domingo, 20 de novembro de 2016

Um novo canal de acesso a licenciaturas


No meu artigo publicado no Observador a 17 de setembro pp, registo o atraso na oferta de ensino superior alinhado com a opção profissional no ensino secundário que só foi resolvido com a criação dos TeSP em 2014. O relatório sobre a avaliação do acesso ao ensino superior que o Governo encomendou a um grupo de trabalho liderado pelo Prof. João Guerreiro sugere a criação de uma via de acesso para os diplomados com cursos secundários profissionalizantes (profissionais e de aprendizagem). Argumenta-se aí a favor do “aumento da equidade” no processo de acesso e na “redução das influências entre a conclusão do ensino secundário e o acesso ao ensino superior”. Esta linguagem é estranha porque não podemos falar de equidade entre alunos que fizeram opções diferentes ao longo do seu percurso escolar. Temos sim de os apoiar quando e se quiserem mudar de percurso, mas isso é um problema muito diferente e tem de ser tratado com outros instrumentos. Também há que ter muito cuidado com a desvalorização do percurso final do secundário porque há muitos estudos internacionais sobre os preditores de sucesso no ensino superior e todos concluem que o desempenho no secundário é o melhor. É necessário reconhecer que há problemas no nosso sistema de acesso, mas ser cuidadoso na sua análise e prudente na sua resolução.
Segundo os dados da DGEEC, dos diplomados do ensino secundário pela via científico-humanística (CH) em 2013/14, 79% estavam inscritos num curso de licenciatura ou mestrado integrado logo no ano seguinte; dos diplomados pela via profissional (P), apenas 6% transitaram diretamente para um curso superior conferente de grau. As outras vias de conclusão do ensino secundário têm uma expressão diminuta no superior. É natural que a maioria dos jovens que optaram pelas vias profissionalizantes orientadas para a entrada imediata na vida ativa mantenham essa opção e não surjam no superior logo no ano seguinte. Contudo, poderemos considerar que a percentagem de 6% não resulta apenas da opção pessoal, mas também das condições de acesso que lhes colocam uma barreira difícil de ultrapassar. Mais difícil ainda porque as escolas secundárias não têm ainda mecanismos de apoio para que estes alunos possam preparar o acesso e essa preparação tem de ser suportada pelas famílias. Estes dados confirmam que um CET (ou TeSP) é visto como a opção mais natural (10%) e podemos prever que esta procura venha a crescer. Rapidamente, os TeSP passarão a ser vistos pelos alunos como a via natural de progressão do secundário (P) para o ensino superior. A questão em aberto é a de saber se alguns alunos que terminam o ensino secundário pelas vias profissionalizantes gostariam de prosseguir diretamente para uma licenciatura e se terão as bases mínimas requeridas e o potencial para aí terem sucesso.
Sabe-se muito pouco do nível de conhecimentos atingido pelos alunos que não estão obrigados aos exames finais (nacionais) para a obtenção do diploma do ensino secundário e há indicações de que a heterogeneidade será enorme. A apresentação aos exames nacionais é hoje possível para todos, mas muito poucos seguem este caminho para chegarem a uma licenciatura. Nos últimos anos, o número de candidatos aceites partindo desta origem tem estado sempre entre um e dois milhares. Os concursos locais de acesso aos TeSP (e antes aos CET) foram criados para evitar o choque com um exame nacional muito bem afinado para os conteúdos e a prática pedagógica da via CH. Mas muitos dos diplomados CET têm transitado para licenciatura. Segundo a mesma fonte da DGEEC, em 2014/15 foram admitidos em cursos de licenciatura 1261 candidatos provenientes diretamente da via profissional do secundário e mais de 3100 candidatos detentores de diploma de CET, cerca de 25% do número de diplomados anuais.  Em licenciaturas do ensino politécnico público, apenas 65% dos estudantes foram admitidos pelo Concurso Nacional de Acesso (CNA) enquanto a maioria dos outros admitidos não passaram pela barreira dos exames nacionais usados no CNA. Note-se que no setor universitário público, apenas 17% terão sido admitidos por canais diferentes do CNA e a maioria destes já teriam passado antes pelos exames nacionais usados no CNA. Considerando o mix de estudantes que hoje iniciam uma licenciatura no ensino superior politécnico, parece haver espaço para admitir um número maior de candidatos provenientes diretamente da via P, desde que bem selecionados, sem impacto significativo no sucesso escolar nem necessidade de ajustar a exigência das disciplinas de 1º ano.
Como discuti algures, a maioria dos países e instituições de ensino superior usa os resultados do secundário na seleção dos candidatos, muitas vezes complementados por testes específicos para cada área do saber. Nos Estados Unidos, o instrumento de avaliação exigido em todas as universidades é um teste (SAT) desligado dos conteúdos do ensino secundário por não haver um currículo único. A alternativa de definir um currículo comum mínimo acaba por ter um impacto negativo no ensino secundário ao chamar a atenção para conteúdos muito limitados através dos quais os alunos vão ser avaliados e, indiretamente, se virá a medir o prestígio da escola. No caso presente, um instrumento de avaliação do potencial de candidatos oriundos das vias profissionalizantes teria de seguir a mesma norma. Tomando como referência os 6% de candidatos oriundos da via profissional que no passado tiveram êxito no CNA (usando os exames do CH), poder-se-ia propor um teste do tipo do SAT americano. Admitindo que metade dos diplomados P se apresentariam a este teste, poderíamos fixar o limiar de aceitação em licenciatura no 1º quartil. Embora pareça mais prudente manter o regime de concursos locais para o acesso aos TeSP por mais alguns anos, este mesmo teste poderia vir a ser usado, fixando o limiar de aceitação na mediana dos resultados.
Poderemos pensar que cursos com candidatos provenientes de percursos muito diversos deverão selecionar todos os seus alunos usando um instrumento deste tipo (abandonando exames baseados em conteúdos que não são comuns a todos os percursos educativos prévios). Até lá, poderemos desdobrar o numerus clausus numa cota para o CNA e outra para este complemento com um percurso mais profissionalizante, seguindo a prática tradicional de criar cotas adicionais para certos concursos especiais.


José Ferreira Gomes foi secretário de Estado com a tutela do Ensino Superior nos XIX e XX Governos constitucionais
http://www.fc.up.pt/pessoas/jfgomes/

domingo, 13 de novembro de 2016

O porquê de um sistema nacional de acesso

A responsabilidade pela aceitação de novos estudantes é, em geral, remetida para as instituições de ensino superior. Apesar disso, em muitos países, existe um sistema centralizado, nacional ou regional, que garante alguma transparência no processo e facilita a candidatura dos estudantes a várias instituições. Enquanto as vias mais vocacionais/profissionais de ensino superior tendem a ser muito locais ou regionais, a via académica mais tradicional ambiciona a receber os estudantes com melhor desempenho escolar e estes a ser aceites na instituição de maior reconhecimento nacional ou internacional.

O acesso ao ensino superior é um tema de permanente interesse em todos os países pelo impacto que tem no futuro dos candidatos e na vida das instituições. Em Portugal, tem merecido alguma atenção que foi recentemente renovada pela discussão aberta por um relatório de avaliação encomendado pelo Governo. A qualidade dos cursos e das instituições depende muito dos estudantes que conseguem atrair, o que faz depender a discussão do modelo organizacional do ensino superior do sistema de acesso. A atenção da opinião pública tem estado demasiado focada no Concurso Nacional de Acesso (CNA) por ser o canal “normal” de acesso dos alunos que terminam o secundário pela via mais académica tradicional, a científico-humanística (CH), mas os outros canais de acesso e de transferência ou mudança de curso são também importantes e têm algumas vezes servido para frustrar as normas formais e mais transparentes do CNA.
Do ponto de vista das políticas nacionais de educação superior, o objetivo do sistema de acesso é atingir a máxima satisfação da ambição de todos os cidadãos que tenham condições para ter sucesso num percurso educativo superior, apoiando cada candidato para um curso onde possa ser bem sucedido. Adicionalmente, deverá considerar-se a evolução da economia e da sua necessidade de quadros qualificados ou da sua capacidade de absorção de diplomados superiores. Do ponto de vista de cada instituição de ensino superior, a política de admissão de novos estudantes deve atender aos seus meios materiais e humanos para definir o número máximo de candidatos a admitir, impondo-se sempre a condição de que só sejam admitidos candidatos que se possa prever terem condições de sucesso no percurso educativo a que se propõem. Quando o número de candidatos admissíveis exceda o número de vagas, deverá seriar os candidatos de acordo com o seu potencial previsível de sucesso no programa que se propõem seguir. As melhores universidades de investigação são, em geral, muito seletivas para garantir que recebem os intelectualmente mais aptos a participarem em programas de grande ambição. Do ponto de vista do candidato à educação superior, ele escolherá a instituição e o ciclo de estudos que melhor corresponda ao seu plano de vida e de desenvolvimento profissional, dentro das eventuais constrições financeiras. A informação de que dispõe enquanto candidato é sempre muito limitada, quer no que respeita à natureza da instituição/ciclo de estudos que melhor pode contribuir para o seu objetivo, quer à sua autoavaliação do potencial próprio e da atividade ou atividades que poderá vir a desempenhar no futuro fazendo, de alguma forma, uso da experiência educativa a que se propõe. Apesar do esforço que instituições e reguladores nacionais fazem para melhorar a informação disponibilizada aos candidatos, esta assimetria de informação sempre limita a racionalidade da decisão do estudante e leva as instituições a procurar fatores de diferenciação e de posicionamento no “mercado” que todos têm de reconhecer são distantes do interesse direto do candidato a um curso de graduação inicial. São disso exemplo a despesa das universidades americanas com equipas profissionais nos desportos com maior reconhecimento público ou a enorme despesa de algumas instituições privadas com publicidade direta, vazia de conteúdo informativo relevante. Os rankings nacionais e internacionais são usados pelas instituições para defenderem o seu posicionamento embora todos conheçam as suas imensas limitações por se basearem em informação de muito má qualidade e pouco comparável e numa perceção de prestígio que se auto alimenta. Melhores são os sistemas de informação nacionais que muitos países oferecem aos seus estudantes onde são usados indicadores quantitativos validados. Os sistemas de avaliação oficial de cursos e instituições não estão pensados para esta função mas apenas para proteger o “consumidor” de ofertas educativas consideradas abaixo de um nível mínimo de qualidade. Para muitos estudantes conta o desafio mais difícil. O curso/instituição onde é mais difícil ser aceite é aquele a que vale a pena concorrer.
Mesmo países de grande tradição de autonomia universitária têm sistemas nacionais de acesso por razões práticas (evitando que cada candidato tenha de fazer várias candidaturas independentes e com formatos diferentes) e para garantir a máxima transparência em todo o processo, permitindo ao candidato a melhor compreensão das razões de aceitação ou rejeição por cada instituição. Se isto é em geral verdade para os sistemas universitários, tende a ser muito simplificado nas instituições de ensino superior de objetivo mais vocacional onde a procura estudantil tende a ser mais regional. O que poderá ser uma singularidade portuguesa é termos uma mesma seriação utilizada para o acesso a dois sub-sistemas de ensino superior. No caso do Reino Unido, a UCAS é uma instituição independente que resultou da fusão das que existiam para a admissão a universidades e a politécnicos antes da unificação de 1992. E até podemos ver que a redução do número de candidatos admitidos a Oxford e Cambridge não resultou nem provocou uma crise. No caso espanhol, um enquadramento nacional único deixa algum espaço de autonomia a cada região autónoma que organiza o seu próprio sistema de acesso às universidades que financia.
O canal de acesso mais conhecido em Portugal é o Concurso Nacional de Acesso (CNA) que, com muitos ajustes ao longo dos anos, mantém uma forte memória de um ensino secundário de via única, a científico-humanística (CH), e de um único tipo de ensino superior, o universitário. Pelo número de estudantes envolvidos, é uma peça noticiosa de grande impacto aquando da divulgação dos resultados em princípios de Setembro de cada ano. É dessas notícias que perdura uma imagem do sistema de ensino superior estatal: algumas universidades com forte procura; muitos cursos desertos ou quase desertos; muitos institutos politécnicos com tão poucos estudantes que "deveriam ser extintos de imediato"! Esta é a mensagem que passa para o público e poucos saberão que é falsa, que a maioria dos cursos desertos irão receber muitos estudantes por outros canais de acesso.
Em aberto está a questão de melhorar o sistema de acesso ao ensino superior, de afinar melhor o compromisso entre os interesses em jogo, da sociedade, das instituições e dos candidatos. Em comum, haverá acordo quanto à necessidade de melhorar o sucesso académico, avaliando melhor o potencial dos estudantes para cada ciclo de estudos a que se candidatam e de o fazer de uma forma transparente para que todos os parceiros possam compreender os benefícios de fazer a escolha “certa”.
O nosso sistema de acesso tem uma considerável complexidade, resultando de uma longa evolução legislativa e regulamentar e de limitações práticas nem sempre expressas. Embora legalmente a responsabilidade da seleção e aceitação dos estudantes caiba às instituições de ensino superior, a sua influência no CNA limita-se a dar alguma indicação sobre a forma de construir uma nota de candidatura e, mesmo isso, teve novas limitações por um despacho ministerial de 2009 que impôs a exigência de nota positiva nos exames de matemática e física para a maioria dos cursos de ciências e engenharia. 
O acesso ao curso de primeira escolha aparece aos candidatos como prémio de bom desempenho nos exames finais do secundário, exames exclusivamente focados na demonstração dos conhecimentos adquiridos. Neste modelo, o percurso do aluno é focado no exame, secundarizando tudo aquilo que não parece relevante para a obtenção da classificação desejada. O ensino torna-se muito rígido e o treino das questões-tipo dos exames é demasiado valorizado. Sendo o primeiro objetivo de muitos alunos e dos pais a obtenção de uma classificação no exame, algumas escolas privadas focam-se quase exclusivamente neste desiderato, secundarizando todos os outras disciplinas e atividades que fazem parte da saudável experiência educativa de um jovem. O prestígio da escola mede-se pelas notas dos alunos que apresenta a exame e pelo número de admitidos a medicina ou arquitetura. Tudo o resto é secundarizado. Mais de metade dos jovens não optam pela via científico-humanística CH e nada sabemos sobre o trabalho feito pelas escolas com estes jovens!
O CNA foi desenhado para fazer a seleção dos candidatos aos cursos universitários e tem sido razoavelmente consensual. Sendo um tema muito mediático pelo seu impacto na vida de estudantes e famílias, alguns problemas têm vindo a discussão pública:

  1. As classificações internas atribuídas pelas escolas são valorizadas por resultarem de uma avaliação feita ao longo do percurso estudantil por professores que conhecem bem o aluno, mas têm sido levantadas suspeitas de que há espaço para o favorecimento de alguns, o que parece demonstrado pela comparação estatística entre as classificações internas e as obtidas pelos mesmos alunos nos exames. Só recentemente foram divulgados pela DGEEC estudos que evidenciam estes comportamentos de algumas escolas e, esta simples divulgação, poderá estar a provocar a sua correção (ver comentárioaqui). A introdução de algum instrumento corretivo que no futuro penalize os candidatos oriundos de escolas estatisticamente mais folgadas nas classificações atribuídas poderá ser suficiente para corrigir esta anomalia por simples funcionamento do mercado, nunca chegando a ser efetivamente usado. As famílias teriam receio de que o seu educando viesse a ser penalizado por frequentar determinada escola. Infelizmente, casos de eventual favorecimento individual isolado são possíveis e não são detetáveis.
  2. A distribuição das classificações atribuídas em exame varia muito ao longo do tempo. A média das classificações pode variar mais de 2 valores (em 20). É atrativo pensar numa normalização das classificações, mas esta técnica viria a dar ao resultado um valor arbitrário e manipulável que, provavelmente, seria socialmente mal-aceite. Acresce que, no modelo atual, as provas de 1ª e de 2ª chamada acolhem um público estudantil muito diferente e dificilmente se poderia justificar dar o mesmo tratamento estatístico aos dois universos de alunos. Hoje, a classificação mínima de 10 em física e matemática é o limiar de aceitabilidade de candidatos à maioria dos cursos de engenharia. Algumas universidades já exigiram 12 de nota mínima como sinal da sua maior ambição, mas deixaram cair esta exigência logo que ela começava a ser relevante por quebra do número de candidatos. A normalização para média 12 como sugerido (no exemplo apresentado) representaria um grande relaxamento do padrão de exigência que tem sido normalmente seguido ao longo de muitos anos para os cursos de ciência e tecnologia. Tecnicamente, é atrativo pensar numa solução mas dificilmente será bem aceite e deixará de ser usada para relaxar os padrões de exigência. Poderemos acreditar que o IAVE consegue ainda melhorar a calibração interna dos testes aplicados?
  3.  Todos os estudos internacionais mostram que o sucesso escolar no secundário é o melhor preditor do sucesso no ensino superior, embora muitos outros fatores do contexto tenham um impacto relevante. O maior capital económico e educativo das famílias está fortemente correlacionado com os resultados escolares e poderá ter um efeito adicional sobre o sucesso no superior[1]. Quando não existe um currículo nacional como acontece nos Estados Unidos da América, é impossível desenhar testes de conhecimentos e recorre-se a testes de competências. Os resultados não deixam de estar correlacionados com o estatuto social das famílias.
A ampliação do espetro social dos candidatos ao ensino superior tem merecido muita atenção dos responsáveis políticos em alguns países. Têm sido usados instrumentos de financiamento das instituições de ensino superior para premiar a melhor representação de certos grupos identificados como mais desfavorecidos em cada país. Em alguns casos chega-se a mecanismos de simples discriminação positiva no acesso com o risco de que muitos destes novos estudantes venham a ser vítimas de insucesso e a sofrerem a correspondente penalização social. Noutros casos, deixa-se às instituições a afinação de sistemas de acesso mais complexos em que o desempenho escolar histórico é complementado com outros elementos de modo a tendencialmente admitir um conjunto de candidatos que venham a demonstrar maior representatividade social e homogeneidade quanto ao seu potencial de sucesso. A Austrália é há bastantes anos um laboratório de políticas de ensino superior onde o alargamento do acesso a grupos sociais minoritários tem merecido muita atenção. Também no Reino Unido, a pressão política e de financiamento é contrabalançada pela preocupação das instituições de garantirem que vão receber os candidatos com melhor potencial para responderem aos desafios que lhes são propostos. Para a Medicina, um teste especial[2]tem ganho aceitação em universidades australianas, inglesas, irlandesas e polacas. Cambridge desenvolveu um teste especial, o Thinking Skills Assessment que hoje é usado por Cambridge, Oxford e o University College London. Estes são alguns exemplos do esforço que está a ser feito para complementar a informação relativa ao desempenho dos candidatos no ensino secundário e para melhorar a representação dos grupos socialmente desfavorecidos. Vários países têm experimentado o desenvolvimento de programas curtos de reforço da preparação dos estudantes que terminam o secundário para acederem ao superior. É, tradicionalmente, o caso de muitos cursos dos Community Colleges americanos que oferecem a transferência para universidades aos estudantes que escolham programas especiais desenhados para esse efeito.  Na Irlanda tem sido feito um grande esforço para a oferta cursos de preparação para o ensino superior. Na tradição germânica, são definidos vários percursos desde relativamente cedo e o acesso ao ensino superior é feito de forma autónoma conforme se trate da via académica universitária, da via profissional (politécnica ou, em inglês, em university of applied sciences) mas há alguma flexibilidade na mudança de percurso.
Como ficou dito acima, a ausência de um currículo nacional do ensino secundário levou a que nos Estados Unidos da América a seleção de entrada no ensino superior se baseasse universalmente num teste[3] não alinhado com os conteúdos do secundário. A entrada nos cursos de pós graduação exige também um teste[4] que procura avaliar o potencial dos candidatos para áreas de conhecimento muito diversas.
Consideremos finalmente as propostas feitas no (sumário executivo do) Relatório sobre a Avaliação do Acesso ao Ensino Superior de outubro de 2016 preparado por um grupo de trabalho de alto nível coordenado pelo Prof. João Guerreiro.

  • Criação de uma via de acesso ao ensino superior para os diplomados em cursos secundários profissionalizantes. Embora devamos admitir que os alunos que optam por uma das vias vocacionais do ensino secundário têm a intenção de entrar de imediato no mercado de trabalho, é importante manter aberta a possibilidade de decidirem prolongar o seu percurso educativo, a exemplo do que acontece na generalidade dos países. Com o reforço e a clarificação das vias profissionalizantes do ensino superior, estão criadas condições para melhorar o alinhamento do percurso destes jovens na passagem do secundário para o superior. Isto pode ser feito sem desresponsabilizar o jovem pela construção do seu percurso educativo nem a escola pelo apoio que tem de dar aos seus alunos para poderem escolher (e terem sucesso) num de vários percursos futuros.
  • A situação dos jovens que tenham optado por um curso artístico especializado é semelhante no sentido de eles terem optado por um percurso onde são reforçados saberes e competências que exigem um desenvolvimento precoce. No ensino superior, há licenciaturas de ensino politécnico e licenciaturas e mestrados integrados do universitário que estão bem alinhadas com esta formação prévia. Tem sido apontado o conflito potencial de se fazer a seriação baseada no CNA, favorecendo aparentemente os alunos que seguiram a via CH. Baseando-se o CNA nos exames da via CH do secundário, este tipo de conflito aparente manter-se-á sempre. Não é possível dizer se hoje os candidatos oriundos da via artística especializada estão a ser favorecidos ou prejudicados pelas regras de formação da nota de acesso. O mesmo se pode dizer dos alunos oriundos de um sistema de ensino secundário estrangeiro, especialmente das escolas estrangeiras em Portugal. Não há forma demonstravelmente justa de seriar alunos com percursos diferentes, com classificações obtidas em provas finais diferentes, com programas diferentes e com culturas de classificação diferente. Só a introdução de um novo tipo de prova pode atenuar o problema.
  • O acesso aos TeSP. É prematuro discutir um concurso nacional de acesso a este novo tipo de ensino superior e podem aduzir-se bons argumentos para que a seleção e admissão de estudantes seja sempre feita localmente. A procura deste tipo de ensino superior é, na generalidade dos países, muito local ou regional porque a oferta está mais dispersa pelo território e os cursos oferecidos estão muito sintonizados com as necessidades e a especialização regional. A menos de um teste geral de competências para este tipo de ensino superior, o processo de avaliação e de seleção pode ser local e as dificuldades emergentes da candidatura de alguns estudantes a várias instituições de ensino superior não estão ainda provadas.


[1] Alguns estudos publicados em Portugal referem-se a um curso ou uma universidade e são em geral limitados na amostra e na análise multifatorial de um problema complexo e ainda mal compreendido.
[2] O GAMSAT, Graduate Medical School Admissions Test, é usado em muitas universidades australianas e tem vindo a ganhar aceitação na Europa, nomeadamente no Reino Unido, na Irlanda e na Polónia.
[3] O SAT foi introduzido em 1926 com a designação de  Scholastic Aptitude Test e tem evoluído ao longo dos anos. É da responsabilidade de uma instituição sem fins lucrativos, o College Board.
[4] O GRE, Graduate Record Examination que tem secções verbal, quantitativa, de escrita e experimental, esta com questões que vão ser avaliadas para uso futuro. É administrado desde 1949 por Educational Testing Services.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Acesso ao Ensino Superior, Relatório sobre o

O governo publicou recentemente um relatório sobre a avaliação do acesso ao ensino superior elaborado por um grupo de trabalho liderado pelo Prof. João Guerreiro. Antes de avançar para uma discussão de propostas inovadoras numa área tão sensível socialmente e tão importante para o futuro dos nossos jovens, interessa analisar bem e compreender os elementos recolhidos no relatório apresentado. É um trabalho extenso e de grande valor, mas poderá deixar algumas dúvidas ou prestar-se a interpretações incorretas da realidade atual em Portugal e nos países nossos parceiros mais imediatos.

A. Quadro 1: População (30-34 anos) com formação superior.
Na leitura deste quadro deve ter-se em atenção que, na média da OCDE, 22% dos estudantes que recebem um primeiro diploma de ensino superior o fazem com um ciclo curto e que esta percentagem é de 37% em Espanha, 8% no Reino Unido, 19% na Dinamarca, 52% na Áustria, 27% na Austrália e 41% nos Estados Unidos. (Education at a Glance 2016. Note-se que, devido à recente alteração da classificação ISCED, nem todos os países adaptaram já a sua recolha de dados.) Como, até à criação dos TeSP em 2014, não havia nenhum diploma de ciclo curto de ensino superior em Portugal a nossa posição irá ter uma significativa alteração quando o impacto da criação destes cursos se fizer sentir na faixa etária dos 30-34 anos. Esta simples correção será de pelo menos 5% na fase inicial.

B. Quadro 8: Jovens que frequentam o 12º ano e terminam o ensino secundário
A percentagem de uma coorte de 18 anos que termina o secundário vem a subir lentamente, tendo passado de 62% em 2011 para 74% em 2015. Metade desta subida deve-se aos cursos científico-humanísticos (CH) que passaram de 34% para 40%, uma subida de 1,5% ao ano. De acordo com a OCDE (Education at a Glance 2016, com dados de 2014), a média da taxa de diplomatura do secundário é de 85% na OCDE e 86% na UE22, sendo 74% em Espanha. O nosso valor de 40% (ou 41% como consta na tabela da OCDE) para os cursos gerais compara com 54% na OCDE e 49% na UE22, sendo de 53% em Espanha, 54% em França e 48% na Alemanha. O nosso valor de 34% para as vias vocacionais fica muito abaixo dos 46% para a média da OCDE e 50% para a UE22, mas próximo dos 29% de Espanha. Acresce que os cursos profissionais têm crescido muito lentamente. Daqui parece poder-se concluir que é de esperar que a via CH continue a crescer lentamente mas de uma forma sustentada, enquanto algumas da vias mais vocacionais crescem rapidamente para satisfazer a maioria dos jovens que hoje são obrigados a manter-se na escola até aos 18 anos.

C. Figura 2: Alinhamento das classificações internas

As classificações internas atribuídas ao longo do percurso escolar e as classificações das disciplinas com exame são usadas de diversas formas para formar a classificação de candidatura ao ensino superior na seriação feita no Concurso Nacional de Acesso (CNA). Para os alunos internos da via CH, a classificação final de uma disciplina com exame é formada pela média da classificação interna (peso de 70%) e da obtida no exame (30%).
Nas disciplinas com exames, vários estudos da DGEEC têm detetado desvios sistemáticos significativos e persistentes entre as classificações internas e as de exame, com uma tendência (crescente até 2014) para divergência positiva em várias escolas da região do Porto. Apesar de poder estar já a ocorrer uma correção desta divergência pelo simples facto de ela ter sido divulgada e de ter havido uma intervenção da Inspeção Geral da Educação, é óbvia a dificuldade decorrente da utilização de classificações internas para a seriação nacional dos estudantes.
As variações entre as distribuições das classificações dos exames nacionais em anos diferentes são  também muito significativas e tornam a sua comparação injusta (ou impossível). A comparação entre as distribuições das classificações de 1ª e 2ª chamadas são ainda mais difíceis porque, para além da provável variação da “dificuldade” do teste proposto há ainda uma variação da população que se apresenta. De facto, a população estudantil que se apresenta à 1ª e à 2ª chamada é diferente porque a escolha do aluno pela 1ª ou pela 2ª chamada não é aleatória. Daqui resulta que a comparação não pode ser feita. Apesar do esforço de calibração dos testes que é provavelmente feito pelo IAVE, uma boa calibração não é possível com testes públicos onde as perguntas não podem ser repetidas.
É impossível estabelecer critérios “justos” para a seriação de alunos que tenham seguido vias diferentes do ensino secundário. Não se pode dizer se os critérios usados para os candidatos oriundos dos Cursos Artísticos Especializados ou dos Cursos Profissionais são ou não justos e tem havido alterações à medida que as pressões dos grupos de interesse se manifestam. O mesmo se pode dizer dos alunos oriundos de sistemas de ensino secundário estrangeiros, especialmente relevantes para as escolas estrangeiras a oferecer educação secundária em Portugal e para os alunos dessas escolas que se candidatam a cursos muito competitivos.
Para os contingentes especiais, estamos provavelmente a admitir implicitamente um regime de excepção com provável vantagem relativa, mas assumida como tal.

D. Anexo 10.2: Prosseguimento de estudos dos alunos dos cursos profissionais


Os mapas mostram, especialmente, o maior dinamismo dos institutos politécnicos de algumas regióes do país a cativar por todos os meios alunos que terminem o secundário, também pela via profissional.

E. Anexo 10.3: Normalização das classificações dos exames (Matemática A)
A tabela é sintomática do efeito da normalização proposta e de algumas consequências não explicitadas. Em 2014, cerca de 63% dos alunos tiveram uma classificação negativa. Perto de metade destes passaria a ter nota positiva se fosse adoptada a normalização proposta. 2015 foi um ano "melhor" mas, ainda assim, 1/3 dos 46% com nota negativa passariam a positiva pela normalização. Este exercício é feito tendo especialmente em vista o acesso às engenharias (e a alguns cursos científicos). Na outra disciplina relevante para estas áreas, a Física & Química, a situação deve ser similar. O resultado da intercessão dos resultados destas duas disciplinas é que uma normalização deste tipo irá produzir sempre um grande aumento do número de candidatos potenciais às engenharias e uma diminuição do número de candidatos a outros cursos. O resultado será uma deslocação de candidatos de politécnicos para universidades. 
Infelizmente, não é discutida a aplicação da normalização à 1ª e à 2ª chamada de uma mesma disciplina. Presumivelmente, defende-se a normalização dos resultados de cada prova mas não está provado que as populações que se apresentam às duas chamadas sejam homogéneas (amostras aleatórias de um mesmo universo.) Provavelmente, iríamos favorecer os que se apresentam a 2ª chamada e teríamos muito mais alunos a optar pela 2ª chamada.
Uma boa calibração entre diferentes testes exigiria que estes não fossem divulgados como acontece nos testes “americanos”. Nestes, apenas são divulgados os posicionamentos relativos, depois de feitas as correcções estatísticas mas sempre com grandes universos de candidatos que se possam considerar estatisticamente homogéneos.