segunda-feira, 25 de maio de 2020

Um país de doutores, ainda que desempregados!

Os alunos que terminavam o ensino secundário pela via profissional tinham até agora a opção de entrar na vida ativa ou num curso de Técnico Superior Profissional (TeSP), com entrada em estágio ao fim de 18 meses e um provável contrato 6 meses depois. A entrada numa licenciatura ou mestrado integrado era possível, mas exigia exames que poucos ultrapassavam (porque as escolas estatais não lhes ofereciam o necessário apoio que só “explicações” intensivas podiam compensar). Tudo vai ser mais fácil a partir de outubro! Cada universidade ou politécnico poderá organizar as suas provas e vamos ter um enorme sucesso só comparável ao das provas de acesso para maiores de 23 anos! As universidades estatais têm ainda vergonha de aderir diretamente ao novo sistema, mas não deixarão de usar esta via de “afirmação” e crescimento nas suas áreas de maior dificuldade de recrutamento. As universidades e politécnicos privados não faltarão à chamada.
Enquanto os exames nacionais do 12º ano têm um enorme escrutínio público, todas as outras provas de acesso passam totalmente despercebidas. Não são conhecidas do público nem das entidades de regulação. Assim será com estas novas provas para que o público não se aperceba da enorme diferença de padrões de exigência entre estes dois canais que levam à mesma licenciatura ou mestrado integrado. Sim, os percursos das vias profissionais estão desenhados para a entrada imediata na vida ativa e têm enormes fragilidades nas componentes mais académicas relevantes para o imediato prosseguimento de estudos superiores em licenciatura. Pela primeira vez, vamos oferecer um exame externo a estes alunos. Seria interessante que essa fosse uma prova nacional (diferente da desenhada para a via “regular”) que permitisse evidenciar e melhorar os padrões do nosso relativamente jovem ensino profissional. Não foi esse o caminho escolhido. Cada instituição de ensino superior, estatal ou privada, pode desenhara a sua. Os institutos politécnicos estatais do continente acordaram na realização de provas para o norte, o sul e o centro e Lisboa, para atenuar um inovador turismo de exames por todo o país.
No preâmbulo do decreto-lei de 2 de abril, o governo antecipa que um terço dos alunos que terminam pela via profissional vão querer e conseguir ser aceites em licenciaturas ou mestrados integrados até 2023. Isto aponta para o fim, a prazo, dos cursos de TeSP. Cursos muito focados na rápida empregabilidade dos jovens serão preteridos em favor de licenciaturas que já hoje têm um rasto de frustração, subemprego e emigração. Foi esta emigração de jovens diplomados que muito contribuiu para que não tivéssemos atingido o objetivo de 40% de diplomados superiores nos 30 a 34 anos, porque ela foi compensada pela imigração de não qualificados para o emprego criado nos últimos anos. Agora vamos agravar esta realidade! Se os nossos destinos de emigração qualificada se fecharem devido à crise económica pós-COVID, então agravar-se-á a frustração e o subemprego dos jovens a quem vamos agora oferecer uma falsa expectativa.
A nossa atual participação no ensino superior está em linha com a dos nossos pares europeus, só prejudicada pela ainda recente oferta de cursos TeSP. Iria certamente continuar a crescer com o aumento da participação na via “regular” do ensino secundário e com a desejável consolidação das vias profissionais. Este desiderato iria desejavelmente alimentar a progressiva criação de emprego mais qualificado na nossa sociedade. Numa sociedade equilibrada, temos de promover a qualidade de todos os perfis educativos terminais (níveis 4 a 8 do Quadro Europeu de Qualificações) desenhados para saídas aos 18 anos (profissional), aos 20 anos (TeSP), aos 21 anos (licenciatura), aos 23 anos (mestrado) e aos 26 anos (doutorado). Temos de diminuir ainda mais o abandono escolar sem qualificação que alimenta a marginalidade social e assegurar algum ajuste dos fluxos de saída aos diversos níveis com a nossa realidade social e económica. O voluntarismo excessivo num ambiente de facilitismo desvaloriza a desejável qualidade de todos os perfis educativos e agrava o desencanto dos nossos jovens, mesmo dos mais disponíveis e mais competitivos internacionalmente.
Sim, é um erro abrir a porta baixa a candidatos com uma formação desadequada à imediata continuação de estudos em licenciatura ou mestrado integrado. O melhor futuro que todos desejamos para as novas gerações não se constrói com um plano inclinado para um espaço de “doutores e engenheiros” subempregados num país à espera da salvação pelo retorno dos turistas que subitamente desapareceram (para o conforto de alguns). Também não podemos continuar a alimentar a troca de emigrantes qualificados por imigrantes não qualificados.  O futuro de um país nas margens da Europa, mas no centro do mundo, constrói-se com uma população bem-educada e muito competitiva internacionalmente. Bater o pé na Europa ou no mundo nunca resultou. É mais seguro dispor de uma população educada para competir internacionalmente e ganhar no terreno de jogo aquilo que não podemos aspirar a continuar a receber graciosamente na secretaria.

Uma versão abreviada desde texto foi publicada no Jornal PÚBLICO, 25 de maio de 2020