domingo, 30 de outubro de 2022

Autonomia e governo das escolas

A autonomia das escolas é discutida entre nós há longos anos. Quase todos estão de acordo que é hoje impossível gerir e controlar desde Lisboa todas as escolas, estudantes, docentes e funcionários e ainda edifícios e ambiente circundante em todo o país. Impossível hoje porque se exige um melhor desempenho de todas os parceiros. A iniciativa livre e voluntária e, por natureza, muito diversa de docentes e de parceiros externos já não é tão bem aceite como no passado. Pretende-se uma escola mais homogénea que pareça oferecer o mesmo serviço educativo e com a mesma qualidade em todo o país. Pretende-se que todos os alunos sejam levados ao seu máximo potencial. Pretende-se que todos os possíveis candidatos a professor tenham a mesma oportunidade de acesso ao posto de trabalho e à profissão, quaisquer que sejam as suas condições pessoais e a sua história profissional em todas as escolas do país.
A função de professor foi desprofissionalizada e os antigos valores individuais do professor são agora geridos por sindicatos que serão tão fortes quanto mais igualitarismo e gestão centralizada distante for conseguida. O absentismo é difícil de analisar no impacto na aprendizagem do aluno, preferindo-se ver apenas o direito contratual do docente e aceitar passivamente a impossibilidade de encontrar uma alternativa flexível em cada manhã que se verifica a falta. Como sempre o aluno celebra o “furo” no horário e assegura-se de que não haja consequências visíveis nas classificações no final do ano. Uma nova tentativa de descentralização é agora discutida e está a ser aplicada com a controvérsia que sempre acompanha estas decisões. Será a mais eficaz para a melhoria das aprendizagens dos estudantes e a mais eficiente para a difícil realidade económica nacional?
O que significa descentralizar
A OCDE [1] lembra que a autonomia escolar pode significar coisas muito diferentes. Se o decisor político valoriza a capacidade de responder às necessidades próprias de cada local, professores e diretores valorizam o maior controlo sobre a gestão e a direção pedagógica. Os pais poderão esperar maior poder de intervenção nas decisões da escola. Todas estas expectativas são razoáveis, mas há um acordo generalizado em que os sistemas educativos precisam sempre de uma supervisão estratégica para fixar objetivos e padrões de avaliação dos resultados conseguidos por cada escola. A simples transferência de poder para as escolas (ou para entidades regionais) pode ter o efeito perverso de criar grandes desigualdades como se verificou na experiência sueca. Quando o Marquês de Pombal criou a primeira rede estatal de escolas para ultrapassar as terríveis consequências do encerramento da única rede existente que dependia da Companhia de Jesus, imaginou um sistema monolítico. Tinham já passado 12 longos anos desde que a Companhia fora expulsa em 1759 e foi muito difícil encontrar professores e até alunos, e a qualidade das novas escolas era muito variável, frequentemente muito deficiente pela inexistência de um professor minimamente habilitado para a leitura, a escrita e a aritmética. Já nem se procurava a habilitação para a arte de ensinar. Esse mesmo choque político baixou, naturalmente, o número de estudantes universitários de cerca de 4500 para não mais de 500. As guerras napoleónicas, seguidas da guerra civil agravaram ainda mais a situação. Quando a Regeneração liberal se instalou tentou criar instituições de ensino a todos os níveis, mas a sua ideologia orientou-se sempre para os “melhoramentos materiais” e muito pouco para a educação. A República surgiu com uma ideologia diferente, mas não teve tempo nem meios para alterar uma situação que era catastrófica porque o país não tinha acompanhado a universalização da alfabetização feita na maioria dos países europeus ao longo do século XIX. O Estado Novo oferece uma ideologia de desvalorização da educação, mas mantém uma expansão da alfabetização até à cobertura quase universal pelo fim da década de 1950 e inicia a universalização do que é hoje o 2º ciclo do ensino básico já no seu estertor final. O ensino universitário cresce ao longo de todo o século XX a um ritmo de cerca de 6% ao ano e um impulso final por volta de 1985 permite a ultrapassagem de alguns países vizinhos. No entretanto, também se expande o ensino secundário, mas mantém-se um grande abandono precoce que só é vencido pelas vias profissionais que são introduzidas a partir do início do século XXI. Estatisticamente, estamos hoje com indicadores educativos comparáveis aos dos países desenvolvidos, embora arrastemos o atraso da população menos jovem (e de uma população imigrada de baixas qualificações).
A universalização dos sistemas escolares foi feita em regimes bastante centralizados porque se pretendia criar um novo cidadão nacional em muitos países saídos das convulsões políticas que criaram os novos estados-nação. Também no ensino superior, os sistemas europeus continentais formados no século XIX eram controlados a partir do aparelho central do estado como qualquer outro serviço público. A realidade variava muito conforme as condições concretas de cada país, desde a hierarquia burocrática francesa até à autonomia de cátedra alemã ou ao financiamento público de todas as instituições, estatais ou privadas, como na Bélgica.
Os Países Baixos fizeram a primeira grande experiência de devolução da autonomia de gestão às suas universidades em 1972, mas esta foi sendo limitada a partir de 1985, havendo hoje em cada universidade a presença de um Conselho de Supervisão nomeado diretamente pelo governo. Em Portugal, a autonomia de governo das universidades foi estabelecida em 1977 como meio de estabilizar a vida corrente das instituições muito afetada pelo ambiente pós-revolução. Esta autonomia assumiu-se como prerrogativa constitucional (como também em Espanha pela mesma época) e veio a ser regulada por lei de 1982.
A descentralização em Portugal
As escolas portuguesas mantêm até hoje a dependência hierárquica do Governo e a descentralização pretendida irá afetar a gestão do edificado e do pessoal auxiliar que passará para os municípios. Esta solução é muito limitada para que produza efeitos reais na aprendizagem dos estudantes com a consequência de que o sistema poderá continuar a perder alunos para as escolas privadas, apesar de estas não beneficiarem de qualquer ajuda estatal. Os municípios, com a exceção das grandes zonas urbanas, não têm uma dimensão suficiente para estabelecerem os mecanismos de gestão e controlo e cairão provavelmente na tentação de tratarem as escolas como mais uma “empresa pública municipal” para gerir por influência partidária e criar emprego politicamente alinhado.
O Programa do Governo atual dá um espaço considerável à “autonomia das escolas, descentralização e desburocratização”. Propõe-se “reforçar a autonomia curricular e organizativa das escolas” e “pilotar experiências de autonomia administrativa e financeira”. Diz ainda querer “assegurar a autonomia pedagógica das escolas e o cumprimento de alívio de tarefas administrativas”. No que diz respeito a resultados, congratula-se com a superação das metas europeias de abandono escolar precoce com “uma melhoria notável dos resultados escolares” medidos pela redução das taxas de retenção e desistência no ensino básico e o aumento das conclusões do ensino secundário. A autonomia escolar é um objetivo a perseguir, mas com uma avaliação dos riscos e com medidas de acompanhamento que mantenham um certo grau de homogeneidade no sistema e aponte objetivos concretos de curto e de médio prazo para cada escola e para cada responsável local ou regional. É geralmente reconhecida a fragilidade da nossa sociedade civil. Isto significa que a generalidade dos cidadãos não se sente motivada para a participação em associações não lucrativas. Talvez mais grave, é frequente o reconhecimento de que algumas destas associações se desviam dos seus objetivos formais sem que os detentores dos seus órgãos sociais sejam efetivamente responsabilizados pela sociedade. Um exemplo disso no âmbito escolar foi a dissolução de muitos conselhos gerais de escola aquando da constituição de agrupamentos em que não ocorreu a ninguém a obrigação, ou, ao menos, a delicadeza, de dar uma palavra de justificação aos seus membros externos. Ou, genericamente, a facilidade com que é aceite a desculpa de desconhecimento da vida da instituição quando algum membro de um órgão social é inquirido sobre alguma aparente má prática da instituição ou da sua direção.
Se quase todos parece concordarem hoje em que Lisboa não tem capacidade para microgerir todas as escolas no país, as alternativas também não entusiasmam. A única alternativa democrática é transferir competências do governo nacional para os municípios (embora ainda possa haver mesmo a tentação de dar algum poder à freguesia). Formalmente, esta é a única alternativa de poder eleito e democraticamente escrutinado, pelo menos na aparência. Na realidade é bem sabido que a fiscalização política é muito deficiente, especialmente fora dos grandes municípios urbanos. Se mesmo a nível nacional há dificuldade em manter a independência financeira dos meios de comunicação social, a nível local isso não é sequer tentado. A dependência de subsídios diretos ou indiretos das autarquias locais é total. Por isso se compreende que o sucesso de um presidente de câmara possa ser medido pelo número de freguesias que mudam para o seu partido e, quando o sucesso é total e todas as juntas de freguesia estão alinhadas com o seu partido já pode aspirar um lugar na política nacional. Se esta é a lógica política local praticada universalmente, poderemos esperar um resultado diferente quando se transfira a gestão escolar para o nível local?
Outras experiências
Num relatório publicado em dezembro de 2021, o Tribunal de Contas francês[2] constata que a despesa francesa com a educação é superior à média da OCDE e que 40% dos alunos que terminam o primário (de 6 anos) não possuem os conhecimentos fundamentais de matemática e de leitura que lhes permitiria seguir em boas condições um percurso no secundário. E que 12% dos alunos saíram do secundário sem um diploma, uma realidade assustadora para o equilíbrio social futuro. O Tribunal liga estes resultados medíocres com o centralismo da gestão do sistema escolar, propondo maior autonomia às escolas, sem esquecer a competência do diretor para recrutar a sua equipa de professores. O governo reagiu de imediato com a criação de uma experiência piloto de autonomia em 50 escolas da região de Marselha, mas não faltou uma forte reação sindical.
Se em França, um sistema nacional de educação básica teve de ser criado por Napoleão para preencher o vazio deixado pela Revolução, em Inglaterra só no início do século XX foram dados os primeiros passos com a dotação de poderes aos Local Councils que ficavam obrigados a criar Local Education Authorities (LEA). A maior transformação veio muito mais tarde, já durante a 2ª Guerra, quando se preparou a reorganização da sociedade do pós-Guerra. A mediana da população dos condados ingleses que elegem a sua LEA é de mais de 900 mil habitantes. Apesar da relativa proximidade entre esta Autoridade e as escolas, a escola e o professor mantiveram uma grande autonomia curricular sem qualquer interferência governamental. Esta realidade alterou-se no último meio século em que a preocupação com a demonstração de resultados e com a verificação dos procedimentos tornou algumas agências governamentais muito mais intrusivas e a autonomia profissional do professor muito reduzida. Desde 2000, tem havido um movimento no sentido de transferir algumas escolas de uma LEA para um estatuto de maior autonomia e responsabilização, denominado Academy e até é possível que uma escola com baixo desempenho seja forçada a seguir este caminho.
O modelo sueco de competição entre escolas dependentes dos municípios (com 30 mil habitantes, em média) tem sido criticado pela desigualdade que permitiu ou até estimulou. A OCDE assinala[3] a falta uma estratégia nacional de melhoria que integre todas as escolas dentro da sua autonomia e dependência local.
A discussão sobre a autonomia das escolas é relativamente recente e varia com a história e tradição de cada país. Seja na França napoleónica de 1802, seja no Portugal liberal de 1834, os liceus são criados para substituir um sistema disperso que fora abolido com a extinção das congregações religiosas e procurava responder à necessidade de moldar o novo cidadão. Menos em Portugal onde não havia uma questão de estado-nação e, também por isso, a educação nunca foi uma prioridade da monarquia constitucional, ao contrário do que acontecia na generalidade dos países do continente. Os sistemas de ensino eram centralizados na definição do currículo, mas o professor foi criando o seu espaço de afirmação como profissional com grande autonomia no exercício do seu ensino. Mais ainda na escola primária, hoje primeiro ciclo, onde a dispersão das escolas por todo o território deixava cada professor entregue a si próprio com uma tutela muito distante. A mudança no último meio século foi muito marcada pela difusão de sistemas de controlo da atividade de cada professor. Reflexo das tendências da Nova Gestão Pública, os sistemas escolares evoluíram no sentido da desprofissionalização do professor que passou a ser uma peça de uma engrenagem cuja eficácia é acompanhada desde um centro de comando. O professor perde o prestígio do seu exercício bastante autónomo para ser acompanhado de perto e ter de manter registos de todas as suas atividades. Em muitos casos, perde-se até a atenção ao resultado final da aprendizagem dos alunos preferindo-se manter um controlo muito apertado do processo.
Faltam professores
Tradicionalmente, um médico era avaliado pela satisfação dos seus doentes que geravam uma métrica implícita de prestígio que se difundia pelo boca-a-boca. O mesmo se poderá dizer de um advogado ou de um engenheiro. Quando estes profissionais liberais são imersos numa burocracia de estado, perde-se a responsabilidade individual pelos resultados para assegurar apenas que os procedimentos seguem normas pré-estabelecidas. Entram em ação processos de avaliação de qualidade que incidem sobre os processos e raramente sobre os resultados. O exercício profissional assume um formato defensivo em que tem de haver toda a atenção à documentação do processo para poder assegurar que se conformou com a “boa prática” estabelecida. Perde-se autonomia no exercício profissional, mas assegura-se que todos se conformam com as regras e que ninguém pode ser penalizado pelos maus resultados se cumprir estas regras. O processo burocrático que permite manter o registo de todos os procedimentos está omnipresente e muitos profissionais habituados a seguir livremente a sua melhor avaliação de cada situação concreta sofrem a despersonalização para se sentirem como mais um operário numa vasta engrenagem estatal. Assim chegamos a uma realidade em que estes ex-profissionais se queixam da sua situação e se focam no nível remuneratório quando este é apenas um dos aspetos e nem sempre o principal. Poderá estar aqui a explicação da falta de professores em Portugal, apesar dos salários serem elevados[4] em comparação com a média nacional dos trabalhadores com perfil educativo comparável. Na comparação internacional dos valores salariais em paridade de poder de compra[5], os portugueses estão ligeiramente abaixo da média. O salário de entrada na carreira é muito próximo da média nacional (para todas as idades) dos trabalhadores com ensino superior, acima, em termos relativos, da realidade na maioria dos países da OCDE. No topo da carreira a distância para a média nacional só é ultrapassada pela Colômbia e o Luxemburgo. Note-se, contudo, que o tempo médio para chegar ao topo da carreira é bastante longo. Curiosamente, na Finlândia, um país frequentemente apontando como boa referência, toda a carreira tem salários relativamente baixos.
Figura 1.Valores relativos dos salários dos professores em relação aos trabalhadores com ensino superior.
Descentralizar em Portugal
Em Portugal, anuncia-se a descentralização para os municípios das funções menores de gestão dos edifícios e do pessoal auxiliar. As escolas (ou os seus agrupamentos) têm conselhos gerais com poder muito limitado e bastante controlados pelos interesses internos da corporação docente. A contratação dos professores mantém-se centralizada, apenas se passando para um nível local os casos de carências mais urgentes. No acesso ao ensino superior, as profissões docentes são quase sempre últimas escolhas e os requisitos de entrada são dos mais baixas de todos os cursos. A falta de professores é um problema anunciado há décadas, mas deixou-se arrastar até a situação ser verdadeiramente aguda e o único caminho parece ser agora abrir a entrada na profissão a pessoas que nem sequer têm a frágil formação superior que até agora era exigida. Voltamos à situação de emergência do terceiro quartil do século passado em que a explosão da procura criou este tipo de problema e se teve de improvisar este tipo de soluções.
Na procura das funções docentes, é difícil explicar a situação aguda a que chegamos. Os salários são baixos, mas não em comparação com as alternativas que um jovem com o mesmo perfil académico poderá esperar em Portugal. Muitos professores confessam que ainda adoram a função que desempenham dentro da sua sala de aula, mas que se torna cada vez mais desagradável toda a burocracia a que são obrigados depois de sair da aula. Há problemas de disciplina dentro da escola (embora a situação seja, possivelmente, pior noutros países europeus). Em Portugal, a recente universalização da escola até aos 18 anos não foi acompanhada da diversidade de oferta que será necessária. É um problema ignorado no espaço público, mas poderá ser urgente oferecer algumas formas de ensino dual em que o jovem ganhe uma primeira experiência do posto de trabalho real, sabendo-se que este tipo de via formativa é abraçada com entusiasmo por muitos alunos com dificuldade de adaptação à sala de aula convencional. A função docente é pouco atrativa para um jovem adolescente, também pelo desprestígio social que se foi acumulando sobre os seus professores e o discurso público sempre muito negativo que esse jovem terá visto nos jornais ou na televisão. Chegamos a um ponto em que talvez o único caminho de dignificação da carreira de professor será algum estímulo salarial, mas é necessário pensar noutras formas de tornar esta opção mais atrativa para os jovens. E o caminho não pode ser o de acabar com exames nacionais que evitam a comparação entre alunos, e entre professores, apesar de todas as perversões das seriações (rankings) que não se podem evitar totalmente. Só estas comparações permitem chegar ao reconhecimento dos professores mais dedicados e com melhores estratégias para chegar a todos os seus alunos, mesmo aos mais difíceis.
Conclusão
Não podemos evitar o problema de decidir quem pode assumir parte das funções de gestão e de supervisão que têm necessariamente de ser devolvidas pelo governo nacional. Nesta altura, em Portugal continental, o único nível democraticamente responsabilizável é o municipal (ou da freguesia). Temos de aceitar que a dimensão da maioria dos municípios não é compatível com a gestão de um sistema escolar. Talvez dos edifícios e do pessoal auxiliar, mas nunca da função pedagógica e da gestão dos docentes. Na experiência sueca, há queixas de muito resultados, mas não do processo de recrutamento dos professores que foi entregue ao diretor da escola. Mas, no nosso Portugal municipal, poderemos prever o resultado de dar ao município a capacidade de escolher o diretor e de influenciar o recrutamento dos professores. Muitos municípios são já hoje os primeiros empregadores das suas regiões. Não admira que a democracia local funcione mais como uma empresa em autogestão com a mão estendida ao financiamento de Lisboa ou de Bruxelas do que como uma autarquia democrática em que, desde João sem Terra (ou da nossa monarquia medieval), os cidadãos decidem da autorização fiscal para que lhes sejam prestados determinados serviços ao nível desejado.
Só um nível político intermédio teria a dimensão para gerir pedagogicamente um sistema regional de educação. Esse nível teria de ser superior ao município (de dimensão comparável ao sueco) e poderia ser inferior aos das discutidas cinco regiões administrativas. Será possível imaginar um nível intermédio com a dimensão apropriada e uma arquitetura que lhe dê uma clara responsabilização política? A experiência política das eleições locais para este tipo de distrito educacional poderia servir de inspiração, ou simplesmente conduzir a uma eleição dos responsáveis pelo sistema educativo em cada uma das cinco regiões administrativas. Terão dimensão suficiente para obrigar à concertação política interna de visões discrepantes sem cair numa pessoalização total das escolhas nem na partidarização sem controlo dos meios de comunicação social locais nunca independentes do poder político de turno.
Maia, 20 de outubro de 2022
José Ferreira Gomes
Reitor da Universidade da Maia

In:  Cadernos de Economia 141, out-dez, 2022, p.51-57.

[1] OECD, How to make school autonomy work, novembro de 2018. https://oecdedutoday.com/how-to-make-school-autonomy-work/, consultado em outubro de 2022.
[2] Cour des Comptes, Une école plus éfficacement organisée au servisse des élèves, dezembro 2021, https://www.ccomptes.fr/sites/default/files/2021-12/2021214-communique-notes-enjeux-structurels.pdf
[3] OCDE, How Sweden’s school system can regain its old strength, 2015, https://oecdedutoday.com/how-swedens-school-system-can-regain-its-old-strength/
[4] OCDE, Education at a Glance, 2022, Figura D3.3, Lower secondary teachers' relative statutory starting and top of the scale salaries and years taken to reach the top of the scale (2021), Ratio of salaries to the earnings of full-time, full-year workers with tertiary education.
[5] OCDE, Education at a Glance, 2022, Figura D3.2. Lower secondary teachers’ average actual salaries compared to the statutory starting and top of the scale salaries (2021), Annual salaries of teachers in public institutions, in equivalent USD converted using PPPs.

Como avaliar a educação

O recente estudo apresentado pela Fundação Belmiro de Azevedo sobre Impacto do Professor nas Aprendizagens do Aluno[1] impressionou muitos comentadores, pela conclusão de que As características dos professores disponíveis nas bases administrativas, como a antiguidade, posição na carreira, formação e tipo de contrato, não estão correlacionadas de forma sistemática com os valores acrescentados dos professores. Isto sugere que, se as colocações e as progressões na carreira fossem feitas por um sistema aleatório, uma simples roleta, os alunos não seriam em nada afetados. Vemos que o modelo de gestão dos docentes ignora o seu impacto no progresso dos seus alunos. Outra leitura é que todo o edifício de gestão do corpo docente da escola estatal terá sido desenhado para servir os professores (e os seus sindicatos), ignorando os alunos. E, contudo, este estudo demonstra como outros mecanismos de seleção dos professores poderiam ter um enorme efeito no sucesso dos alunos, especialmente dos socialmente mais frágeis.
Compreensivelmente, não se ouviu qualquer comentário do lado do Ministério da Educação. Poucas semanas depois anuncia-se[2] uma mudança na colocação dos professores que parece apenas focada na “vida dos professores”, sem uma palavra sobre o seu impacto na vida dos alunos. O processo de colocação continua centralizado em Lisboa e dependente das “caraterísticas dos professores disponíveis nas bases administrativas” que já se sabe não estarem correlacionadas com o impacto dos professores sobre a aprendizagem dos alunos. O futuro dos alunos continua ausente destas decisões.
Nos últimos 20 anos, os sistemas educativos foram criando sistemas formais de controlo e de avaliação da qualidade, com o objetivo de normalização ou de uniformização, para que todos os professores e todas as escolas adotem os mesmos procedimentos conforme uma norma explicita ou implicitamente definida pelo avaliador. Do ensino básico ao superior, copiam-se métodos criados para assegurar que um produto industrial está conforme determinadas especificações e, por isso, deve merecer a confiança do consumidor. Ao contrário do consumidor de um produto industrial cujo uso é, em geral, limitado no tempo, a educação de um jovem vai moldar a personalidade e desenvolver capacidades que o acompanharão por toda a vida. Nem ele nem a sua família sabem avaliar a curto prazo o sucesso do processo educativo. Ao contrário de um produto industrial, não pode ser substituído se falhar. O percurso educativo é único e irrepetível para cada pessoa.
Para o ensino básico e secundário, os estudos de comparação internacional[3] são os mais relevantes e foram progressivamente ganho aceitação entre nós. A Avaliação Externa das escolas é da responsabilidade da Inspeção-Geral da Educação e Ciência desde 2006. Tem uma função importante de acompanhar os procedimentos, mas não considera a aprendizagem dos alunos nem o seu sucesso futuro no percurso educativo ou no emprego. Os chamados rankings das escolas começaram a ser publicados há 20 anos depois de uma disputa entre a imprensa e o ministério pelo acesso aos resultados dos exames. A comparabilidade depende de haver provas bem calibradas e outros dados socioeconómicos. A extinção dos exames de fim de ciclo em 2016 quebra uma já longa série e dificulta as comparações. A falta de dados socioeconómicos dos alunos das escolas privadas também impossibilita uma verdadeira comparação destas escolas, impossibilitando a desconvolução do resultado final em função da condição socioeconómica das famílias. E também inviabiliza a extensão do trabalho sobre o valor acrescentado do professor sobre o desempenho dos alunos.
Também no ensino superior pesam todas as limitações dos sistemas de qualidade, de avaliação e de acreditação. As tentativas de avaliar as aprendizagens têm sido fortemente repelidas pelas instituições com o argumento de que iriam induzir uma indesejável normalização dos currículos[4] . Os sistemas mais fortemente desregulados sentem maior necessidade de encarar o problema. É o caso das instituições “for profit” norte-americanas que usam o sistema federal de bolsas de estudos (Pell grants) para se financiarem. E alguns países da América Latina de que um bom exemplo é o famoso “provão”[5] brasileiro, ou ENADE[6] , Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes, feito por amostragem dos estudantes do primeiro e último ano do curso, que já sobreviveu a muita contestação política (e mesmo a promessas eleitorais de extinção) com quatro presidentes do Governo Federal.
Na Europa, mantém-se a norma da avaliação de procedimentos, que parece ser suficiente por a desregulação ser, em geral, muito parcial e relativamente recente. Em Portugal (e, também, pouco depois, em Espanha), a autonomia das universidades foi assumida na constituição de 1976 e regulamentada por lei de 1988. Efetivamente, a desregulação nasce da convulsão social (vulgo PREC) subsequente à revolução de 1974 e mantém-se até hoje a permanente tensão entre as instituições e os governos. Nos outros países da Europa ocidental, o ensino superior continua maioritariamente estatal, embora tenham sido criados mecanismos para afastar a gestão corrente da tutela imediata dos governos. Merece especial menção a criação de “conselhos gerais” na Dinamarca e na Áustria em 2004 e em Portugal em 2007. Aqueles maioritariamente externos à universidade, este controlado pelos eleitos internos. Na Holanda, a experiência com a autogestão durou 12 anos, optando-se na década de 1980 por um sistema híbrido de Reitor académico de eleição interna e Presidente de nomeação externa.
Também as nossas escolas precisam de maior liberdade para gerir o seu pessoal e o seu plano de ação, para serem depois avaliadas pelos resultados. Os passos dados neste sentido têm sido tímidos por duas ordens de razões. De um lado há o receio dos professores de que uma tutela mais próxima lhes venha a restringir a liberdade e os direitos laborais. Acresce o receio de que a devolução da gestão de Lisboa para as escolas reduza muito o poder sindical e do partido que o controla. Por outro lado, há o receio nunca expresso de que a devolução da tutela e do poder de contratação aos eleitos municipais venha a partidarizar a gestão escolar e a fragilizar ainda mais a aprendizagem dos alunos. Este problema seria evitado pela criação de estruturas intermédias leves que distanciem o poder partidário da vida quotidiana da escola. Mas a tradição portuguesa é muito frágil nesta área como é demonstrado pelo processo de criação dos agrupamentos de escolas em que os conselhos gerais anteriores foram extintos sem uma simples notificação e os protestos não chegaram ao espaço público.
Nos próximos anos, vai-se dar uma grande renovação do pessoal docente por reforma da geração que acompanhou a expansão do ensino obrigatório para o nono e, depois, para o décimo segundo ano. Seria uma excelente oportunidade para melhorar a formação e a seleção dos novos professores. Se depois soubermos melhorar a gestão do sistema escolar e de cada escola, teremos condições para dar um enorme passo na melhoria dos resultados do nosso sistema educativo.
 José Ferreira Gomes
Reitor da Universidade da Maia
In: O Economista2021, p. 104-106,

[1] O Impacto do Professor nas Aprendizagens do Aluno: Estimativas para Portugal, Ana Balcão Reis, Carmo Seabra, Luís Catela Nunes, Pedro Carneiro** Pedro Freitas, Rodrigo Ferreira, EDULOG, Junho de 2021, https://www.edulog.pt/storage/app/uploads/public/60d/5a3/31d/60d5a331d8bf4706882738.pdf
[2] “Governo quer permitir acesso dos professores ao quadro de escola logo no início da carreira”, Jornal Público, 2 de julho de 2021
[3] https://www.iniciativaeducacao.org/pt/ed-on/ed-on-estatisticas/avaliacoes-internacionais
[4] https://www.oecd.org/education/skills-beyond-school/AHELOFSReportVolume1.pdf
[5] https://www.educabrasil.com.br/provao-exame-nacional-de-cursos/
[6] https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/enade