quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O Ensino Superior Politécnico em Portugal

Resumo 
A função do ensino superior politécnico é cada vez mais reconhecida nas sociedades modernas onde a participação no ensino superior se aproxima ou ultrapassa já os 50% da coorte jovem. A recomposição do mercado de trabalho de graduados que tem ocorrido nos países desenvolvidos e também chegou já a Portugal cria novas oportunidades para os licenciados pelas instituições politécnicas na medida em que o cariz profissionalizante é mais valorizado pelos empregadores, pelos estudantes e pelas famílias. São discutidas várias estratégias que poderão ser seguidas para tornar mais transparente para todos os parceiros a natureza das várias ofertas de ensino superior, passando pelos mecanismos de acesso, pela proximidade das atividades profissionais e pelas atividades de investigação desenvolvidas pelos docentes e envolvendo estudantes.

Argumentário
A natureza binária do nosso ensino superior significa que temos dois tipos de instituições, classificadas como universitárias e politécnicas. Como na generalidade dos países, em Portugal o ensino superior desenvolveu-se a partir da velha universidade medieval, a Universidade de Coimbra (Lisboa, 1290) por (1) crescimento orgânico com mais alunos e novos cursos, pela (2) criação de novas universidades seguindo um modelo e perseguindo objetivos similares e pela (3) assunção de novas áreas de educação e formação anteriormente lecionadas no ensino não superior; adicionalmente, (4) algumas escolas de ensino não superior foram transformadas em instituições de ensino superior que se pretenderam de tipo novo para manter uma forte vocação profissionalizante e (5) foram criadas novas instituições deste último tipo. A Universidade de Coimbra manteve-se como única instituição com o estatuto de universidade em todo o império português até ao fim da monarquia, com excepção da universidade jesuíta de Évora, de 1557 a 1757. Com a expulsão dos jesuítas, Coimbra retomou o seu estatuto único e o Marquês de Pombal pôs todo o seu empenho e força política para a sua modernização. A rede pública de institutos politécnicos foi, no essencial estabelecida no início da década de 1980, na sequência dos apoios externos solicitados ao FMI e ao Banco Mundial.
Assim chegamos aos nossos dias com um sistema binário cujas limitações todos conhecemos, ao ponto de haver muitos observadores independentes que não reconhecem as diferenças ou o interesse público de manter e reforçar a diferenciação. Deve reconhecer-se que, em termos de visão estratégica, o ensino politécnico esteve quase sempre esquecido pelos decisores políticos ao longo de toda a sua história. (1) As marcas próprias do ensino politécnico foram sempre mantidas nos instrumentos legislativos fundamentais mas não foram criados mecanismos de acompanhamento e de verificação da sua aplicação. (2) Não foram criadas políticas públicas de desenvolvimento das instituições politécnicas em contraponto às políticas de desenvolvimento da investigação científica mais focadas na instituição universitária. (3) Se não foram desenvolvidas práticas suficientemente diferenciadas do ensino universitário e politécnico, também não foi bem estabelecido que áreas do saber deveriam estar em cada um dos dois subsistemas. (4) A carreira docente do ensino superior politécnico público acabou por convergir (em 2009) para um modelo muito próximo do universitário, vindo a dificultar o espaço de diferenciação. Por esta enumeração sumária deve concluir-se que a diferenciação entre o ensino universitário e politécnico não é impedida mas faltam os estímulos para que a diferença seja cultivada e percebida pelos estudantes, famílias e empregadores. A necessidade de diferenciação aumenta à medida que a população atinge níveis mais elevados de educação (ver figura[3]). Passámos de cerca de 2% da população maior de 15 anos com um grau superior em 1970 para 15,8% em 2015 e pode prever-se que atinja os 30% em 2050. Temos já hoje 40% da coorte de 20 anos no ensino superior e, com a introdução dos TeSP, a taxa de acesso saltará de imediato cerca de 5% para crescer depois a um ritmo mais alto pelo acesso de estudantes com o secundário profissional.
Embora alguns institutos politécnicos admitam mais estudantes em concursos locais do que pelo Concurso Nacional de Acesso, a enorme visibilidade deste concurso dá uma imagem negativa, de segunda classe, das licenciaturas politécnicas porque as primeiras preferências estudantis expressas neste concurso vão em geral para cursos universitários e sobram sempre muito mais vagas no ensino politécnico para serem depois preenchidas pelos concursos locais. É difícil compreender a existência de dois tipos de percursos educativos que se pretendem com objetivos diferentes e manter um único concurso de acesso que usa os mesmos critérios para seriar candidatos a universidade e a institutos politécnicos. Havendo objetivos diferentes e, presumivelmente, sendo necessárias competências e capacidades algo diferentes, deveriam ser usados instrumentos de seriação diferentes.
A oferta de ensino superior disponível aos estudantes que terminam o secundário deverá tornar-se mais compreensível para os candidatos e as famílias. Esquematicamente, é hoje composta por três tipos de educação superior.
  • TeSP, cursos de Técnico Superior Profissional. Melhor sintonizado com a via profissional do secundário, caracteriza-se pela entrada mais rápida no mercado de trabalho. Tem a duração de 2 anos, incluindo já um estágio profissional de 6 meses que deve preparar o estudante para a ocupação imediata do posto de trabalho.
  • Licenciatura politécnica[4]. Um ciclo de estudos de 3 anos com cariz profissionalizante que deve habilitar o estudante a entrar imediatamente no mercado de trabalho.
  • Mestrado Integrado ou Licenciatura universitária. O Mestrado Integrado tem a duração de 5 (ou 6) anos e habilita o estudante para um setor profissional específico depois de lhe dar uma formação básica e setorial próximas da fronteira dos conhecimentos. A Licenciatura universitária dá a formação básica numa área do conhecimento, habilitando o estudante a prosseguir estudos de Mestrado numa área conexa. Completados os 3 primeiros anos de um Mestrado Integrado, o estudante pode requerer o diploma de Licenciado que demonstra a posse de conhecimentos e compreensão numa determinada área de formação e as competências de aprendizagem ao longo da vida com elevado grau de autonomia[5].
Cada tipo de educação superior deve ocorrer num ambiente propício a uma experiência estudantil rica e focada nos objetivos desse ciclo de estudos. É isso que é exigido aos institutos politécnicos ao criarem TeSP, tal como as escolas politécnicas existentes em algumas universidades devem oferecer um ambiente de aprendizagem e uma experiência educativa próprios, bem diferenciados dos universitários.
Diplomas em 2014/15[6]
E. S. Universitário
E. S. Politécnico
Total
CET
1 003
4 058
5 061
Licenciatura
27 757
19 423
47 180
Mestrado
20 664
4 020
24 684
Doutoramento
2 351
0
2 351
Total
51 775
27 501
79 276


Os dados relativos aos diplomas concedidos pelas instituições de ensino superior em 2014/15 sugerem que a grande maioria (75%) dos estudantes que completam uma licenciatura universitária seguem para mestrado enquanto apenas 20% dos licenciados no politécnico seguem para mestrado. Esta conclusão pode ser precipitada (ou, pelo menos, exagerada) porque muitos licenciados politécnicos seguem para um mestrado universitário e muito poucos farão o percurso inverso. Esta análise abre a porta à discussão do objetivo do mestrado. Se no universitário, parece razoável pensar que assuma a função de complemento de formação mais focado que a licenciatura numa área profissional mais ou menos alargada, no politécnico a função terá de ser diferente porque a licenciatura já deve ser profissionalizante. Teremos de imaginar objetivos de aprofundamento e de especialização para a licenciatura politécnica, o que parece ser em geral confirmado pela oferta atual das instituições. Esta visão dos objetivos das licenciaturas e dos mestrados, universitários e politécnicos, pode fundamentar-se na legislação, em especial no regime de graus e diplomas (Decreto Lei nº 74/2006). No entretanto, essa fundamentação não é suficientemente explícita para que a A3ES (Agência de Avaliação e de Acreditação do Ensino Superior) tenha encontrado justificação para induzir uma diferenciação clara e bem compreensível entre os graus académicos do ensino universitário e do ensino politécnico.
Ao contrário da maioria dos países com sistemas binários, em Portugal, os docentes do ensino politécnico têm uma missão de investigação, mais exatamente, “realizar atividades de investigação, de criação cultural ou de desenvolvimento experimental” nos termos do seu Estatuto de Carreira[7] no setor estatal. O resultado é termos hoje a maioria dos docentes em dedicação exclusiva, o que criou uma importante bolsa de investigadores. Note-se que, no sistema estatal, temos cerca de 10 000 docentes universitários e cerca de 6 000 politécnicos. O Sistema de Ciência e Tecnologia (SCTN) construído nos últimos 30 anos, desde a nossa adesão à então CEE, sempre ignorou qualquer especificidade do ensino politécnico, encorajando os seus docentes a concorrer em associação ou em competição com os seus colegas universitários. Esta opção não poderia senão enfraquecer a diferenciação que a legislação do ensino superior procura afirmar.

Conclusões
Reconhece-se a necessidade de manter e reforçar a diversidade dos tipos de ensino superior atualmente existentes. O ambiente educativo criado pelas instituições deverá acompanhar e apoiar essa diversidade, o que recomenda a manutenção do sistema binário que existe em Portugal desde 1980 (depois de o caminho ter sido apontado em 1973).
Reconhece-se que a diferenciação institucional e a sua percepção por estudantes, famílias e empregadores é muito frouxa e só políticas activas de estímulo desta diferenciação permitirão que se atinja o objetivo sempre reafirmado.
De entre as áreas de atuação onde políticas de diferenciação devem ser consideradas parecem muito importante as seguintes.
  • Clarificação da diferenciação entre as licenciaturas universitárias e politécnicas;
  • Revisão dos mecanismos gerais de acesso às licenciaturas politécnicas e às licenciaturas ou mestrados integrados universitários que devem usar indicadores diferentes para medir o potencial do candidato para ter sucesso no ciclo de estudos a que se candidata;
  • Criação de mecanismos de apoio à investigação científica ou[8] “criação, transmissão e difusão da cultura e do saber de natureza profissional, através da articulação do estudo, do ensino, da investigação orientada e do desenvolvimento experimental”.
O Ensino Superior Politécnico em Portugal
Apresentado no Encontro Nacional dos Politécnicos, FNAEESP, Valença, 29/out/2016
José Ferreira Gomes[2]
Universidade do Porto


[1] Apresentado no Encontro Nacional dos Politécnicos, FNAEESP, Valença, 29/out/2016.
[2] Página pessoal em http://www.fc.up.pt/pessoas/jfgomes/ e blog em http://maissuperior.blogspot.pt/.
[4] Nº 3 do Artº 8º do Decreto Lei nº 74/2006: No ensino politécnico, o ciclo de estudos conducente ao grau de licenciado deve valorizar especialmente a formação que visa o exercício de uma atividade de caráter profissional, assegurando aos estudantes uma componente de aplicação dos conhecimentos e saberes adquiridos às atividades concretas do respetivo perfil profissional.
[5] Art.º 5º do Decreto Lei nº 74/2006. 
[6] Elaborado a partir dos dados RAIDES15 da DGEEC, http://www.dgeec.mec.pt/np4/EstatDiplomados/ em 11 de outubro de 2016.
[7] Estatuto da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico na redação que lhe foi dada pela revisão feita pelo Decreto-Lei nº 207/2009 de 31 de Agosto.
[8] No Artº 7º do regime jurídico das instituições de ensino superior, Lei n.º 62/2007 de 10 de Setembro.

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