quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

A Ciência no nosso dia-a-dia

Resumo
A Ciência nunca esteve tão presente no espaço público como durante a Pandemia de COVID-19 e, contudo, permitiu interpretações muito diversas e reações anti-ciência muito fortes. Como poderemos explicar aos mais novos quais são os méritos e os limites da Ciência? Neste artigo usamos as discussões muito contrastantes sobre a resposta à pandemia para explicar o que é Ciência e afastar algumas pretensões mais simplistas dos seus sucessos.
Abstract
Science and technology are present in our everyday life, but never with the intensity and public interest shown during the COVID-19 pandemic. Newspapers, TV news and comment and social media were taken over by ”experts” on virus infection. Daily, we received the last “scientific results”, frequently contradictory. As the non-pharmacological measures had limited impact on the pandemic and a devasting effect on everybody’s life and on the economy, the only hope remaining was that science would be able to devise a cure that technology could mass produce. It appears that the story ends with Science in a nice light, but for many the path pursued by political and medical authorities is far from clear and may be confusing about the actual role Science can be given in modern society. In this paper, the use and public perception of Science during the acute phase of the pandemic is discussed.
Introdução
A pandemia da COVID-19 trouxe a Ciência à primeira página da imprensa e à abertura dos telejornais. Quase toda a opinião publicada professava uma fé quase cega na Ciência e, contudo, os comportamentos individuais divergiram e as normas sociais impostas nos diversos países foram muito variáveis. Em Portugal, logo em março de 2020, ouvimos o Governo a proclamar que seguiria a Ciência no eventual encerramento das escolas para, no dia seguinte, impor um encerramento contra a recomendação clara e explícita dos seus conselheiros científicos. Em retrospetiva, poderemos concluir que houve três grandes caminhos de resposta à pandemia, (i) manter a vida normal e aceitar o progresso da pandemia na esperança de ser atingida uma imunização natural sem danos intoleráveis, (ii) confinar e desconfinar sucessivamente conforme as necessidades percebidas para manter um nível de infeções compatível com a resposta hospitalar disponível e (iii) impor um confinamento rigoroso e prematuro para manter um nível zero da propagação. A estratégia parece ter sido prosseguida com sucesso em alguns países asiáticos. Porventura, o caso mais extremo de resposta pública do tipo (i) terá ocorrido na Suécia1 onde a autoridade de saúde manteve a sua linha de rumo inicial até ao inverno de 2020, de facto aceitando a inevitabilidade da imunização de grupo (consequente à infeção por contágio). O Reino Unido terá adotado esta estratégia inicialmente, mas optou pelo confinamento pouco depois. A generalidade dos países europeus e norte americanos seguiu uma estratégia (ii) com decisões bastante erráticas e pouco consistentes. Todos se justificam com a Ciência, embora com leituras contrastantes. Será isto honesto? Não apregoamos que a Ciência é capaz de dar respostas seguras e definitivas?
A progressão da pandemia ocorreu em todo o mundo por surtos regionais que nunca puderam ser previstos nem completamente explicados. As respostas políticas foram muito diversas e aparentemente inconsistentes. A presença desta realidade no espaço noticioso foi muito intensa, mas traduziu mal o que agora sabemos ter ocorrido de facto. Poderá ser um bom caso para estudo dos critérios editoriais e da forma como são influenciados por preconceitos ideológicos ou pelos circuitos informativos internacionais mais poderosos. Com dados de maio de 2021, o Financial Times2 apresenta estimativas do excesso de mortalidade atribuível à COVID-19 calculado, para cada país, desde o dia em que atingiu 100 vítimas. A estimativa do excesso de mortalidade3 pode dar uma imagem mais rigorosa do impacto da pandemia porque os países seguem critérios diferentes na contagem direta das vítimas.
Figura 1. Número de mortes em excesso em relação à média de anos anteriores desde o princípio da pandemia até maio/2021, por milhão de habitantes. [Adaptado de Financial Times, atualizado em 5 de maio de 2021].
Não há ainda um quadro interpretativo satisfatório para estes resultados que ainda não são finais. Poderá ser surpreendente para o leitor que tenha acompanhado as notícias diárias a posição final de países como o Brasil ou os Estados Unidos da América. As declarações erráticas e muitas vezes disparatadas (pelo menos quando vistas por um observador distante da política local), explicarão que o aparente desastre pandémico desses países tenha sido empolado muito para além do impacto real apresentado por estas estimativas.
Uma boa imagem da progressão da pandemia pode ser dada pelo número de vítimas diárias onde aparecem claramente os picos em que os sistemas de saúde foram incapazes de dar resposta de internamento a muitos infetados. Logo em março de 2020, o caso do norte de Itália de enorme impacto regional, embora não tenha excedido o valor de 13,5 na média nacional e tenha sido largamente ultrapassado pela Espanha e pelo Reino Unido. A Itália volta a entrar em dificuldades no outono, mas é já em janeiro de 2021 que se dão os episódios mais graves, primeiro no Reino Unido com um máximo de 18,4 e depois em Portugal com um pico de 28,6, o maior do mundo na altura e o maior de sempre neste conjunto de países. (Note-se que os surtos tendem a ser regionais pelo que as médias nacionais atingem valores extremos mais facilmente nos países mais pequenos.)
Figura 2. Número de vítimas confirmadas diárias (média a 7 dias) [Johns Hopkins University, 15 de outubro de 2021].
Temos uma situação complexa em que os decisores políticos pediram ajuda à Ciência para evitar as consequências mais gravosas para a população. Duas grandes áreas de trabalho científico foram seguidas com resultados diferentes, a social e a médica. A gestão social da pandemia foi o primeiro grande exercício global de gestão de uma crise deste tipo e fez-se com grandes dificuldades. Na área médica, o primeiro problema foi o de acolher os infetados e escolher os melhores meios disponíveis para atenuar as consequências. Antes disso, registara-se o enorme sucesso da rápida identificação do agente infecioso, ainda na área do surto inicial em Wuhan, China.
Depois, veio a busca de meios de tratamento e de prevenção pela vacina. Devemos lembrar que nos primeiros meses todas as previsões apontavam para que uma vacina demoraria anos a ser disponibilizada. Ainda mais tempo demoraria a ter um medicamento para tratar os infetados. Na área farmacológica, o sucesso da Ciência merece um forte aplauso. Antes do fim de 2020, começaram a ser distribuídas as primeiras vacinas e em meados de 2021 toda a população elegível dos países da OCDE tinha uma vacina disponível. Portugal voltou aos primeiros lugares, agora pela taxa de vacinação (com uma forte adesão da população, ao contrário da resistência observada em quase todos os países europeus e da América do Norte). Há esperança de que uma taxa de vacinação elevada produza um resultado próximo da imunidade de grupo, pelo menos quanto a fatalidades. Tendo-se verificado ao longo de 2020 que nenhum dos medicamentos em uso produzia efeitos significativos no tratamento da infeção, um grande esforço foi posto na busca de novos fármacos e parece haver fortes indícios de sucesso a curto prazo. A Ciência mostra-se indispensável à sobrevivência do nosso modo de vida em sociedade.
Em busca do conhecimento
mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal
[Gen., 2, 17]
É da sua natureza, a aspiração dos humanos ao conhecimento para compreenderem o funcionamento do mundo em redor, dos outros humanos e de si próprios. Biologicamente, terá dado uma vantagem competitiva importante para a sobrevivência da espécie. A Ciência, como a conhecemos hoje, começa a desenvolver-se a partir do século XV europeu e o seu método fixou-se no século XVII com a validação sistemática dos novos contributos pelos pares. Primeiro, através dos membros das academias reais que intervinham a criticar as novas propostas que lhes eram apresentadas; hoje, através da avaliação formal dos contributos científicos por pares selecionados e pela sua publicação e exposição à crítica por toda a comunidade.
O método científico, tal como hoje é praticado, baseia-se sempre no enunciado de uma hipótese ou conjetura de explicação de uma observação que tem de ser validada por experiências ou observações empíricas. A hipótese ou conjetura tem de ser falseável, isto é, tem de ser possível demonstrar que ela é falsa e o cientista tem de trabalhar no sentido de verificar que a hipótese é verdadeira, mas também de explorar a possibilidade de ela ser falsa. Se for possível encontrar a prova de que ela é falsa, terá de ser abandonada. No caso de se provar a correção da hipótese e não se encontrar uma forma de demonstrar que é falsa, temos então uma hipótese cientificamente validada. Deve notar-se que, se não existir um caminho para a demonstração da eventual falsidade da proposta, esta não pode ser considerada como conhecimento científico. Isto significa que só é considerado conhecimento científico aquele que pode ser submetido ao teste da sua verificação ou falsificação.
Suponhamos que estamos a estudar a queda de um corpo na nossa sala de trabalho. Comparando o tempo de queda de um corpo de madeira e de outro semelhante na forma, mas de pedra, verificaríamos que a pedra cai mais rapidamente que a madeira. A hipótese a testar é de que “corpos de materiais mais densos caem mais rapidamente”. Esta hipótese seria facilmente validada testando várias bolas de materiais diferentes na nossa sala. Ficaria provada. Mais tarde, poderíamos repetir a experiência num ponto a grande altitude e, se a medição for de grande precisão, poderíamos verificar que o tempo de queda é diferente do que tínhamos medido na nossa sala, mas que os mais densos continuam a cair mais rapidamente. Pode suspeitar-se de que a baixa pressão atmosférica e maior altitude tem afinal um efeito que não fora considerado, mas a hipótese inicial continua válida. Se mais tarde uma experiência similar for feita a muito baixa pressão, idealmente no vazio, verificar-se-á que o tempo de queda das bolas de diferentes materiais é quase igual, começando a duvidar-se da hipótese inicial. As experiências poderiam prosseguir usando corpos de forma diferente para finalmente provar que a hipótese inicial é falsa e que afinal, no vazio, corpos de materiais diferentes caem todos no mesmo tempo, caem com a mesma aceleração. A hipótese inicial que terá sido aceite como cientificamente correta, foi assim falseada, passando-se a aceitar uma outra hipótese, a de que “todos os corpos caem (no vazio) no mesmo tempo” e que nas condições normais da nossa sala de trabalho a existência de ar interferia de modo invisível com a nossa experiência e levara a uma conclusão errada.
Este pequeno exemplo explica em que sentido teremos de aceitar que todos os resultados científicos são provisórios. Por mais bem provada que seja uma hipótese e por mais exaustiva que tenha sido a busca de falseamento da hipótese, poderá sempre, mais tarde, alguém encontrar novas condições em que a hipótese se mostre falsa e tenha de ser abandonada. No caso exposto acima, esse tempo decorreu desde os primórdios da humanidade e o seu conhecimento de “senso comum” ou experiência informal (conhecido na Idade Média pela sistematização devida a Aristóteles) até à demonstração por Galileu de que a aceleração de queda é independente do peso das bolas. No século seguinte, o grande tratado de Mecânica escrito por Newton durante a grande praga e o fogo de Londres, em 1666, sistematizou a moderna Mecânica que se mantém até hoje. De facto, houve já um aperfeiçoamento. Ao falar de aperfeiçoamento, estou a dizer que a Mecânica de Newton estava errada ou, mais rigorosamente, incompleta. Sabendo-se isto, ninguém abandonou o tratamento da maioria das situações pelas leis de Newton porque elas são rigorosamente verdadeiras na maioria das situações com que lidamos na nossa vida corrente. Contudo, em 1905, Einstein propôs um refinamento, a Teoria da Relatividade, que é muito importante quando lidamos com corpos a grandes velocidades, próximo da velocidade da luz. É neste sentido que estamos sempre disponíveis para corrigir uma lei da Ciência. Normalmente não é abandonada, mas aperfeiçoada no sentido de termos outra formulação em determinadas condições e só relevante nessas novas condições.
O exemplo acima da evolução de uma lei da Física poderia ser desenvolvido para a Química ou para a Biologia moderna. É diferente para áreas de grande complexidade em que seja difícil identificar todos os parâmetros que condicionam uma experiência ou uma observação como acontece tipicamente na saúde. Ainda mais difícil é o conhecimento das variáveis de controlo em Sociologia ou Economia. A alternativa é conduzir estudos estatísticos que permitem determinar a frequência com que ocorrem conjuntamente determinadas condições e daqui tentar inferir relações de causalidade. A inferência de causalidade é em geral muito frágil e por isso sujeita a frequente mudança de interpretação. Ainda que mais frágil do que o conhecimento das leis da Física, este conhecimento não deixa de ter validade científica porque satisfaz os princípios enunciados acima e tem-se mostrado de grande utilidade. Ao longo da pandemia COVID-19 todos tivemos uma brusca imersão neste ambiente de processo de construção do conhecimento científico.
A pandemia COVID como laboratório científico
alguns julgam-se grandes, porque sabem mais do que os outros, dedicando-se a impor-lhes exigências e a controlá-los
[Amoris Laetitia, 97]
A pandemia COVID-19 irrompe em princípios de 2020 numa Europa que inicialmente se sentiu demasiado segura de si, imune a este tipo de evento mais ligado aos espaços de pobreza social e sanitária da Ásia. Esta arrogância chocou com a realidade da saturação dos hospitais e as morgues de Bérgamo enquanto todos nos transformávamos em estudantes de pandemia (e “treinadores de bancada” sobre o melhor caminho a seguir). Ao longo dos meses seguintes, ouvimos notícia diária do que a Ciência dizia e do que a Ciência desdizia. Uma cacofonia difícil de enquadrar na imagem comum da Ciência com as suas leis aparentemente definitivas. Esta realidade vivida em condições de alguma angústia e muita dúvida merece uma reflexão e uma sólida explicação para evitar o potencial descrédito do que é o verdadeiro conhecimento científico.
Em primeiro lugar, deve dizer-se que a Europa e todo o mundo partiram de uma posição de vantagem que teria sido impossível há poucos anos porque o vírus fora já identificado e sequenciado antes de sair de Wuhan, China. Isto significa que se vencera uma etapa por vezes difícil e demorada. (Note-se o caso bem conhecido da Paramiloidose, uma doença hereditária muito antiga que só foi caraterizada em 1952 pelo médico Corino de Andrade, na Póvoa do Varzim. Antes disso, o tratamento era impossível e só a descrição detalhada abriu o caminho para o acompanhamento dos doentes com tratamentos mais eficazes que surgiram muitos anos depois.)
Em 23 de janeiro de 2020, foi aplicado em Wuhan o primeiro confinamento muito rigoroso para tentar parar a propagação do vírus. Apesar de muitos pensarem na altura que uma medida desse tipo seria inadmissível na Europa, os diferentes países começaram a seguir o mesmo procedimento semanas depois face à incapacidade dos sistemas hospitalares responderem à rápida expansão da epidemia. A maioria dos países sentiram-se forçados a seguir um caminho pouco claro alternando entre a abertura e o fecho de muitas atividades e o confinamento da população.
No relatório “Coronavirus: lessons learned to date” divulgado pelo parlamento britânico em 11 de outubro de 2021, aponta-se como grande erro na fase inicial da reação à pandemia “aceitar que a imunidade de grupo seria inevitável face à limitada capacidade de testagem, que seria improvável a disponibilização de uma vacina em tempo oportuno e que o público não aceitaria o confinamento”. Explica-se ainda que “o Reino Unido, e muitos outros países da Europa e da América do Norte, fizeram o erro grave de aceitar esta estratégia fatalista e não considerarem o caminho mais rigoroso e enfático de parar a difusão do vírus como muitos países do leste e sudeste da Ásia.” Como se reconhece que esta atitude governamental esteve sempre alinhada com a visão dos conselheiros científicos, a crítica é também dirigida à comunidade científica, sendo invocado que o painel escolhido poderia ter uma participação internacional.
Na Europa, o país que se aproximou mais de uma política de imunidade de grupo espontânea foi a Suécia que se manteve firme nessa posição até muito tarde, embora os seus responsáveis científicos tenham depois aceite a insegurança dessa estratégia. Como vimos acima, o resultado final é que os suecos tiveram menos vítimas (estimadas pelo excesso de mortalidade durante a pandemia) do que Portugal ou o Reino Unido, mas bastante mais do que os países nórdicos seus vizinhos. Uma sequela possível da imunidade de grupo é que a infeção teria de atingir quase toda a população, podendo causar sequelas a prazo que são ainda muito difíceis de avaliar.
Interessa compreender a segurança das posições baseadas no conhecimento científico e porque terá falhado, aparentemente, na condução da resposta à pandemia. O conhecimento científico permite compreender os factos observados e prever observações futuras, admitindo que não há alteração das condições ou que as condições não se alteram. Assim, em mecânica, é possível prever a trajetória de um corpo desde que as condições externas não se alterem. Se, por exemplo, a densidade ou até a humidade do ar se alterar a trajetória será diferente. Na previsão da evolução de uma pandemia temos de considerar muitas condições relativas à população, ao seu comportamento social e à influência do ambiente. E temos de considerar a natureza do vírus, neste caso, um vírus novo de propriedades desconhecidas. As previsões iniciais dos cientistas e dos médicos mais experientes pela sua prática profissional baseavam-se na presumida analogia com a propagação de infeções por outros vírus, não se sabendo se este seria muito diferente. O que foi sendo aprendido pela funesta experiência de muitas populações é que este vírus era mais contagioso do que outros e que determinados grupos populacionais eram mais sensíveis. Todas estas propriedades do vírus não são (hoje) previsíveis pelo conhecimento do seu genoma e da sua estrutura bioquímica. As interações do vírus com os humanos são demasiado complexas para serem (ainda hoje) compreendidas ao ponto de se poder prever o seu comportamento. Por esta razão, tudo o que os cientistas podem fazer é estudar estatisticamente que tipo de pessoas é mais sensível e em que tipo de pessoas há maior morbilidade. Esta forma de conhecimento, pelo estudo estatístico de grandes populações descritas por algumas caraterísticas que se presume possam ser relevantes e influenciar a observação, é caraterístico dos domínios mais complexos que (ainda) resistem a uma descrição simples. Em Física, estamos muitas vezes a lidar com situações reais complexas, mas procuramos alguma forma de simplificação reduzindo a nossa análise às variáveis mais importantes e, assim, construímos modelos que apenas reproduzem parte da realidade mais complexa. O enorme sucesso da Ciência resulta desta capacidade humana de simplificar uma realidade complexa identificando o que parece ser mais importante para os factos em estudo.
O progresso do conhecimento científico faz-se (normalmente) por pequenos passos que são propostos (tese validada pelo proponente) e depois verificados por outros (resultado reprodutível por outrem) até serem aceites por toda a comunidade. E, como dissemos atrás, toda a lei científica está sempre sob escrutínio no sentido de serem procuradas condições em que ela falhe, isto é, ser eventualmente aperfeiçoada pela consideração da influência de um novo parâmetro.
No caso da pandemia COVID-19, a comunidade científica e profissional médica partiu do conhecimento disponível para viroses semelhantes, especialmente as causadas por vírus da mesma família, a SARS (2003) e a MERS (2012). O otimismo inicial (a rondar a arrogância) dos europeus resultou de estes coronavírus terem poupado a Europa. Não tivemos a mesma sorte em 2020 e a propagação da epidemia passou rapidamente da China para a Europa. Apesar dos enormes danos causados, especialmente aos mais velhos, e da inédita paragem brusca da economia a nível quase global, só o sucesso da ciência na produção de vacinas em tempo pensado impossível criou alguma esperança de que a vida social e económica pudesse regressar ao normal. O desenvolvimento de novos medicamentos e de novas vacinas é um processo muito lento devido ao trabalho criativo da investigação de novas substâncias potencialmente interessantes e, depois, dos testes exaustivos que são exigidos antes da distribuição à população. Para uma vacina que se esperava distribuir a toda a humanidade, o risco de algum efeito secundário raríssimo ocorrer era ainda muito maior porque iria ser distribuída (potencialmente) a perto de oito mil milhões de indivíduos, a maioria saudáveis, mas muitos sofrendo de outras doenças. Se um medicamento para uma doença grave com o risco de 20% de efeitos secundários também graves é considerado bom para uma situação em que a própria doença já é um risco de vida, para uma vacina com este alcance, um risco de efeito secundário de 0,1% é já assustador porque iria atingir (potencialmente) oito milhões de pessoas!
Numa situação complexa como é o estado sanitário de uma população humana, o meio de observação resulta da informação coligida por médicos de saúde pública e, principalmente, médicos de família e hospitalares. Face à enorme quantidade e à fragilidade desta informação, recorre-se a uma análise estatística acreditando que o tratamento de um grande número de observações tenderá a dar médias consistentes que atenuem ou eliminem os erros inevitáveis de cada observação. Assim aconteceu com a informação que ia sendo disponibilizada sobre a pandemia, tal como acontece com a descrição da generalidade das patologias e com características sociais.
Sucessos e insucessos da Ciência
Eu não falhei! Descobri coisas que não funcionam.
[Thomas Edison]
Confrontados com um desafio novo, a humanidade recorreu à Ciência para tentar atenuar as suas consequências. Começou por fazer a descrição da nova síndrome e, depois, a identificação e sequenciação do novo vírus. De seguida, recomenda os procedimentos sanitários que tinham sido usados no passado para vírus semelhantes. Como estas crises recentes (SARS em 2003 e SERS em 2012) tinham tido um impacto relevante na Ásia, alguns países estavam razoavelmente preparados e tiveram reações rápidas e muito firmes. A Europa não tinha experiência e considerou que as medidas (conhecidas) tomadas na China não seriam apropriadas em países democráticos. Acresce que não era claro que medidas seriam eficazes e, especialmente, se um forte confinamento de toda a população com paragem de muitas atividades económicas seria necessário e eficaz. A experiência existente, que podemos dizer científica, nunca tinha sido testada na Europa nem nas américas. Daí as reações iniciais bastante tímidas e inseguras dos resultados esperáveis. E a dúvida se não seria mais eficaz esperar pela imunidade natural resultante da propagação da infeção por (quase) toda a população. A estratégia passiva de esperar pela imunidade natural foi abandonada quando começou a ser claro que os danos sanitários eram demasiado altos, muito para além da gripe sazonal.
O conhecimento do impacto sanitário do novo vírus, como para qualquer outra doença, só pode ser conhecido por um estudo estatístico. Isto significa que só depois de a infeção se difundir numa população poderão ser determinados os efeitos típicos e a morbilidade. O mesmo se pode dizer das estratégias de tratamento, começando pelos medicamentos conhecidos para outras situações semelhantes. Como se disse acima, só podemos falar em conhecimento científico destas realidades depois de testar várias hipóteses e de verificar que as conclusões de um investigador são reprodutíveis por outros estudos. Ao longo destes meses, os meios de comunicação social reproduziram regularmente estudos muito preliminares que não tinham passado pela usual validação pelos pares e, muito menos, pela verificação da reprodutibilidade. Há uma enorme diferença entre “resultados de estudos científicos” e o “conhecimento científico”. Um resultado só passa a ser considerado conhecimento quando é validado pelos pares e resiste às tentativas de falsificação. Em boa verdade, a urgência da situação não permitia o curso normal do processo científico e as hipóteses em teste, ainda que muito inseguras, já poderiam ter algum interesse público.
Correu-se o enorme risco de dar uma falsa imagem do processo científico. Temos trezentos anos de experiência que mostram a enorme robustez das “verdades” científicas, embora estejam sempre abertas à discussão e à revisão. Todos os dias se procura rever e aperfeiçoar o que é aceite como “facto científico”, mas isto não significa que cada um possa legitimamente escolher acreditar ou não nesse “facto”. Em matérias muito complexas e com muitas variáveis fora do controlo do investigador, os resultados científicos não podem ser apresentados como “leis” ou “factos”, mas antes como resultados mais prováveis nas condições da experiência ou da observação e sempre a requerer estudos adicionais. Tal como no caso da pandemia, o decisor político deverá tomar decisões informadas pelo melhor conhecimento científico atual, mas tem um grande espaço de escolha política, isto é, de ponderação das prováveis consequências de cada uma das alternativas que lhe são propostas. Esta complexidade e espaço de escolha não justifica que os decisores políticos prefiram a ignorância ao conhecimento científico não definitivo. Portugal (e outros países do sul da Europa) não têm ainda estruturas de aconselhamento científico do Governo nem do Parlamento (e, muito menos do poder judicial). Justifica-se um aconselhamento científico estruturado que prepare o que é o consenso da comunidade científica em cada momento, aponte este consenso claramente um caminho ou sugira, com alguma ambiguidade, vários caminhos possíveis. Tem sido assim na pandemia COVID-19. É assim, e é ainda mais sério, no problema do impacto humano no clima (e do impacto das mudanças climáticas na sociedade) e nos recursos naturais deste nosso planeta.
Universidade da Maia, 13 de outubro de 2021
Em publicação em Saber & Educar, http://revista.esepf.pt/index.php/sabereducar
1. https://www.thelancet.com/article/S0140-6736(20)32750-1/fulltext
2. https://www.ft.com/content/a2901ce8-5eb7-4633-b89c-cbdf5b386938
3. Número de vítimas confirmadas diariamente (média de 7 dias) por milhão de habitantes, [Johns Hopkins University CSSE COVID-19, https://ourworldindata.org/coronavirus#coronavirus-country-profiles

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

O ensino superior privado aos 30 anos

O setor privado do ensino superior representa hoje cerca de 20% do total, depois de ter ultrapassado os 40% em finais do século passado. De facto, a explosão do acesso ao ensino superior deu-se na década de 1985-95, com um crescimento de cerca de 14% ao ano neste período. Sendo o setor estatal incapaz de responder a um crescimento tão rápido, a oportunidade foi bem aproveitada pela iniciativa privada. Para os governos da época, este escape da pressão social no acesso foi bem recebido. Só mais tarde se veio a regulamentar esta oferta privada enquanto as instituições públicas se adaptavam e criavam condições para dar a resposta pedida pelos jovens que terminavam o ensino secundário. Alguns casos patológicos foram corrigidos ou simplesmente desapareceram, algumas vezes com estrondo. Com a entrada em funcionamento da Agência de Avaliação e de Acreditação, A3ES, critérios uniformes de funcionamento de cursos de licenciatura, mestrado e doutoramento foram aplicados a todas as instituições, públicas e privadas, universitárias e politécnicas e estamos hoje em velocidade de cruzeiro com boas razões para justificar a confiança que em geral merecem de estudantes, famílias e empregadores.
Em relação aos Estados Unidos, a Europa do pós-guerra atrasara-se na expansão do ensino superior. Portugal mantinha o ritmo de expansão de cerca de 6% ao ano, mas a alguma distância. Mesmo em relação à Espanha, o atraso era notório, apesar da destruição provocada pela guerra civil e pelo seu longo isolamento político, e só emendámos o passo por volta de 1990. Na Europa Ocidental, o ensino superior privado tem uma tradição recente e quantitativamente pouco importante, só retomando um crescimento lento, mas sustentado nos últimos anos. Na América Latina, as dificuldades do setor público levaram à expansão do setor privado. Em vários países, o setor privado confessional, principalmente católico, mantém um fortíssimo prestígio nas áreas académicas profissionais e atrai os jovens socialmente mais bem colocados para a renovação geracional da elite.
Em Portugal, o setor privado conseguiu consolidar-se nos últimos anos, resistindo à tendência de estabilização da população estudantil e à pressão demográfica negativa. As reformas de 2007, forçaram o conceito de que todo o ensino superior deveria estar ligado à investigação científica, uma norma que não é seguida em nenhum outro país devido aos elevados custos da investigação e às preocupações profissionalizantes crescentes, à medida que a percentagem da coorte jovem que lá chega passa os 50%. Nos Estados Unidos, uma elite universitária tem sede em velhas fundações do século XVII a XIX com grande reconhecimento social e enormes fundos de reserva. O setor privado com fins de lucro é significativo, mas não tem registo de investigação e tem grandes problemas reputacionais. A grande maioria dos estudantes é acolhida por universidades e Community Colleges estaduais e a investigação está no mandato de algumas poucas universidades. Cerca de 2/3 dos estudantes frequentam cursos de 2 anos em Community Colleges sem qualquer contacto com a investigação. No Reino Unido as velhas universidades medievais de Oxford e Cambridge mantêm o seu estatuto de ancien régime e o seu enorme património constituído no século XVI (beneficiando da extinção dos mosteiros por Henrique VIII), mas dependem de facto do financiamento público da maioria dos seus estudantes e da investigação. Portugal tenta estabilizar hoje um sistema estatal constituído por uma rede de universidades e uma rede de institutos politécnicos e ainda um setor privado, todos com a obrigação de atividade em investigação. Dentro do setor estatal, o ensino superior é relativamente “barato” e muito barato quando comparado com o básico e secundário. Os custos por estudante são muito próximos. Em França , por exemplo, o financiamento estatal por estudante é maior nas universidades (10440 €/est.) do que nas escolas básicas e secundárias (6980 e 9850 €/est.) e ainda muito maior para os estudantes do ensino superior curto (14200 €/est.) e para o ensino de elite (15730 €/est.). (Para a plena apreciação destes valores deverá ser considerado que o PIB per capita português é 58% do francês.)
Ao fim de 30 anos, o ensino superior privado tem conseguido manter-se num ambiente claramente adverso pelo financiamento estatal do funcionamento e do investimento das suas instituições. E tem conseguido fazer a transição para o ambiente de investigação com alguma segurança. Será claro que a competição com um setor estatal gratuito depende dos limites quantitativos deste ou de uma perceção generalizada das suas fragilidades. O sucesso a médio prazo depende da consolidação da imagem muito positiva de que alguns cursos em algumas instituições já gozam. A exemplo do que acontece com a oferta privada na saúde e no ensino não superior, este é um caminho possível.
In: Jornal Público, 13 de dezembro de 2021