sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Ciência e Ensino Superior: porque voto contra o OE



Para universidades e politécnicos, já sabemos que haverá uma redução efetiva porque nem toda a despesa adicional gerada pelo governo virá a ser paga em dotação de orçamento de estado. Na Ciência já não se consegue esconder o descalabro. Cativações (reais) crescentes nos últimos anos tiram credibilidade à dotação que nos é agora apresentada para 2019 na FCT. O plano é duplicar o custo do ensino superior (com pessoal de investigação) sem curar de melhorar o ensino nem o impacto desta despesa na economia portuguesa? Tenho de votar contra o OE2019!

Porque votaria contra um orçamento que, segundo consta, dá tudo a todos. Não haverá grupo de interesses que não tenha sido atendido. O ensino superior não foi! Precisará de algum dinheiro, mas não é com dinheiro que se melhora o nosso serviço de educação, nem o básico e secundário nem o superior. Ao superior, este governo não quis oferecer dinheiro e também não criou o enquadramento necessário para a melhoria.
As dotações para as instituições de ensino superior do estado sofreram cortes sucessivos desde o princípio deste século. Nuns anos porque a pressão orçamental era fortíssima e não poderiam ser exceção; noutros porque os governos entenderam que o retorno político das dotações para a ciência é melhor do que o das que são encaminhadas para as universidades e os institutos politécnicos. Retrospetivamente, teremos de concordar que as dotações eram folgadas no século passado quando havia grande pressão estudantil para aumentar o número de vagas. A realidade mudou quando a procura estudantil estabilizou e o crescimento económico estancou. Mas é incompreensível que a folga temporária de que goza agora este governo não seja encaminhada para garantir a consolidação da qualidade, das instalações e da equidade no acesso ao nosso ensino superior. A afirmação do relatório do OE de que este consagra o reforço da estratégia em curso para a modernização, qualificação e diversificação do ensino superior é puramente retórica e, como frequentemente acontece em declarações políticas, pretende esconder uma realidade oposta. Apesar dos anúncios repetidos, nada foi feito no sentido declarado e algumas medidas são contrárias à modernização e à diversificação, tornando ainda mais incompreensíveis as diferenças entre as ofertas educativas existentes.
Não é possível discutir os eventuais aumentos do orçamento porque não conhecemos ainda as cativações de 2018 e não podemos prever o que acontecerá em 2019. Para universidades e politécnicos, já sabemos que haverá uma redução efetiva porque nem toda a despesa adicional gerada pelo governo virá a ser paga em dotação de orçamento de estado. Para a FCT, é mais incerto, mas a realidade tem ficado longe das promessas. Pelos dados publicados pela FCT, na vigência deste governo a execução ficou sempre aquém da conseguida nos “anos negros da troica” e muito aquém do orçamentado. Esta má prática tem vindo a acentuar-se ao longo desta legislatura e não sabemos até onde chegará em 2019, no meio ano depois das eleições. O outro fator que falseia os orçamentos é o mau hábito de atrasar pagamentos ou de levar despesa diretamente à conta de dívida pública. Do lado da FCT, nunca é apresentada uma conta de dívida às instituições e de compromissos plurianuais assumidos com nacionais ou internacionais. Do lado das universidades e institutos politécnicos, sabemos que há um número crescente a usar os saldos transitados de anos anteriores, antes de serem autorizados a recorrer ao fundo criado pela cativação efetiva de 0,25% sobre a dotação de todas as instituições de ensino superior.
Não sendo possível analisar a situação real de cada árvore, é contudo possível ver a floresta e os enormes desafios que enfrenta. Portugal tem ainda um bom sistema de ensino superior, mas de afirmação tardia e ainda pouco diferenciado. A definição de rácios docente: discente no início da década de 1990 estimulou o rápido crescimento de universidades e institutos politécnicos para assim responder ao surto da procura ocorrido na década de 1986-96. Mas este estímulo sobrevive ainda na mente de todos, passados 20 anos em que outros estímulos à consolidação seriam mais necessários. Não existem ainda. O financiamento “por fórmula” exigido pela lei de 2005 nunca foi aplicado e o modelo de financiamento consensualizado em 2015 foi ignorado por este governo. A alternativa preferida é da gestão quotidiana de um caos sem objetivos nem estímulos à boa gestão. As instituições mais sólidas são acusadas de terem saldos, mesmo que amealhados a custo para acudir a necessidades de investimento bem identificadas. As instituições mais frágeis são estimuladas a esgotar os saldos com a garantia de que o governo lhes dará proteção desde que se saibam comportar... Com a enorme vantagem política de que estes défices não aparecem no défice da conta geral do estado (embora acabem na dívida pública).
O nosso ensino superior não pode manter a sua qualidade com o efeito conjugado das medidas de aumento dos custos do pessoal e de aperto nas dotações. As instituições de ensino superior conseguiram ajustar-se às reduções progressivas dos últimos 20 anos à custa de alguma redução de pessoal docente, substituído em parte por investigadores pós-doc e estudantes de doutoramento, seguindo as melhores práticas de universidades de investigação estrangeiras. E toda a manutenção de edifícios foi adiada. Infelizmente, também foi reduzido o tempo de contacto, mesmo em situações em que a fragilidade (e pouca autonomia) dos estudantes não o recomendariam. E lembremos que vários países foram por este caminho e os resultados foram muito maus.
Depois de um longo período de emagrecimento, o financiamento terá de ser reposto com um modelo transparente que exija um bom ensino, que premeie o melhor desempenho na investigação e na transferência de conhecimento para benefício do país. Não é isso que promete o OE 2019! Bons e maus terão o mesmo financiamento e este será aferido por aquilo que recebiam há 20 anos, independentemente do que tenham feito no entretanto. Injusto. Negativo pelos incentivos perversos que semeia.  É uma oportunidade perdida. Não se aproveitando a pequena margem oferecida pelo crescimento (ainda que anémico por comparação com os nossos competidores europeus), corremos o risco de ter de enfrentar um novo período de dificuldades sem a casa arrumada.
Na Ciência já não se consegue esconder o descalabro. Cativações (reais) crescentes nos últimos anos tiram credibilidade à dotação que nos é agora apresentada para 2019 na FCT. Mesmo sem cativações seria provavelmente insuficiente para todos os lóbis. Para as universidades americanas entreabrirem as portas a alguns portugueses (que depois podem ficar por lá...) e os melhores já teriam as portas mais do que abertas. Um Azores International Research Center para que, surpreendentemente, foram chamar a China ao mais alto nível e com o máximo impacto político internacional e que agora se reconverte na tentativa de um “porto espacial” comercial em que o concurso internacional tem o “apoio técnico”, só este, da Agência Espacial Europeia. Sonhos caros realidades fugidias. Compromissos de pagamento de 5000 contratos de investigadores... Como este número corresponde a metade dos doutoramentos terminados na legislatura, outra onda similar se esperará para uma próxima legislatura. O custo será de 250 M€ anuais agora para duplicar na próxima legislatura e atingir mais de mil milhões anuais antes de entrar em estado estacionário. É este o plano governamental? Duplicar o custo do ensino superior (com pessoal de investigação) sem curar de melhorar o ensino nem o impacto desta despesa na economia portuguesa? Tenho de votar contra o OE2019!
Publicado em Observador, 26/out/2018

Nota: De acordo com os relatórios de atividades da FCT já publicados, a despesa executada pela FCT tem vindo a diminuir desde 2013, apesar de os orçamentos crescerem.

domingo, 21 de outubro de 2018

Porque não houve remodelação na educação, no ensino superior e na ciência!


Confirmamos agora que o Senhor Primeiro Ministro se sente confortável com o trabalho feito pelos ministros da educação e da ciência e ensino superior. Assume plenamente a sua falta de orientação estratégica para construir um futuro melhor para os portugueses.
Na educação, este governo conseguiu encontrar uma frente de batalha com os sindicatos depois do “grande êxito” da extinção dos contratos de associação e dos exames de fim de ciclo. Seriam estes os problemas do nosso sistema de ensino? Estaria aqui a causa do nosso abandono precoce cuja queda foi mantida no período mais difícil, mas já perdeu gás no último ano? Seria esta a razão para temos ainda tantos jovens que não terminam o ensino secundário? Em 2017, terminaram o secundário 75 615 alunos de uma coorte de perto de 120 000! Este é um escândalo que devia polarizar a atenção do ministério e justificaria bem a demissão de um ministro que não reconhece sequer o problema. Não é esta a visão de António Costa.
No ensino superior muitas universidades e institutos politécnicos pagam salários com os saldos acumulados nos anos anteriores e este subfinanciamento (défice encoberto) agrava-se com a imposição de nova despesa sem que o compromisso de compensação seja respeitado. O Programa + Superior lançado em 2015 não foi reforçado no sentido de atrair mais estudantes às 15 instituições do interior (de Viana do Castelo a Faro) em maior dificuldade por razões demográficas. As vagas criadas em todas as universidades e institutos politécnicos terão de ser ajustadas nos próximos anos, à medida que começa a fazer-se sentir a queda demográfica que vai dos 120 000 nascimentos que tivemos há 18 anos para os 88 150 registados em 2017. Mas a redução de 5% imposta este ano às instituições de Lisboa e Porto não foi desenhada para reforçar as áreas despovoadas, como já se confirmou pelos resultados do concurso de acesso onde os ganhadores estão no litoral (para além dos privados das duas áreas metropolitanas). Será esta a visão de António Costa?
A quebra de investimento público a que fomos forçados nos termos do pedido de ajuda externa de 2011 foi ainda agravada nos últimos anos com efeitos gravosos no ensino superior: falta de manutenção, em especial de residências que fecharam por falta de condições para receber estudantes. Agora anuncia-se um programa de reforço da oferta de residências universitárias. Ainda está apenas no “powerpoint”, mas já se percebeu que, além de insuficiente, será totalmente financiado por dívida pública escondida dentro da Estamo, Participações Imobiliárias S.A., a empresa para onde foram transferidos muitos edifícios públicos para permitir este tipo de operações...
Em Fevereiro de 2016 foram anunciados com grande pompa novos “Princípios de Orientação para uma nova Ação de Política Pública”, “Um Programa de Modernização e Valorização dos Institutos Politécnicos”. A grande inovação seria a intenção de “Incentivar atividades de investigação e desenvolvimento (I&D) baseadas na experiência (i.e., experience or practice based research), claramente orientadas para a inovação no setor produtivo, social ou artístico”. Apesar da despesa já comprometida, não se conhece nenhum progresso nesta nova “experience or practice based research” e a avaliação das unidades financiadas pela FCT está a ser feita ignorando completamente esta interpretação da “investigação orientada e desenvolvimento experimental” que estavam previstos no RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior). Pelo contrário, a boa intenção de clarificar estes conceitos e de abrir caminho ao aprofundamento da missão dos institutos politécnicos parece ter-se perdido completamente. Qual será afinal a visão de futuro de António Costa?
Na área da ciência a confusão é total com uma impressionante capacidade de disparar com promessas de despesa futura em todas as direções. Uma FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia) sem uma apropriada estrutura nem o mínimo de autonomia normalmente esperada de uma agência de financiamento europeia, não passa de uma escrava do governo. Procura encobrir a incapacidade de planeamento e os compromissos conflituantes que são assumidos sem a devida cabimentação orçamental, nem mesmo daqueles com impacto plurianual. No último relatório publicado (relativo a 2016) dá-se nota de que a FCT não conseguiu (ou não foi autorizada a) ultrapassar a execução de 75% do orçamento disponível. Curiosamente, desde 2014 que o orçamento tem vindo a crescer, mas a despesa paga tem diminuído. (E note-se que 2015 foi encerrado por este Governo adiando a homologação de vários concursos da FCT.)
FCT
Despesa orçamentada
Despesa paga
2014
447 M€
404 M€
2015
480 M€
383 M€
2016
502 M€
378 M€
O sistema científico com base nas instituições de ensino superior domina a atividade e a despesa. As sucessivas promessas de novos de contratos animam os recém doutorados a não se afastarem da academia onde sempre poderá surgir uma oportunidade, não se sabe quando nem como, não se sabe com que critérios, não se sabe com que escala de vencimentos. Pelas últimas estimativas, teremos 5% dos doutorados fora do sistema público, mas a maioria destes será ainda financiada com dinheiro público. Não parece ser um problema a encarar de frente. Anuncia-se a contratação de 5000 doutorados durante esta legislatura. Mas com uma produção anual que tem chegado a 2500 novos doutorados, aquela bravata resolve metade do “problema” criado durante a legislatura!
Para simples comparação, notemos que o CSIC espanhol (Consejo Superior de Investigaciones Científicas), a maior instituição espanhola de investigação e a terceira europeia, tem 3531 cientistas (doutorados em 2017). Com 5000 investigadores contratados a cargo da FCT, vamos ultrapassar o CSIC, mas sem qualquer estratégia de gestão de objetivos. Será esta a melhor maneira de servir as universidades, os institutos politécnicos e o país? Poderemos duvidar, mas António Costa concorda.
O sistema científico não sobrevive a esta tentativa de manter tudo como dantes. Avaliações das unidades de investigação que ninguém aceitaria na Europa e que não produzem efeitos sobre quem vai contratar as peças chave do futuro, os investigadores e os docentes do ensino superior. O modelo de uma agência de financiamento, a FCT, que alimenta a investigação no ensino superior em todas as áreas e com todos os objetivos, livre de prioridades e de objetivos estratégicos para a economia e a sociedade, foi útil no passado, mas não é sustentável neste novo século. É tempo de os portugueses pedirem o retorno do investimento que tem sido feito ao longo dos últimos decénios.
É um erro grave obrigar as universidades a contratar investigadores à revelia dos seus órgãos próprios e em grave incumprimento dos princípios básicos de sã competição. Uma lei que, além de inconstitucional, dá um péssimo exemplo às corporações docentes, incentivando o seu fechamento com concursos à medida. Eticamente reprovável e muito prejudicial para o futuro do sistema. Mas o problema é maior. Haverá agora boas razões para estabilizar um sistema alargado de investigação que ultrapasse a dimensão do ensino superior? Sendo o caso, é preciso ter a coragem de desenhar um novo sistema científico, mas já sabemos que reformas sérias não estão entre os objetivos deste governo. Precisamos de um governo com coragem para desenvolver uma nova visão do sistema.
Mas não será um governo de António Costa que se mostra confortável com o desastre da atual gestão política da educação, do ensino superior e da ciência. Na educação, temos de chegar aos mais frágeis ainda excluídos do sistema e mostrar aos mais ambiciosos que não têm de sair do sistema público para encontrar o desafio que merecem. No ensino superior, temos de consolidar uma oferta mais diversa que satisfaça os objetivos muitos diferentes dos 50% da população jovem que o procuram e que responda às necessidades sociais de qualificação superior. Na ciência, terminou já o período de crescimento inorgânico e temos de redesenhar o sistema para responder às necessidades dos portugueses.

José Ferreira Gomes
In: Observador, 21 OUT2018