. Entre os factores responsáveis por esta realidade poderemos identificar falhas de regulação e inexistência de políticas públicas de desenvolvimento da sua missão diferenciada. Entre as falhas de regulação, deve ser mencionada a falta de instrumentos legais que desenvolvam a sua missão, para além dos textos legais básicos, nomeadamente a Lei de Bases da Educação e o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES). Se a missão de criação de conhecimento nas universidades se tem desenvolvido em função das políticas científicas desenvolvidas pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), nunca existiu uma política diferenciada para o sistema politécnico. Não é fácil porque não há padrões internacionalmente aceites do que seja a excelência na investigação aplicada ou orientada ou das "atividades de investigação científica e desenvolvimento tecnológico (IC&DT) baseadas na prática e orientadas para a inovação nos setores produtivo e social", na formulação do recente concurso aberto pela FCT para "Projetos de Investigação Científica e Desenvolvimento Tecnológico em Institutos e Escolas Politécnicas". E não está garantido que esta dificuldade se resolva com a definição proposta, "Por atividades de I&D baseadas na prática entende-se investigação e desenvolvimento original que procura gerar novos conhecimentos através de uma prática, intervenção ou ação. Incluem-se as metodologias habitualmente designadas como action research, reflective practice, problem based learning e outras relacionadas com a aprendizagem baseada na participação." Será interessante ver como os painéis de avaliação vão interpretar estes objetivos, que ênfase vai ser dada à faceta didática e de desenvolvimento profissional associados a estes termos. Em Portugal, os docentes do ensino politécnico têm sido sempre incentivados a concorrer a projetos de investigação da FCT em competição com os docentes universitários e outros investigadores e são muitas vezes avaliados pelo sucesso na criação e transferência de novo conhecimento. Na generalidade dos países europeus e da América do Norte, os docentes das instituições de ensino superior não universitárias não têm mandato de investigação neste sentido da criação de novo conhecimento pelo que não é ainda claro que objetivo está a ser proposto agora em Portugal a estes docentes com uma carreira docente muito semelhante à universitária.



1 comentário:

  1. Caro Prof. Ferreira Gomes,

    Obrigado pela referência ao artigo. Partilhamos em grande medida a visão de que o sistema de ensino superior como um todo é hoje atravessado por um grau de incoerência institucional suficiente para pôr em causa o objetivo de diversificação. E que esta incoerência resulta em perdas de eficiência agregada importantes associadas à necessidade de sinalizar mais do que acumular realmente competências. É essa, de facto, uma das principais mensagens do artigo. E partilho também consigo a ideia de que seria proveitoso tornar o sistema mais coerente em torno das três grandes vias que refere. Essa coerência, contudo, só será total quando for integrada a dimensão de procura de diplomados, quando existir também uma procura suficientemente diversificada por parte dos empregadores para cada uma dessas três vias. Parece-me que conseguir essa diversificação depende contudo de criar também uma maior diversidade de missões de investigação e ligação ao meio de diferentes instituições de ensino superior que permita esse reconhecimento de valor por parte do meio. Aqui também me parece que o sistema não o faz, exigindo aliás "tudo e o mesmo" a todas as instituições. O ponto em que tenho mais dúvidas, e aí que podemos não estar totalmente de acordo, é se a divisão binária pode hoje ser ainda útil (no nosso contexto) para promover essa diferenciação. Não sei se não estaremos num ponto de não retorno e se o forçar da separação binária não será mais destruidora de recursos de ligação ao meio já acumulados por todas as IES. De qualquer forma, o que me parece essencial é que existam os instrumentos para que as missões das IES também se diversifiquem e que permitam também a diversificação de carreiras dentro das próprias IES. Só assim será possível criar dinâmica de procura suficientemente diversificada para garantir mecanismos de feedback de procura para essas três vias (e aliás para formações avançadas). O tema é fascinante de facto!

    Hugo Figueiredo

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