segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Objetivos da educação para 2029

Após as eleições legislativas de 18 de maio de 2025 e depois de dois ciclos políticos muito curtos tem sido alimentada a esperança de que possamos ter um governo de legislatura. Isto, apesar da dispersão de votos pelos três partidos mais representados na Assembleia da República. O espaço dedicado à educação nos programas eleitorais destes partidos era muito comparável, mesmo numa leitura rápida, surgem diferenças muito acentuadas no grau de concretização das propostas. Compreensivelmente, o partido incumbente apresentava objetivos mais concretos e alinhados com os objetivos assumidos na União Europeia na comparação dos seus 27 estados-membro.

Objetivos gerais

Em termos de melhoria das aprendizagens escolares dos nossos jovens, o grande objetivo da Aliança Democrática é recuperar até 2029 a perda de posição observada nos últimos anos no teste PISA que é organizado pela OCDE. De facto, tinha-se em 2015 uma posição muito próxima da média da OCDE que foi sendo perdida nas edições do PISA de 2018 e de 2022. A proposta é que em 2029 se vá além do conseguido em 2015, ultrapassando a média internacional. E era só a AD que apresentava um objetivo concreto para a melhoria das aprendizagens escolares.
A estratégia proposta para chegar a este resultado é bastante suave, certamente, para não criar mais instabilidade na vida dos professores e no ambiente escolar. Uma das medidas é manter o novo tipo de exames já introduzido no 4º e no 6º ano de escolaridade, propondo maior exigência e relevância.
  • Participação na educação das crianças entre os 3 anos e o ensino obrigatório: mais de 96%;
  • Abandono escolar precoce (jovens de 18 a 24 anos que não completaram o ensino secundário e não estão no sistema escolar): menos de 9%;
  • Compreensão da leitura (jovens de 15 anos com baixo desempenho no teste PISA): menos de 15%;
  • Literacia em Matemática (baixo desempenho no teste PISA): menos de 15%;
  • Literacia científica (baixo desempenho no teste PISA): menos de 15%;
  • Literacia digital (baixo desempenho no teste PISA): menos de 15%;
  • Diplomados pelo ensino superior na faixa etária dos 25 aos 34 anos: mais de 45%;
O gráfico acima ilustra a posição de Portugal e de diversos países de referência face aos objetivos para 2030. Vemos que nos indicadores PISA, Portugal regista um atraso onde está acompanhado pela Espanha, França. Na literacia digital (medida pelo teste ICILS, um teste organizado por um consórcio internacional onde participa o IAVE, Instituto de Avaliação Educativa) a UE propõe um objetivo ainda distante de todos os países. Dos países selecionados para a figura, a Estónia salienta-se pelo bom desempenho em todos os indicadores, apenas sendo convidada a melhorar o abandono precoce dos atuais 11% para o objetivo de 9%. Note-se que Portugal já ultrapassou este objetivo, mas é convidado a melhorar os indicadores PISA. Daí a ênfase posta na proposta da AD. Para o número de diplomados pelo ensino superior no intervalo etário dos 25 a 34 anos, Portugal está muito perto do objetivo proposto, assinalando-se a posição de Espanha e França já bastante mais avançadas. Deve notar-se que o avanço destes dois países está ligado ao elevado número de diplomados com cursos equivalentes aos nossos TeSP, cursos Técnicos Superiores Profissionais. Os valores destes indicadores podem também ser vistos na tabela seguinte.
Alguns destes indicadores mereciam uma avaliação mais fina porque dependem do desempenho do sistema escolar, mas também das transformações da sociedade. No caso português, é notório que o número de diplomados jovens é já muito afetado pela emigração jovem que se manterá elevada enquanto a nossa economia não nos aproximar dos parceiros mais próximos oferecendo aos jovens as oportunidades que hoje rareiam. Do outro lado, a nossa imigração é, sobretudo, jovem e de baixas qualificações pelo que também afetará o indicador e atuará no mesmo sentido da emigração. O crescimento da imigração de baixas qualificações vem responder a necessidades reconhecidas da nossa economia, mas, se estes imigrantes permanecerem em Portugal a longo prazo, vai pesar nas “baixas qualificações dos portugueses” que têm sido apresentadas como razão importante para as dificuldades da economia, particularmente nos setores de maior valor acrescentado. Os países europeus que recebem imigração (pouco qualificada) há mais tempo têm hoje um problema difícil com a segunda e terceira geração desses imigrantes. Os indicadores acima refletem este problema apesar das políticas de integração adotadas pela via escolar. Em Portugal, por enquanto, este problema põe-se apenas na tentativa de integração escolar das crianças que não falam português e, em muitos casos, não falam nenhuma língua europeia. Este é o problema difícil de hoje e outros problemas virão depois. O grande desafio da escola no último quarto de século foi abrir-se a todos os jovens menores de 18 anos, oferecendo diversos percursos para satisfazer esse novo público. Surge agora a necessidade de integrar na escola muitos imigrantes ou filhos de imigrantes recentes.

A Educação Superior e a Ciência

Na Educação Superior promete-se um impulso reformador só comparável ao dos anos 2005-2009, começando pelo abandono da expressão Ensino Superior para assumir o termo mais abrangente de Educação sempre preferido em língua inglesa e abandonando a preferência francesa pelo Enseignement Supérieur. Na primeira década deste século havia em toda a Europa um impulso reformador na Educação Superior. Por um lado, os acordos de Bolonha davam um impulso generalizado a reformas curriculares e foram, em formas bastante diversas, adotados nos países europeus e até à Rússia e Ásia central. Ao mesmo tempo, vários países adotaram novas formas de governo das suas universidades estatais. Depois de décadas de distanciamento crescente entre a burocracia de estado e as universidades, vingava uma lógica de regulação estatal em alternativa à plena integração na hierarquia estatal dos novos estados-nação nascidos no rescaldo das guerras napoleónicas.
As soluções adotadas em vários países europeus passaram pela criação de conselhos de curadores à feição do sistema anglo-americano. A ideia era criar um canal de transmissão do “bem comum” definido pelo governo democraticamente eleito sem levar à antiga microgestão dentro de uma hierarquia burocrática de estado. São exemplos disso as reformas de 2004 na Dinamarca e na Áustria com a criação de “conselhos gerais” externos para assumirem a orientação estratégica da universidade e a eleição do reitor. A Holanda (agora Países Baixos) tinha ensaiado o modelo de autogestão colegial entre 1972 e 1985 para adotar um modelo alternativo que com muitos acertos ao longo dos anos se mantém até hoje. No topo da gestão de cada universidade estatal, há um Reitor eleito no interior da corporação académica e um Presidente eleito por um conselho de curadores que, por sua vez, tem uma maioria de membros nomeados pelo Governo. O órgão coletivo de gestão de topo envolve o Reitor e o Presidente de modo a harmonizar os desejos da academia com o interesse público representado pelo Presidente que responde perante um conselho de curadores predominantemente externo.
Em Portugal, o RJIES de 2007 deu passos tímidos na abertura da gestão universitária ao controlo externo. Adotou uma solução ainda dominada pelas corporações internas onde o Conselho Geral tem uma pequena representação externa e, mesmo essa, escolhida pelos internos. Os eleitores internos, docentes e alunos, controlam todo o processo. A escolha do reitor domina as eleições internas para o Conselho Geral que está cada vez mais partidarizado porque só partidos políticos e grandes sindicatos têm a organização e os meios para conduzir uma campanha eleitoral e apresentar candidatos com alguma visibilidade em toda a universidade. Se alguma dúvida houvesse, bastaria olhar para a Espanha, que tem um processo de eleição direta universal nas suas 50 universidades estatais. Os candidatos a reitor têm de dirigir a sua campanha aos milhares de docentes, investigadores e funcionários e ainda às dezenas de milhar de alunos. O sucesso depende há muitos anos do apoio partidário e das grandes centrais sindicais.
Em Portugal temos agora todos os reitores universitários, presidentes politécnicos e muitos comentadores e defenderem um processo de eleição de reitor/presidente com um colégio eleitoral muito mais alargado a votantes da instituição. Até condescendem a que os membros do Conselho Geral possam votar, desde que esteja assegurado que o seu voto não é determinante pela sua diluição num colégio muito alargado. Compreende-se esta posição porque as eleições para o Conselho Geral se transformaram em “primárias” da eleição do reitor. O modelo de gestão universitária (e politécnica) de topo adotado em 2007 funcionou mal como era de todo previsível, mas poderia ser um ponto de partida para retocar o erro de se manter o Conselho Geral maioritariamente interno. É triste que, depois do pequeno passo dado em 2007, se vá regressar à autogestão adotada em 1976 para ultrapassar as pesadas sequelas do processo revolucionário de 1974-75.
Portugal e Espanha constitucionalizaram a autonomia universitária num esforço para evitar a intromissão do poder político como acontecera durante as suas longas ditaduras. Autonomia não implica autarcia. Democracia não implica que as instituições prossigam o que docentes, discentes e funcionários vêm como seus interesses imediatos. Pelo contrário, democracia significa que cabe ao poder legitimado em eleições universais a definição do interesse público. Assim acontece na grande maioria dos países europeus. Portugal é diferente.
Na Ciência temos mantido uma tradição organizativa francesa que devia ter sido abandonada há muito. Nas unidades de investigação insiste-se em manter a matriz das UMR, Unités Mixtes de Recherche sem sequer tentar a política de negociação entre o financiador central, o CNRS no caso francês, e a universidade a que os investigadores estão vinculados. O nosso sistema científico depende quase totalmente das universidades e, mais recentemente, também dos institutos politécnicos. Um modelo criado no início da década de 1990 aquando da chegada dos primeiros fundos comunitários permitiu então iniciar a consolidação da incipiente rede de “projetos” e “centros” que fora sendo estabelecida pelas entidades financiadoras estatais desde os anos de 1950. Também por essa altura, foi generalizada a avaliação por pares e o recurso a peritos estrangeiros. Assim foi possível promover seletivamente os grupos universitários mais dinâmicos e normalmente mais jovens. Este sistema cristalizou e foi imposto a todo o sistema de ensino superior, universidades e institutos politécnicos, estatais e privados.
Construímos assim um sistema académico de investigação maior do que qualquer outro país do mundo. Nenhum país aspira a financiar investigação de qualidade por todos os seus docentes de ensino superior. Portugal também não o consegue, mas insiste em manter essa presunção. A cada ronda de avaliação e de definição do financiamento plurianual segue-se um processo traumático de adaptação das unidades de investigação a novas condições resultantes da desclassificação de algumas por demérito ou azar (sempre possível). Com a divulgação dos resultados da última avaliação, começou uma campanha (aparentemente) inorgânica de críticas a todo o processo. Isto apesar de 85% dos investigadores integrados estarem em unidades com a classificação de Muito Bom ou Excelente! Nem um aumento do bolo total de financiamento recorrendo ao omnipresente PRR parece acalmar a quebra de expectativas.
A ligação entre a acreditação de ciclos de estudos, especialmente dos doutoramentos, e os resultados da avaliação das unidades de investigação foi um erro grave porque tornou uma falha na avaliação num drama que pode mesmo chegar à redenominação de uma instituição. A abertura à concessão de doutoramentos pelos institutos politécnicos levou a que a FCT fosse obrigada a aumentar o número de unidades de investigação classificadas com Muito Bom e Excelente. É inevitável uma gestão política dos resultados, como aliás tem acontecido com frequência. Mas, não deve surpreender que a inflação das classificações não seja suficiente para satisfazer todos os interesses e expectativas, muitas legítimas, de docentes, investigadores e instituições. Não foi suficiente, mas foi já excessiva para manter o nível anterior de financiamento de muitas unidades e muitas das maiores e com maior capacidade de influenciar o espaço de opinião pública.
 José Ferreira Gomes
Reitor da Universidade da Maia
In: O Economista - Anuário da Economia Portuguesa · Número 2 (2ª série) - setembro 2025, pág. 73-78

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

In Memoriam Carlos Corrêa

Carlos Corrêa, 13/ago/1936 – 7/jul/2025
Homenageamos aqui um jovem de Barcelos que conseguiu saltar as barreiras para chegar à universidade e ser engenheiro. A barreira de Barcelos ao Porto na década de 1950 implicou uma dívida pessoal que foi paga 56 anos depois! Concluído o equivalente ao atual 9º ano em Barcelos, teria de ir frequentar o liceu de Braga. Para evitar os custos de deslocação, fez a preparação dos exames finais do ensino secundário com o simples apoio de um explicador em Barcelos para se propor a exame. A etapa seguinte seria a universidade, no Porto, mais distante e mais cara. Estávamos em 1955. Calouste Gulbenkian falecera e deixara a sua fortuna nas mãos do seu advogado Azeredo Perdigão, para criar uma fundação. A notícia chegou a Barcelos e Carlos Corrêa escreveu a Azeredo Perdigão a pedir apoio para frequentar a universidade. Não havia ainda Fundação, e foi com grande surpresa que soube que iria ter um empréstimo de 750$00 por mês. Teve assim a garantia de uma vida estudantil relativamente confortável no Porto. Criada a Fundação Calouste Gulbenkian em 1956, nunca lhe foi pedida a devolução do empréstimo. Para o jovem engenheiro e professor da Universidade do Porto não teria sido fácil fazer a devolução nos seus primeiros anos de vida adulta, mas não esqueceu a dívida. Em 2018, foi a Lisboa pagar a sua dívida e só então soube que, na sua ficha pessoal, havia a menção de bolseiro número um! Ficou também como número um, e talvez único, a devolver à Fundação uma bolsa de estudos, por inteiro e com correção monetária.
Quem entrasse no laboratório de química orgânica do edifício dos Leões (hoje Reitoria da Universidade do Porto) ia encontrar sólidas bancadas de madeira exótica que poderia julgar transportadas diretamente de Oxford. De facto, vieram de lá! O Carlos fez o seu doutoramento no Dyson Perrins Laboratory da Universidade de Oxford com um trabalho sobre radicais livres. Foi profundamente marcado por esta experiência, quer pessoal quer cientificamente. E, com a memória ainda fresca, copiou o desenho das bancadas quando foi chamado a modernizar o seu laboratório pouco depois de regressado ao Porto.
O Reino Unido tinha já recuperado da Segunda Guerra e, apesar de estar a fechar o seu ciclo imperial, estava em plena expansão económica. Para um jovem de Barcelos, era um maravilhoso mundo novo. A pujança da economia, a vitalidade da democracia, o desafio de se integrar numa das mais dinâmicas universidades do mundo. A transição do Porto para um dos mais famosos laboratórios de Química Orgânica abria um mundo que nunca teria sido sequer imaginado. E foi aí que o Carlos cresceu e venceu. Temos de recordar a dormência da universidade portuguesa da época, muito marcada pelas “contas certas” do Estado Novo. As universidades do Porto e de Lisboa tinham sido criadas em 1911 integrando a Escola Politécnica (em Lisboa) e a Academia Politécnica (no Porto). Os quadros docentes tinham sido congelados logo a seguir à queda da 1ª República, fruto dos problemas financeiros próprios e da depressão económica mundial.
Na década de 1960, a procura estudantil crescia rapidamente, mas nem o quadro docente nem as paredes da velha Academia Politécnica se tinham alargado. E os salários dos docentes pressupunham que estes teriam rendimentos próprios ou outra profissão principal. O Carlos Corrêa contava que, quando foi convidado para Assistente da Faculdade de Ciências, a pergunta prévia fora sobre os rendimentos familiares que lhe permitiriam alimentar a família. De facto, a sua sobrevivência na universidade dependeria de provir de uma família com rendimentos próprios ou de se organizar com outra atividade principal. Para um jovem que conhecera a vida universitária inglesa, a opção pela dedicação ao ensino e à investigação na universidade portuguesa implicava uma vida austera, mesmo acumulando muitas horas extraordinárias de docência. Assim foi até 1979, até à criação da figura da dedicação exclusiva no primeiro Estatuto da Carreira Docente. E assim foi com o Carlos Corrêa.
O jovem Professor Carlos Corrêa começava a formar o seu grupo de investigação iniciando jovens licenciados (os mestrados só apareceriam em 1980) nos segredos dos seus radicais livres. Mesmo em condições muito difíceis e só com a pequena ajuda de um “projeto do IAC, Instituto de Alta Cultura”, o antecessor, em miniatura, das unidades de investigação criadas na década de 1990. Com a madrugada de 1974, a vida ganhou novo alento, mas também ficaram em suspenso todos os projetos anteriores.
Sempre disponível, o Carlos ocupou quase todos os cargos de gestão do Departamento e da Faculdade, tarefas pesadas e raramente gratificantes. Desde 1979 até uns poucos dias antes de falecer, manteve um trabalho contínuo nos seus manuais de Química para o ensino secundário e noutros instrumentos de apoio à preparação para os exames. Assim influenciou milhares de alunos de sucessivas gerações ao longo de quase meio século. E ainda alargou as suas propostas de manuais a Angola e a Cabo Verde. Fazia-o com o prazer de quem se sente a moldar o intelecto de sucessivas gerações.
A Química em Portugal deve muito a Carlos Correia, pelos seus manuais ao longo dos últimos 45 anos e pelas suas demonstrações experimentais que empolgaram alunos e professores. Na Universidade do Porto fez uma carreira brilhante na ligação de uma época em que se esperava quase só o ensino até à moderna universidade que recebe quase 60% da coorte jovem e que olha principalmente para a investigação.
José Ferreira Gomes,
Porto, agosto/2025

domingo, 17 de agosto de 2025

A Ciência Portuguesa em tempos de reforma

O sistema científico português cresceu muito nos últimos decénios, a partir da chegada dos fundos europeus. E muitos receiam que uma eventual reorientação desses dinheiros ponha em perigo a ciência como a conhecemos. Anuncia-se agora uma reforma da organização das agências de financiamento com a fusão da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia) com a ANI (Agência Nacional de Inovação) e espera-se que a nova AI2 (Agência de Investigação e Inovação) seja capaz de reorganizar e tornar mais eficaz todo o Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN) agora redenominado Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI). A nova ênfase na inovação irá permear todo o sistema, seguindo a moderna tendência europeia em que os estados mantêm a responsabilidade principal pela investigação científica fundamental, sem deixar de lhe pedir um impacto económico e social. Sim, há que aliar o reconhecimento internacional de toda a investigação académica fundamental com algum impacto económico e social a prazo porque só assim podemos justificar o seu financiamento com dinheiros públicos. Não há Ciência sem um forte reconhecimento internacional pelos pares, mas não é viável um sistema científico que não devolve resultados percebidos pelos cidadãos.
Avizinhava-se já uma grave crise no sistema científico, o que é sinalizado pelo incómodo crescente dos investigadores, queixando-se da escassez dos financiamentos e da precariedade de muitos jovens que aspiram a construir uma carreira. Poderá haver motivações político-partidárias para o agravamento das queixas num momento em que se promete um aumento do financiamento, se pensarmos que a redução do financiamento na década passada não foi lastimada no espaço público, mas interessa compreender as motivações estruturais e pensar no mais longo prazo. O sistema tem de recuperar alguma capacidade de planeamento e de justificação política dos 0,7% do PIB entregues aos investigadores académicos que, por se identificarem como investigação fundamental, se querem isentos da exigência de retorno.
Com a chegada dos primeiros dinheiros europeus, as unidades de investigação nasceram do convite da agência de financiamento para a formação de entidades que pudessem ser financiadas sem depender dos todo-poderosos conselhos científicos nem da pesada burocracia estatal das universidades. Neste ambiente, a rede de unidades de investigação protegeu os pequenos grupos ativos que iam crescendo à medida que novas gerações eram admitidas com o apoio do financiamento crescente.
A Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) foi criada em 1997 por redenominação da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT). É tempo de esquecer o termo “Fundação” porque a FCT não passa de um instituto público com todas as limitações destes e sempre dependente dos humores do governo. A JNICT fora criada em 1967 como organismo de planeamento para a preparação do 4º Plano de Fomento (1968-1973). O SCTN tutelado pela FCT mantém uma organização que se justificava plenamente no século passado, mas não hoje, quando todas as universidades estão bem cientes da sua vocação como criadoras de conhecimento. E devemos notar que, infelizmente, a FCT não conseguiu manter a vocação da sua predecessora para o planeamento estratégico da atividade científica financiada pelo estado. A FCT passou a tentar sobreviver o dia-a-dia, na busca de expedientes para manter a imagem de alimentar um sistema científico sempre em expansão, mesmo quando as verbas utilizadas estavam a mingar.
Por estes dias muitos se queixam da insuficiência do financiamento prometido pela FCT, sendo especialmente difíceis as situações em que uma unidade de investigação tinha assumido compromissos permanentes que agora não pode honrar. Igualmente graves são os casos de cursos cujo funcionamento depende da classificação de uma unidade que, por demérito ou por azar no processo de avaliação, não atingiu o nível esperado. Até pode haver casos de universidades que, nos termos da lei, deixarão de o ser. Esta é uma cascata de consequências demasiado pesada para um processo de avaliação por pares que naturalmente depende da constituição dos painéis e das condições da própria avaliação. Estas consequências podem ser atenuadas pelo uso de critérios mais suaves como parece ter sido agora o caso (75% das unidades e 85% dos investigadores integrados com classificação de Muito Bom ou Excelente!). Em último recurso segue a litigação em tribunais administrativos que permite ganhar longos anos de sobrevivência do status quo. Deveria ser encarada a possibilidade de desligar a avaliação da FCT para financiamento das pesadas consequências que lhe foram sendo associadas.
A situação é insustentável por duas ordens de razões. Por um lado, mantém-se um modelo de organização que deixou de servir as universidades (e agora também os institutos politécnicos) a partir do momento em que estas vêm na investigação o primeiro fator de prestígio, quando não de sustentação. O prestígio das universidades depende da sua investigação e, contudo, estas não têm meios para o seu planeamento estratégico. Por outro lado, o número de investigadores cresce em progressão quase geométrica enquanto o financiamento público disponível estagnou há muito em cerca de 0,7% do PIB e com um PIB em crescimento anémico. O resultado é termos um sistema científico muito grande em número de investigadores no setor académico, mas quase todos mal financiados e, consequentemente, pouco competitivos internacionalmente.
Portugal é provavelmente o único país do mundo onde já temos mais de 50% da coorte jovem a chegar ao ensino superior e a esperar-se que todos os seus docentes sejam investigadores ativos! Não podemos esperar que todos satisfaçam as suas expectativas de financiamento para serem internacionalmente competitivos. Em alternativa, poderia separar-se o financiamento da investigação fundamental num quadro internacionalmente competitivo da investigação aplicada aos problemas atuais dos parceiros empresariais. Separar-se-ia claramente a I&d (com mais ênfase no I da investigação do que no d do desenvolvimento experimental), da i&D+I (em que a ênfase estaria no desenvolvimento experimental para o I da inovação nas empresas).
Podemos esperar da nova AI2 uma boa articulação de todo o esforço desde a I&d até à i&D+I. Sabemos que muitas das nossas empresas têm ainda uma capacidade limitada para absorver um financiamento de D+I que as leve a chegar ao mercado com novos produtos e serviços internacionalmente competitivos, mas poderemos contar com as nossas universidades e politécnicos para fazerem a ponte entre a I&d intramuros e a D+I extramuros, dentro das empresas e outras organizações. A criação da nova AI2 merece alguma reflexão para a criação da entidade pública “Agência” com maior autonomia do poder político do que o antigo “Instituto Público”. Sim, todos os parceiros ganham com o empoderamento da nova AI2 a maior distância do poder político de turno.

In Público, 6 de agosto de 2025

sábado, 12 de julho de 2025

A Democracia na Educação Superior

Todos aguardam que o atual Ministro da Educação, Ciência e Inovação retome o impulso reformador que caraterizou o seu curto mandato anterior. Na educação básica e secundária, já atingimos um abandono precoce comparável ou melhor do que a média europeia. O desafio é agora melhorar a qualidade porque se sabe que o importante não é o número de anos de escolarização, mas o que se aprende na escola. Tendo a União Europeia adotado como indicador o teste internacional PISA, a proposta é recuperar as perdas registadas desde 2015. O objetivo é simples, mas obriga à inversão das políticas de abolição de exames, já iniciada, e de baixa ambição curricular, que levaram às perdas já verificadas no desempenho dos jovens de 15 anos.
No superior, assume-se a revisão do RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior) de 2007, uma iniciativa arriscada num parlamento ainda muito segmentado. Neste início de legislatura, as condições políticas são favoráveis, aproveitando o impulso das recentes eleições legislativas e o “estado de graça” de um ministro muito popular no anterior governo. O ponto mais discutido no espaço simplista da ágora é a eleição do Reitor e, contudo, a realidade é mais complexa. Interessa posicionar o conceito de autonomia prevalecente na Europa e as alternativas para a escolha dos gestores de topo, reitores universitários e presidentes de institutos politécnicos estatais.
A autonomia universitária foi constitucionalizada em Portugal e em Espanha aquando da saída de longas ditaduras, mas nada obriga a que essa autonomia seja levada ao limite de uma autarcia em que toda a gestão de topo é selecionada dentro das instituições, respondendo aos interesses dos professores, alunos e funcionários ativos em cada momento. De facto, esta opção pela autogestão deu excelentes resultados quando foi introduzida em 1976 para recuperar o governo das universidades dos excessos do período revolucionário. Trinta anos depois, toda a comunidade académica estava cansada das ineficácias do sistema e aceitou sem grandes reações a introdução de um Conselho Geral com representação externa para assumir a definição da orientação estratégica da instituição, eleger o Reitor/Presidente e acompanhar a sua ação governativa. Foi um passo importante para nos aproximar dos modelos anglo-americanos. Mas foi um passo demasiado prudente ao dar a representação maioritária às corporações internas e é pena que não haja agora coragem para dar o passo seguinte. Os poucos representantes externos são convidados pelos eleitos internos, que esperam que eles sigam delicadamente os interesses de quem os convidou. Assim acontece na maioria dos casos. As eleições internas transformam-se quase sempre numa espécie de primárias em que cada aspirante a reitor/presidente movimenta os seus peões para vir a garantir uma decisão favorável. E nada impede que, no seio do Conselho Geral, se venham a comprar alguns votos com promessas de favores pessoais, desde a abertura de concursos até lugares de vice-reitor. Pretende-se agora corrigir estas patologias criando um colégio muito alargado para a eleição do reitor/presidente. E chama-se a isto um reforço da democracia.
Na tradição anglo-americana, os Conselhos de Curadores atuam como guias estratégicos das instituições e, não só elegem o reitor, como escrutinam o governo corrente da universidade. Sendo a grande maioria das universidades criadas e financiadas pelos estados federados norte-americanos ou pelos governos das “nações” britânicas, cabe-lhes definir as grandes orientações e a nomeação dos curadores. Estes conselhos têm a função de afastar o governador e o congresso estatal da interferência na vida corrente da universidade, mas este poder político democraticamente eleito não perde a capacidade de definir em cada momento o que vê como interesse público ou bem comum e atuar consequentemente. Mandatos bastante longos e desencontrados dos curadores dão vida e memória própria a este conselho. Na grande maioria dos países do continente europeu, o governo retém um poder de intervenção nos órgãos de governo de topo e na escolha dos reitores, apesar de não intervir na gestão corrente. Isto é autonomia de governo sem prejudicar a prossecução do interesse público. Muito naturalmente, a autogestão das universidades e politécnicos portugueses leva a que respondam aos próprios interesses, principalmente dos docentes. Os alunos têm os seus próprios interesses de iniciar uma carreira política, tendo acesso aos financiamentos e outras receitas das associações de estudantes. O interesse público é secundário. A oferta educativa é gerada pelo mercado da procura estudantil e assim se aproxima dos interesses deste público. Também não espanta que, para o Conselho Geral, as propinas sejam sempre demasiado elevadas e que o financiamento estatal seja sempre demasiado curto.
A Espanha mantém um processo de eleição de reitor com votação de toda a comunidade universitária, professores, alunos e funcionários, com pesos definidos para cada um destes grupos. Uma consequência natural é a total partidarização (e sindicalização) do processo. Nenhum professor tem os meios para organizar uma campanha eleitoral que chegue aos milhares de professores e funcionários e às dezenas de milhar de alunos. Em Portugal, a partidarização dos processos eleitorais internos tem-se tornado mais visível. Um grande alargamento do colégio eleitoral vai agravar o processo. E note-se a contradição aparente de ser a maioria política atual e inverter um caminho aberto para a responsabilização externa que foi iniciado por uma maioria socialista. Autonomia não significa autogestão e concordaremos que autogestão não é democracia.

In Público, 12 de julho de 2025

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Por um sistema binário de ensino superior

Sim, todos parece concordarem que Portugal precisa de um sistema binário de ensino superior. E no entanto, a natureza binária é sucessivamente enfraquecida, apesar das juras de fidelidade à velha ideia de Veiga Simão. Só uma caraterização simples e bem compreendida por todos pode salvar a desejável diversidade da oferta de ensino superior, habilitando a Agência de Acreditação a regular o sistema.
O tema do sistema binário de ensino superior voltou à discussão pública na sequência da revisão do RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior) e do alargamento das competências legais das instituições politécnicas para outorgarem doutoramentos e poderem assumir a designação de universidade politécnica. A reivindicação da outorga de doutoramentos é relativamente antiga como também o abandono da designação de “instituto politécnico”. Parece ser quase universal o consenso quanto à manutenção do sistema binário de ensino universitário e ensino politécnico, embora todas as reivindicações vão no sentido de esbater as diferenças entre as carreiras docentes e os cursos oferecidos. Será ainda possível caraterizar os vários tipos de ensino superior que justificam a existência de um sistema binário?
Não são consensuais as tentativas de caraterizar o setor politécnico por percursos educativos mais profissionalizantes ou vocacionais e por se interessarem por uma investigação mais aplicada ou dirigida para problemas concretos e imediatos. Muitos cursos desde sempre universitários são construídos em torno de profissões como a Medicina ou a Arquitetura. O crescimento do ensino superior e da investigação académica ali realizada levou os financiadores estatais ou privados a exigir resultados com maior retorno económico, esvaziando a ideia de que a universidade não se preocuparia com a utilidade da sua reflexão. Deveremos então abandonar a pretensão de oferecer percursos eductivos de natureza diferente?
Um jovem que termine o secundário pode hoje continuar o seu percurso escolar por uma de três vias, um curso TeSP (Técnico Superior Profissional), uma licenciatura politécnica ou uma licenciatura universitária. Deverá ser uma escolha livre, ficando ao gosto ou à “vocação” do jovem? Não é esta a realidade em nenhum país desenvolvido e também não é em Portugal, vingando uma motivação mais pragmática. Embora o gosto ou a vocação possam ser fatores relevantes, mais importante é a diferença de objetivos de quem chega ao ensino superior. Para alguns o percurso mais académico que lhes foi oferecido no secundário representou já um esforço a que dificilmente responderam e desejam entrar na vida ativa e ganhar autonomia económica o mais rapidamente possível. Para esses, o curso TeSP permite ocupar um posto de trabalho ao fim de três semestres, começando por um estágio realizado no 4º semestre do curso. E os três semestres de curso têm uma natureza mais técnica e de preparação próxima da profissão que escolheram. Serão em geral menos dependentes dos conteúdos mais abstratos de algumas disciplinas do secundário.
A opção por uma licenciatura politécnica sinaliza a intenção de entrada no mundo do trabalho ao fim de seis semestres (oito no caso da Enfermagem). E exige de forma mais explícita os conhecimentos adquiridos ao longo do secundário e deve valorizar a formação que visa o exercício de uma atividade profissional. Finalmente, uma licenciatura universitária ou um mestrado integrado são desenhados de modo a que o estudante aceite um tempo de formação mais longo de dez a doze semestres. Poderá sempre optar por abandonar o percurso educativo (ou suspendê-lo) no fim da licenciatura, mas a formação estará muito menos focada no exercício imediato de uma profissão.
O mestrado politécnico, se entendido como continuação de uma licenciatura profissionalizante terá a natureza de aprofundamento ou especialização dentro da área profissional respetiva. O mestrado universitário (ou a segunda parte do mestrado integrado) facilitará a inserção profissional e um aprofundamento científico que abra o caminho para um doutoramento na mesma área. Os mestrados, universitários ou politécnicos, podem ainda assumir a função de requalificação ou reorientação profissional para pessoas com um percurso profissional. Serão então peças de educação contínua desenhadas para adultos, normalmente mais curtos ou em regime pós-laboral e com pedagogias diferentes das usadas com jovens adultos em dedicação exclusiva ao estudo. Estes mestrados podem ainda ser decompostos em microcredenciais para que os interessados possam optar pelas mais relevantes ou acumular sucessivamente e ao seu ritmo de vida.
Maia, 4 de janeiro de 2025

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

RJIES, ainda o sistema binário

No Portugal de hoje, todos os que refletem sobre o ensino superior pensam que o sistema binário é o melhor para o país, para os estudantes e para os empregadores. Na realidade, temos hoje um sistema ternário porque, para além da opção entre uma licenciatura universitária e uma licenciatura politécnica, existe ainda a opção por um curso TeSP, Técnico Superior Profissional. O acordo é universal, mas os docentes politécnicos sempre sentiram o desconforto de se verem como uma segunda classe. Esta reação tem uma longa história e teve cedências sucessivas do poder político sem que tenha havido políticas de consolidação da natureza binária (ou ternária na última década). Que resta hoje da obrigação estatal de oferecer percursos diversificados para responder à enorme diversidade dos candidatos agora admitidos ao ensino superior e à diversidade ainda maior das atividades profissionais que os seus diplomados irão escolher ao longo da vida? Muito pouco.
Ao repensar a lei de organização do ensino superior português, parece haver consenso sobre a conservação de um sistema binário. E, contudo, todas as alterações vão no sentido de enfraquecer ainda mais esta diferenciação. A questão deveria pôr-se de forma mais aguda nas áreas de educação e formação como as engenharias que existem nos dois subsistemas, mas não parece ser o caso. A sociedade (empregadores) compreende mal as diferenças, talvez porque estas não têm sido bem marcadas, quer do lado politécnico, quer do lado universitário; as famílias e os estudantes escolhem o politécnico ou a universidade percebida como de maior prestígio, isto é com maior nota de acesso, embora a proximidade da residência possa ser mais importante face aos elevados custos de deslocação; os docentes têm carreiras cada vez mais próximas; a estratégia de investigação dos docentes vai procurar validação e financiamento à mesma entidade, a FCT; e aqui os concursos admitem projetos originários do ensino universitário ou politécnico, não sendo valorizada qualquer diferença entre ambos. Estaremos com esta prática a cumprir a lei que desde as origens tentava sugerir algumas diferenças? Haverá diferenças entre os dois subsistemas universitário e politécnico apenas porque isso é afirmado na lei de bases quando depois ninguém reconhece as diferenças?
Como chegamos aqui
Originalmente, na proposta de Veiga Simão de 1973, o ensino politécnico tinha apenas cursos curtos de três anos e não se falava em investigação. Aquando da criação efetiva do ensino politécnico no início dos anos de 1980, manteve-se o objetivo de cursos curtos e não tocou na investigação. As escolas mais antigas que foram integradas nos novos institutos politécnicos não tinham investigação. Tudo parecia em perfeita harmonia.
A primeira reivindicação foi a de alongar o percurso educativo do bacharelato de 3 anos para chegar à velha licenciatura de 4 a 6 anos. Os docentes vinham de um grau universitário e começaram a ter alguma experiência de investigação num dos antigos mestrados que eram o requisito de entrada na docência politécnica, e só muito raramente num doutoramento. Muito naturalmente, tentaram replicar os planos curriculares universitários que conheciam e sentiram-se limitados num ciclo curto. Foi assim que no início dos anos de 1990, começaram a oferecer “licenciaturas bietápicas” um eufemismo para algo equivalente a uma licenciatura universitária (pré-Bolonha), o curso universitário universal do século XX. Na fase de explosão da procura de finais dos anos de 1980, alguns institutos politécnicos bateram-se pela conversão em universidade por uma questão de prestígio, sempre com apoio das forças políticas regionais. E que poderia o governo da república oferecer a uma cidade do interior que tivesse alguma sonoridade e fosse mais barato que uma universidade? Alguns, poucos, decidiram começar a recrutar docentes doutorados ou a doutorar os mais jovens, embora outros o rejeitassem porque os docentes seniores eram apenas licenciados. Quando pediam financiamento para a investigação, os responsáveis políticos sugeriam que se poderiam associar às então novas unidades de investigação universitárias e concorrer aos financiamentos FCT.
A carreira docente do ensino politécnico manteve uma estrutura muito incipiente até 2009, com os docentes mais velhos sem doutoramento e, portanto, sem qualquer iniciação à investigação. Alguns mais novos aspiravam a fazer o percurso completo dos colegas universitários, enquanto lhes estava vedado o equiparável ao catedrático. Aquando da reforma dita de Bolonha em 2007, venceram a resistência inicial do então ministro Mariano Gago à oferta dos novos mestrados e conseguiram uma oferta educativa com as mesmas designações do universitário e os graduados passaram a ter total equivalência aos universitários. Um licenciado politécnico (pós-Bolonha) passou a ser obrigatoriamente aceite num mestrado universitário, apesar de se manter nos documentos legais a pretensão de que os ciclos de estudos politécnicos teriam uma intenção profissional, diferente dos universitários. A partir da mesma época tornou-se claro que a docência por doutorados era um importante fator de prestígio e deu-se uma corrida a doutoramentos, havendo apoios e dispensas de serviço para alguns velhos docentes. As universidades espanholas foram a opção de muitos, levando a que o número de portugueses a doutorar-se em Espanha nessa época chegasse a 100 vezes o número de espanhóis em Portugal. A nova carreira docente de 2009 deu aos docentes politécnicos um percurso quase homólogo do universitário. Para além de uma pequena diferença salarial na categoria de entrada, a maior diferença é a obrigação de aceitarem 6 a 12 horas semanais de lecionação, enquanto os colegas universitários apenas têm 6 a 9 horas. Note-se que esta diferença tem pouco impacto no número médio de alunos por docente em cada um dos dois subsistemas.
Restou a marca diferenciadora “politécnica”, a não acreditação de doutoramentos e as 6 a 12 horas. A batalha seguinte foi a autorização para a acreditação de doutoramentos, curiosamente conseguida na lei regulamentar antes de introduzida na lei de bases. Se ia haver doutoramentos, faltava a etiqueta de universidade. Tinham batalhado longamente pela designação de “university of applied sciences”, uma designação adotada em alguns países europeus para a designação de apresentação internacional e nunca na língua própria. As conquistas anteriores tinham sido tão fáceis que esta designação já parecia insuficiente e começou a defesa da designação de “universidade politécnica” à semelhança das universidades espanholas de prestígio e especializadas nas engenharias. Ficaremos por aqui? Dou já por adquirida a equivalência total das carreiras docentes com agregações feitas também no setor politécnico.
O ponto a que chegamos
O Ministério da Educação faz agora uma proposta de lei de revisão do RJIES (Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior) enquanto os vários partidos parlamentares preparam também os seus projetos de lei. Não vai ser um processo simples com a carga ideológica que alguns partidos tentam associar às opções da lei original de 2007. Todos concordarão em algumas limitações da lei atual, mas dificilmente haverá grandes acordos quanto à direção a imprimir nesta revisão. Corre-se o risco de a ideologia ser muito mais importante do que o interesse público. Poucos tentarão analisar o que deve ser alterado para melhor servir a população, estudantes e famílias. Menos ainda serão aqueles que tentarão fazer alguma análise comparativa internacional para escolher um caminho que sirva melhor esse interesse público.
Desde a sua criação, todos os incentivos práticos foram no sentido de atenuar a diferenciação, apesar das juras de fidelidade ao sistema binário feitas por políticos, presidentes, docentes e alunos. Os institutos politécnicos foram incentivados a melhorar a sua atividade no sentido da aproximação das universidades com a criação de grupos e unidades de investigação que se poderiam financiar na FCT pelos mesmos critérios e com os mesmos painéis de avaliação das universidades. Mais tarde, incentivaram a sua participação em doutoramentos em associação com universidades portuguesas (e até com estrangeiras se houvesse alguma dificuldade com as portuguesas). O destino final previsível foi a autorização para criarem os seus próprios doutoramentos. E o critério legal de competência investigativa para acreditação de um doutoramento continua ainda a ser incompreensível ao falar-se em unidades de investigação próprias. Mas também é aceitável uma unidade supostamente multidisciplinar, ainda que cientificamente muito frágil em todas as disciplinas, ou então associações de instituições, mesmo antes de estar demonstrada a coesão dessa associação e, especialmente, o ambiente que cada aluno de doutoramento vai experienciar. Mais grave, a responsabilidade académica pela qualidade do doutoramento recai num conselho científico onde o conjunto de membros ativos na investigação pode ser ultraminoritário. No caso de associações o escrutínio científico furta-se a cada uma e a todas as instituições.
Nunca houve qualquer acordo sobre o tipo de investigação a promover no setor politécnico, usando-se termos como “investigação aplicada” e “investigação orientada” totalmente vazios de sentido legal ou de significado consensual na linguagem comum em ciência. O primeiro governo António Costa ainda tentou alargar o conceito de I&D do Manual de Frascati da OCDE, “incluindo um leque alargado de atividades de investigação derivadas da curiosidade científica a atividades baseadas na prática e orientadas para o aperfeiçoamento profissional”, mas rapidamente abandonou a ideia pela dificuldade de a fazer aceitar pela comunidade politécnica.
Chegamos assim a um ponto onde temos licenciaturas e mestrados com ligeiras diferenças na definição legal, mas um terceiro ciclo, o doutoramento, com uma única definição de conceito, ainda que possa escapar à regulamentação quando decorra em ambiente não académico. Deve ser claro que esta realidade legislativa não pode guiar a A3ES na imposição de uma diferenciação entre o que se espera de um docente e dos ensinos universitário e politécnico. Só podemos esperar que o sistema politécnico continue a deslizar para uma aparente imitação do universitário. Digo aparente porque, a realidade, pode ter enormes diferenças. Pensemos em cursos de engenharia de uma dada especialidade, um (A) numa das universidades mais procuradas de Lisboa ou Porto, e o outro (B) num instituto politécnico dos menos procurados pelos candidatos. Entre estes dois extremos poderão encontrar-se todos os graus intermédios, em universidades ou institutos politécnicos. A instituição (A) vai receber estudantes com muito bom desempenho nas disciplinas centrais do ensino secundário, provavelmente com classificações superiores a 16 em Matemática e Física. A instituição (B) vai receber poucos ou nenhum candidato selecionado pelo concurso nacional de acesso e terá estudantes com percursos anteriores em cursos TeSP, maiores de 23 anos ou admitidos por outros concursos locais. A grande maioria destes terá uma matemática e uma física a nível pouco superior ao do nono ano. O sucesso académico nas duas instituições será provavelmente semelhante, com as instituições a serem consequentes com a sua política de acesso, ajustando a ambição dos cursos à realidade dos estudantes admitidos. A enorme diferença estará nos objetivos propostos em cada uma das instituições para os seus licenciados. Compreensivelmente, na instituição (B) raramente se irá além da matemática e física do 12º ano.
Não ponho a questão da utilidade social, para Portugal, de cada um dos cursos de engenharia. O que deve ser evidente é que as competências dos diplomados nos dois cursos são muito diferentes. Ao emitirmos o mesmo diploma nos dois casos, estamos e desvalorizar o próprio diploma pela sua menor utilidade no momento do recrutamento.
Como se define um sistema binário
A lei de bases de reforma do sistema educativo de 1973 declara que “O ensino superior é assegurado por Universidades, Institutos Politécnicos, Escolas Normais Superiores e outros estabelecimentos equiparados.” E ainda que “1. Os estabelecimentos universitários conferem os graus de bacharel, de licenciado e de doutor. 2. Os Institutos Politécnicos, as Escolas Normais Superiores e os estabelecimentos equiparados conferem o grau de bacharel. 3. Aos graus de bacharel e de licenciado, quando incluam determinados grupos de disciplinas, podem corresponder títulos profissionais.“ Não há tentativa de descrever o tipo de ensino que seria oferecido em cada tipo de instituições.
Desde então, as leis de bases e as leis subsequentes tentam explicitar com pouco sucesso o tipo de ensino e de investigação no setor universitário e no setor politécnico. E podemos recorrer aos chamados descritores de Dublin que poderão ajudar, mas também são suscetíveis de interpretação ambígua por não iniciados. Possívelmente, o mais eficaz será fixarmo-nos na duração do ciclo ou ciclos de estudos que deve facilitar à entrada no mercado de trabalho e construir a partir daí os percursos escolares que melhor poderão levar a esse resultado, à plena aptidão para entrar no mundo do trabalho na melhor posição possível.
A um jovem que tenha terminado o ensino secundário, é hoje proposta a escolha entre três percursos, (i) um curso TeSP, (ii) uma licenciatura politécnica e (iii) um mestrado integrado ou uma licenciatura universitária seguida de mestrado. Para algumas áreas mais procuradas, a escolha é imposta pelo desempenho escolar do candidato. Para a maioria das áreas a escolha é livre e depende da disponibilidade do jovem para continuar um percurso escolar menos ou mais longo na dependência económica da família. No primeiro caso um estudante de TeSP que poderá ter algumas fragilidades no ensino secundário, é proposto um percurso de 3 semestres, seguido do estágio de um semestre já num posto de trabalho real. O plano curricular e as propostas de conteúdos terão de ser tais que o estudante se adapte rapidamente ao posto de trabalho, seguramente com uma formação estreita e relativamente pouco flexível. No segundo caso, um estudante de licenciatura politécnica terá um percurso de 6 semestres que lhe permite uma formação mais alargada e aprofundada para uma melhor compreensão dos problemas que vai enfrentar no posto de trabalho e uma maior flexibilidade para eventuais mudanças de percurso profissional. Por fim, o estudante que opte por um mestrado integrado de 10 a 12 semestres ou por uma licenciatura seguida de mestrado, estará disponível para uma formação inicial mais teórica ou desligada da realidade do posto de trabalho a que aspira e terá provavelmente mais flexibilidade para ajustes posteriores do seu percurso profissional.
Esta descrição refere-se aos ciclos de estudos de formação inicial de jovens adultos. A formação ao longo da vida de pessoas com experiência profissional poderá envolver a frequência de ciclos de estudos de TeSP, licenciatura, mestrado ou doutoramento, mas estes deverão ser organizados com propostas curriculares diferentes e com pedagogias adaptadas a adultos. Particularmente, quer as universidades, quer os politécnicos poderão desenhar mestrados para este público, o que é hoje quase inexistente em Portugal. O mesmo se diga para os doutoramentos, podendo adultos com experiência profissional procurar uma especialização de alto nível com um doutoramento que será normalmente de índole profissional avançada. Mais do que definir o tipo de ensino e os seus objetivos, deixa-se aos docentes e à instituição de ensino superior a definição detalhada do percurso e dos objetivos de cada etapa do trabalho proposto para que os grandes objetivos sejam atingidos ao fim do tempo prescrito. Neste quadro em que o ciclo de estudos é caraterizado pelos grandes objetivos finais, deveremos corresponsabilizar a instituição de ensino superior e também o candidato ao acesso pela preparação necessária para o seu início e sucesso. Isto significa que o processo de seleção dos candidatos a cada ciclo de estudos em cada instituição deverá ser definido pela instituição com eventual imposição de uma preparação adicional do candidato, de um curso propedêutico (sem a admissão garantida) ou alguma formação adicional extraordinária no período inicial de frequência, depois de admitido.
Neste modelo de definição do sistema binário (ou ternário), cabe à Agência de Acreditação a certificação de que os pontos críticos da admissão dos candidatos e as competências finais para entrada num posto de trabalho são devidamente geridas pela instituição de ensino superior. Mais do que a avaliação de pré-requisitos e de procedimentos, a Agência deverá certificar os resultados, as competências para entrada num posto de trabalho e a boa preparação inicial para admissão ao ciclo de estudos e sucesso subsequente.
Não poderemos fugir aqui do comentário à obrigação de investigação dos docentes que hoje é quase universal para docentes de licenciatura, mestrado e doutoramento, do setor politécnico ou universitário. Para estes ciclos de estudos, estão definidas percentagens de docência por docentes de carreira que se presume satisfazerem mínimos apropriados de desempenho na qualidade do ensino e da investigação. A docência remanescente deverá ser feita por especialistas, incluindo profissionais experientes e destacados pelo reconhecimento do seu exercício profissional. Para cursos TeSP, exige-se docência competente nas áreas respetivas e uma grande proximidade do exercício profissional para as unidades curriculares de índole técnica.
Quanto vale o sistema binário atual
No sistema binário atual há diferenciação, pelo menos formal, das instituições, dos cursos oferecidos e da carreira dos seus docentes. A realidade é que qualquer destes três aspetos foi muito enfraquecido ao longo dos últimos decénios. Começando com a criação de institutos politécnicos, foi rapidamente permitido às universidades já estabelecidas a criação de unidades orgânicas com a natureza de escolas politécnicas. Aquando da integração da formação em enfermagem no ensino superior, em 2007, a norma foi serem integradas em institutos politécnicos quando existentes na mesma localidade ou em universidades quando tal condição não fosse satisfeita. Em Lisboa, Coimbra e Porto, o governo de então não teve força política suficiente para aplicar aquele princípio e manteve as escolas de enfermagem não integradas até que a sua exigência de integração nas universidades está agora a ser satisfeita. Por este princípio, outras escolas politécnicas dos respetivos institutos poderão requere a sua integração nas universidades locais. Esta realidade traduz-se em que um licenciado ou mestre em enfermagem poderá ter um diploma emitido por uma universidade ou por um instituto politécnico. O mesmo acontece, por exemplo, com um licenciado ou mestre numa engenharia sem que haja nenhuma diferenciação na inscrição numa ordem profissional. E as duas ordens ainda existentes perderam a sua diferenciação em função dos percursos académicos.
Concluímos que nunca houve a preocupação de que o diploma de graduação que vai ser apresentado ao empregador refletisse a natureza do percurso académico. Mesmo muito descaraterizado, o sistema binário atual oferece uma escolha em todo o país. Os alunos com perfil mais académico mais inclinados para um percurso académico mais longo optam pelo universitário; aqueles que preferem a rápida entrada no mercado de trabalho procuram o politécnico, em licenciatura ou curso TeSP. Infelizmente, o percurso TeSP é visto por muitos institutos politécnicos como um canal adicional de acesso a licenciaturas para os candidatos que não satisfaçam os requisitos mínimos de acesso. Não só permite um canal adicional como pode permitir ultrapassar algumas disciplinas iniciais da licenciatura que representariam maior desafio.
Esta realidade transparece na grande percentagem de diplomados TeSP que prosseguem estudos, muito maior do que em Espanha ou França onde o mercado de trabalho é o destino imediato dominante e o valor do curso é bem percebido pelos estudantes, pelas famílias e pelos empregadores.
Que vai mudar com o fim do sistema binário
No imediato, apenas mudam as condições de carreira dos docentes, um pequeno acerto na remuneração dos professores adjuntos e uma redução do período letivo de 12 para 9 horas semanais. Como o rácio docente/discente já não reflete este maior esforço docente, o aumento de custos será pequeno. As atuais diferenças de custo entre cursos similares em universidade ou instituto politécnico são mais o resultado de o pessoal docente universitário ser mais velho e haver mais docentes no topo da carreira. A diferença entre os custos unitários dos estudantes no universitário e no politécnico refletem mais as diferenças de posição na carreira que tenderão a esbater-se nos próximos anos com a renovação do corpo docente e as promoções. Deve ser claro que vamos ter um sistema de ensino superior muito caro na utilização de recursos humanos porque nenhum país impõe que todos os docentes de todas as instituições de ensino superior sejam investigadores ativos. Utilizar mais docentes, significa que, tendencialmente, se vão manter salários comparativamente muito baixos e que o financiamento da investigação terá de ser repartido por mais aspirantes a investigador. Qualquer destas limitações é já hoje sentida. Na comparação entre carreiras especiais da função pública, os académicos perderam já uns 50% desde 1979. E é bem conhecida a dificílima gestão financeira da FCT sempre dependente de alguma sobra da execução do Orçamento de Estado ou dos fundos de Bruxelas. Teremos um ensino superior caro, mas de baixos salários e mal financiado na investigação.
Mais do que diferenças no desenho curricular, a diversidade da oferta atual é induzida pela grande diversidade na formação prévia dos alunos. A maioria daqueles que não passaram pelo Concurso Nacional de Acesso tem falhas em áreas disciplinares importantes que forçam que o curso superior que frequentam se ajuste, especialmente quando a maioria dos seus alunos está nestas condições. Com o fim do sistema binário, aumentará o esforço para que todas as licenciaturas pareçam semelhantes, mas isto não será novidade porque a A3ES já hoje não tem norma habilitante legal para impor uma grande diferenciação. As diferentes culturas são repassadas pelas Comissões de Avaliação Externa, CAE, com docentes dos respetivos subsetores. Deverá esta prática ser mantida se for ainda mais descaraterizado ou terminar formalmente o sistema binário? Se for abandonada e as CAEs forem formadas por docentes experientes, quer sejam do universitário, quer sejam do politécnico, regressarão as queixas de que estão as grandes instituições, leia-se universidades, a tutelar as mais pequenas e mais frágeis. Na acreditação de doutoramentos vai haver certamente queixas se, como será de esperar, todos ou a maioria dos membros das CAEs forem recrutados nas universidades com doutoramentos mais bem estabelecidos. Todas as licenciaturas parecerão iguais, mantendo-se as grandes diferenças resultantes das escolhas dos candidatos. Nos grandes centros do litoral, manter-se-á uma procura pelas instituições com maior prestígio embora a perceção de prestígio pelos empregadores continue a ser mais suave do que, por exemplo em Espanha. A França mantém enormes diferenças de prestígio entre as universidades massificadas e as muito seletivas Grandes Écoles de engenharia, medicina e negócios e o sistema de concurso para a admissão nestas continua a manter uma forte diferenciação.
À laia de conclusão
Ainda valerá a pena lutar na defesa do sistema binário? Na configuração política atual, dificilmente poderá essa luta sair vitoriosa. Ficará para a história como um último esforço para defender o interesse público com um sistema que devia ter sido mantido e muito melhorado. No passado, a natureza binária foi sendo enfraquecida progressivamente com pequenos passos tendo como fim nunca expresso um sistema unitário de ensino superior. Temos hoje um ensino básico e secundário com um relativamente baixo índice de abandono precoce, mas com maus indicadores de resultados. Em comparação internacional (OCDE), os indicadores de “literacia”, de “numeracia” e de “resolução adaptativa de problemas” da população adulta, mesmo da mais jovem, são assustadores, ficando Portugal no último lugar. A indicação mais chocante do recente relatório oficial para Portugal foi que, na literacia, os adultos com ensino superior em Portugal obtiveram resultados inferiores aos dos adultos com ensino secundário na Finlândia . Espera-se que estes resultados tenham servido de alerta forte para os responsáveis, depois de os últimos estudos PISA terem apontado no mesmo sentido.
A maioria dos países tem sistemas de ensino superior diferenciados, sendo essa diferenciação bem percebida por candidatos, famílias e empregadores. O nosso modelo tende para um tipo único de instituições com um corpo único de docentes e apenas os cursos TeSP marcam uma opção diferenciada de percurso (inicial) no ensino superior. Esta realidade cria um sistema muito caro e mau por não servir a diversidade estudantil. Não serve os mais ambiciosos (e mais capazes) que deveriam ser desafiados com um percurso academicamente competitivo aos melhores níveis internacionais. Não serve os candidatos mais pragmáticos que procuram uma rápida entrada no mercado de trabalho porque são aliciados a prosseguir num percurso demasiado longo. Não serve a sociedade porque oferece um perfil único de formação, pelo menos na aparência. A única fonte visível de diferenciação provém do Concurso Nacional de Acesso, enquanto a procura estudantil se mantiver elevada, o que tende a diminuir no futuro próximo.
Desistindo-se de um sistema binário (ou ternário com a inclusão dos cursos TeSP), resta a esperança de que um sistema com (i) um único tipo de instituições e (ii) um único tipo de docentes ainda (iii) ofereça um maior desafio para os estudantes mais ambiciosos academicamente e (iv) uma maior proximidade à prática profissional para os estudantes mais pragmáticos nos seus objetivos de formação. Poderá esperar-se que também se consiga um modelo de avaliação docente que (v) estimule uns a uma maior proximidade dos estuantes e (vi) outros a uma maior competitividade internacional. A nossa história dos últimos decénios não é promissora em qualquer destes possíveis canais de diferenciação, mas podemos sempre alimentar alguma esperança.
Maia, 24/jan/2025
Publicado em O Observador, 25 de janeiro de 2025
José Ferreira Gomes, Reitor da Universidade da Maia, Secretário de Estado do Ensino Superior no XIX e também da Ciência no XX Governo Constitucional