quarta-feira, 10 de novembro de 2021

A educação em tempos de COVID

Ao completar-se o primeiro semestre da pandemia COVID-19, parece que as gerações mais jovens são em geral poupadas pelo vírus, mas poderão ser as principais vítimas da destruição das economias e, mais imediatamente, do abandono dos sistemas educativos. No oriente e, depois, no ocidente, os governos pensaram inicialmente que seria mais um problema que não chegaria a sê-lo. Rapidamente, compreenderam que o problema ultrapassava o conhecido e, tardiamente (como não poderia deixar de ser), aplicaram medidas nunca testadas e com resultados imprevisíveis. Foi então que o sistema educativo ruiu num fim de semana, sem aviso prévio nem espaço de apelo. Foi dito que seria possível fechar a sala de aula na sexta para estarem todos no internet na segunda de manhã. Uma mentira conveniente para políticos que não tinham outra saída, para professores que procuravam uma justificação para o seu abandono da escola, para os alunos que tinham de recriar alguma forma de ocupação e para os pais que tinham de propor um objetivo aos seus educandos. Demasiado lentamente, foi-se verbalizando o vazio que estava a ser criado e, só mais tarde, aceitando que as consequências seriam muito funestas.
Nos países mais ricos e com aparelhos de estado mais desenvolvidos, fazem-se estudos, ensaios e simulações para as situações mais diversas com a intenção de proteger os cidadãos e a economia de choques inesperados. As autoridades políticas procuram passar a mensagem de que todos se devem sentir seguros porque a proteção civil, militar e sanitária se mantém alerta e preparada. O surto COVID-19 demonstrou quão frágil é toda esta organização. Foi muitas vezes usada a analogia com a guerra. Também aqui, como em muitas guerras reais passadas, os exércitos começam a combater com as estratégias e as armas da guerra anterior para rapidamente descobrirem que tudo tem de ser reinventado e que novas armas e novas estratégias têm de ser desenvolvidas, experimentadas e usadas. Os custos humanos desta perpétua impreparação são elevadíssimos e os resultados são quase sempre incertos pelo inédito da realidade que se vai progressivamente construindo nos campos de batalha. Só nos livros de história escritos a posteriori pelo vencedor se racionaliza a explicação para uma vitória que se vê então como segura desde o primeiro tiro. Dos derrotados não há notícia nas bibliotecas, ou porque simplesmente morreram antes de chegarem às estantes, ou porque a sua visão foi passada pelo fogo purificador do lado vencedor.
Ultrapassado o primeiro semestre de crise, começa a ser possível fazer uma análise mais fria e realista do que foi feito, bem e mal, embora, o futuro continue ainda totalmente incerto. Na economia, aceita-se já que as consequências a médio prazo serão muito pesadas, mas não há ainda uma medida segura desse peso. Na educação, os estados desvalorizam o semestre perdido, mas são ainda incapazes de avaliar o melhor caminho para o futuro imediato. Com o que sabemos hoje, o ano escolar de 2020/21 apresenta riscos e enormes ameaças para os jovens a viver o seu percurso educativo. Sem uma população imunizada, não haverá normalidade e não há outra escola pronta para ser assumida. Nesta altura, estima-se que a imunização natural seja muito baixa, sempre inferior a 10% da população e a vacina é ainda uma miragem. De muitas propostas pouco se sabe e aquelas que estão na boca de cena noticiosa poderão não ser as mais eficazes e seguras. Apesar disso, os países mais ricos (ou com eleições mais próximas) estão a garantir a compra de enormes quantidades com custos superiores a 20€ por inoculação[1]. E, face à incerteza, procuram garantias firmes de vários potenciais fornecedores.
Embora não houvesse já memória disso, o encerramento das escolas continuava no arsenal dos profissionais da epidemiologia e a arma foi usada em todo o mundo. Para os mais velhos, retomamos o encerramento das escolas no outono de 1957. Nessa altura[ii], os mais atingidos pela gripe asiática foram as crianças e jovens adolescentes e bastou o encerramento durante algumas semanas e apenas nas escolas mais atingidas pelo absentismo dos alunos. Também nessa altura, houvera pequenas notícias do surto na Ásia na (nossa) primavera, e a Organização Mundial de Saúde anunciara no início do verão que o surto não atingiria provavelmente a Europa. No sistema escolar, um atraso no início das aulas terá sido facilmente recuperado. A realidade é agora muito diferente.
O trabalho escolar da segunda metade do ano de 2019/20 foi efetivamente perdido com o encerramento de todo o sistema educativo em 13 de março. O desconfinamento começou em maio, mas foi então decidido dar prioridade aos exames, especialmente aos exames finais do secundário pelo seu impacto social (e político) no acesso ao ensino superior. Terá sido uma decisão prudente por minimizar o risco de difusão da pandemia tomando os jovens escolares como vetores, mas o impacto na grande maioria das crianças e jovens foi consolidado pelo seu afastamento das escolas de março a junho. Esta realidade foi suavizada pelo esforço dos professores para passarem a algum tipo de ensino a distância pela internet e, a partir de 20 de abril, com o “EstudoEmCasa”, um projeto nacional de aulas pela televisão. O esforço foi muito meritório, mas dificilmente poderia ir além de uma forma de terapia ocupacional dos jovens. De facto, o ensino a distância para estas idades só é recomendado como último recurso em situações de absoluta impossibilidade da presença física na escola e sempre com o envolvimento personalizado pelos canais disponíveis. A componente social da aprendizagem e da vida escolar não são substituíveis. A realidade é mais grave quando se considera a enorme assimetria das condições de aprendizagem dos alunos em função da sua residência, do apoio familiar e até do acesso à internet ou da disponibilidade de um computador pessoal. É o reconhecimento generalizado desta realidade que leva à enorme pressão para que se tente iniciar o ano escolar de 2020/21 em condições mais próximas da normalidade presencial na escola. Muitos outros países deram prioridade à reabertura das escolas (pré-escolar e infantários) para os mais jovens, mas todos reconhecem os efeitos danosos que tentam agora atenuar. Estes efeitos negativos estão a ser consolidados pela tendência para uma baixa drástica da taxa de retenção e uma subida generalizada das classificações o que desvaloriza os futuros diplomas[iii] e dá uma falsa sensação de conforto que dispensará o necessário trabalho de recuperação.
No ensino superior, a realidade não é muito diferente, embora a autonomia potencial dos estudantes atenue um pouco o impacto do súbito encerramento das instituições. Também aqui, o esforço de docentes e de toda a organização não poderia permitir a transição sem uma perda muito relevante. O ensino a distância é uma alternativa pobre e não recomendada para jovens adultos que possam aceder ao modo presencial (ou híbrido) e uma aula oferecida numa plataforma de videoconferência seguida de alguns trabalhos de casa não qualifica como ensino a distância. Exames sérios são uma componente muito importante do processo de ensino e aprendizagem e nem sempre foi possível organizá-los. A falha de uma avaliação rigorosa pode parecer uma resposta simpática às dificuldades de (alguns) estudantes, mas significa uma perda de aprendizagem e uma desvalorização do diploma que prejudica mais os estudantes oriundos de famílias socialmente mais frágeis. Universidades e institutos politécnicos terão de fazer um enorme esforço para atenuar no ano de 2020/21 o impacto das condições sanitárias que poderão ser ainda muito adversas.
 José Ferreira Gomes
Professor Emérito
Universidade do Porto
In:  O Economista2020, p. 73-75, , pp ??

[ii] George, F., Rodrigues, B., Carreira, M., Gripe em Lisboa 1957 e 2008, https://www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/gripe-em-lisboa-1957-e-2008-pdf.aspx

[iii] Adji, C., Réussite aux examens post-Covid : des résultats trop beaux pour être vrais ?, https://theconversation.com/reussite-aux-examens-post-covid-des-resultats-trop-beaux-pour-etre-vrais-142738