quarta-feira, 27 de agosto de 2025

In Memoriam Carlos Corrêa

Carlos Corrêa, 13/ago/1936 – 7/jul/2025
Homenageamos aqui um jovem de Barcelos que conseguiu saltar as barreiras para chegar à universidade e ser engenheiro. A barreira de Barcelos ao Porto na década de 1950 implicou uma dívida pessoal que foi paga 56 anos depois! Concluído o equivalente ao atual 9º ano em Barcelos, teria de ir frequentar o liceu de Braga. Para evitar os custos de deslocação, fez a preparação dos exames finais do ensino secundário com o simples apoio de um explicador em Barcelos para se propor a exame. A etapa seguinte seria a universidade, no Porto, mais distante e mais cara. Estávamos em 1955. Calouste Gulbenkian falecera e deixara a sua fortuna nas mãos do seu advogado Azeredo Perdigão, para criar uma fundação. A notícia chegou a Barcelos e Carlos Corrêa escreveu a Azeredo Perdigão a pedir apoio para frequentar a universidade. Não havia ainda Fundação, e foi com grande surpresa que soube que iria ter um empréstimo de 750$00 por mês. Teve assim a garantia de uma vida estudantil relativamente confortável no Porto. Criada a Fundação Calouste Gulbenkian em 1956, nunca lhe foi pedida a devolução do empréstimo. Para o jovem engenheiro e professor da Universidade do Porto não teria sido fácil fazer a devolução nos seus primeiros anos de vida adulta, mas não esqueceu a dívida. Em 2018, foi a Lisboa pagar a sua dívida e só então soube que, na sua ficha pessoal, havia a menção de bolseiro número um! Ficou também como número um, e talvez único, a devolver à Fundação uma bolsa de estudos, por inteiro e com correção monetária.
Quem entrasse no laboratório de química orgânica do edifício dos Leões (hoje Reitoria da Universidade do Porto) ia encontrar sólidas bancadas de madeira exótica que poderia julgar transportadas diretamente de Oxford. De facto, vieram de lá! O Carlos fez o seu doutoramento no Dyson Perrins Laboratory da Universidade de Oxford com um trabalho sobre radicais livres. Foi profundamente marcado por esta experiência, quer pessoal quer cientificamente. E, com a memória ainda fresca, copiou o desenho das bancadas quando foi chamado a modernizar o seu laboratório pouco depois de regressado ao Porto.
O Reino Unido tinha já recuperado da Segunda Guerra e, apesar de estar a fechar o seu ciclo imperial, estava em plena expansão económica. Para um jovem de Barcelos, era um maravilhoso mundo novo. A pujança da economia, a vitalidade da democracia, o desafio de se integrar numa das mais dinâmicas universidades do mundo. A transição do Porto para um dos mais famosos laboratórios de Química Orgânica abria um mundo que nunca teria sido sequer imaginado. E foi aí que o Carlos cresceu e venceu. Temos de recordar a dormência da universidade portuguesa da época, muito marcada pelas “contas certas” do Estado Novo. As universidades do Porto e de Lisboa tinham sido criadas em 1911 integrando a Escola Politécnica (em Lisboa) e a Academia Politécnica (no Porto). Os quadros docentes tinham sido congelados logo a seguir à queda da 1ª República, fruto dos problemas financeiros próprios e da depressão económica mundial.
Na década de 1960, a procura estudantil crescia rapidamente, mas nem o quadro docente nem as paredes da velha Academia Politécnica se tinham alargado. E os salários dos docentes pressupunham que estes teriam rendimentos próprios ou outra profissão principal. O Carlos Corrêa contava que, quando foi convidado para Assistente da Faculdade de Ciências, a pergunta prévia fora sobre os rendimentos familiares que lhe permitiriam alimentar a família. De facto, a sua sobrevivência na universidade dependeria de provir de uma família com rendimentos próprios ou de se organizar com outra atividade principal. Para um jovem que conhecera a vida universitária inglesa, a opção pela dedicação ao ensino e à investigação na universidade portuguesa implicava uma vida austera, mesmo acumulando muitas horas extraordinárias de docência. Assim foi até 1979, até à criação da figura da dedicação exclusiva no primeiro Estatuto da Carreira Docente. E assim foi com o Carlos Corrêa.
O jovem Professor Carlos Corrêa começava a formar o seu grupo de investigação iniciando jovens licenciados (os mestrados só apareceriam em 1980) nos segredos dos seus radicais livres. Mesmo em condições muito difíceis e só com a pequena ajuda de um “projeto do IAC, Instituto de Alta Cultura”, o antecessor, em miniatura, das unidades de investigação criadas na década de 1990. Com a madrugada de 1974, a vida ganhou novo alento, mas também ficaram em suspenso todos os projetos anteriores.
Sempre disponível, o Carlos ocupou quase todos os cargos de gestão do Departamento e da Faculdade, tarefas pesadas e raramente gratificantes. Desde 1979 até uns poucos dias antes de falecer, manteve um trabalho contínuo nos seus manuais de Química para o ensino secundário e noutros instrumentos de apoio à preparação para os exames. Assim influenciou milhares de alunos de sucessivas gerações ao longo de quase meio século. E ainda alargou as suas propostas de manuais a Angola e a Cabo Verde. Fazia-o com o prazer de quem se sente a moldar o intelecto de sucessivas gerações.
A Química em Portugal deve muito a Carlos Correia, pelos seus manuais ao longo dos últimos 45 anos e pelas suas demonstrações experimentais que empolgaram alunos e professores. Na Universidade do Porto fez uma carreira brilhante na ligação de uma época em que se esperava quase só o ensino até à moderna universidade que recebe quase 60% da coorte jovem e que olha principalmente para a investigação.
José Ferreira Gomes,
Porto, agosto/2025

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