domingo, 17 de agosto de 2025

A Ciência Portuguesa em tempos de reforma

O sistema científico português cresceu muito nos últimos decénios, a partir da chegada dos fundos europeus. E muitos receiam que uma eventual reorientação desses dinheiros ponha em perigo a ciência como a conhecemos. Anuncia-se agora uma reforma da organização das agências de financiamento com a fusão da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia) com a ANI (Agência Nacional de Inovação) e espera-se que a nova AI2 (Agência de Investigação e Inovação) seja capaz de reorganizar e tornar mais eficaz todo o Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN) agora redenominado Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI). A nova ênfase na inovação irá permear todo o sistema, seguindo a moderna tendência europeia em que os estados mantêm a responsabilidade principal pela investigação científica fundamental, sem deixar de lhe pedir um impacto económico e social. Sim, há que aliar o reconhecimento internacional de toda a investigação académica fundamental com algum impacto económico e social a prazo porque só assim podemos justificar o seu financiamento com dinheiros públicos. Não há Ciência sem um forte reconhecimento internacional pelos pares, mas não é viável um sistema científico que não devolve resultados percebidos pelos cidadãos.
Avizinhava-se já uma grave crise no sistema científico, o que é sinalizado pelo incómodo crescente dos investigadores, queixando-se da escassez dos financiamentos e da precariedade de muitos jovens que aspiram a construir uma carreira. Poderá haver motivações político-partidárias para o agravamento das queixas num momento em que se promete um aumento do financiamento, se pensarmos que a redução do financiamento na década passada não foi lastimada no espaço público, mas interessa compreender as motivações estruturais e pensar no mais longo prazo. O sistema tem de recuperar alguma capacidade de planeamento e de justificação política dos 0,7% do PIB entregues aos investigadores académicos que, por se identificarem como investigação fundamental, se querem isentos da exigência de retorno.
Com a chegada dos primeiros dinheiros europeus, as unidades de investigação nasceram do convite da agência de financiamento para a formação de entidades que pudessem ser financiadas sem depender dos todo-poderosos conselhos científicos nem da pesada burocracia estatal das universidades. Neste ambiente, a rede de unidades de investigação protegeu os pequenos grupos ativos que iam crescendo à medida que novas gerações eram admitidas com o apoio do financiamento crescente.
A Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) foi criada em 1997 por redenominação da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT). É tempo de esquecer o termo “Fundação” porque a FCT não passa de um instituto público com todas as limitações destes e sempre dependente dos humores do governo. A JNICT fora criada em 1967 como organismo de planeamento para a preparação do 4º Plano de Fomento (1968-1973). O SCTN tutelado pela FCT mantém uma organização que se justificava plenamente no século passado, mas não hoje, quando todas as universidades estão bem cientes da sua vocação como criadoras de conhecimento. E devemos notar que, infelizmente, a FCT não conseguiu manter a vocação da sua predecessora para o planeamento estratégico da atividade científica financiada pelo estado. A FCT passou a tentar sobreviver o dia-a-dia, na busca de expedientes para manter a imagem de alimentar um sistema científico sempre em expansão, mesmo quando as verbas utilizadas estavam a mingar.
Por estes dias muitos se queixam da insuficiência do financiamento prometido pela FCT, sendo especialmente difíceis as situações em que uma unidade de investigação tinha assumido compromissos permanentes que agora não pode honrar. Igualmente graves são os casos de cursos cujo funcionamento depende da classificação de uma unidade que, por demérito ou por azar no processo de avaliação, não atingiu o nível esperado. Até pode haver casos de universidades que, nos termos da lei, deixarão de o ser. Esta é uma cascata de consequências demasiado pesada para um processo de avaliação por pares que naturalmente depende da constituição dos painéis e das condições da própria avaliação. Estas consequências podem ser atenuadas pelo uso de critérios mais suaves como parece ter sido agora o caso (75% das unidades e 85% dos investigadores integrados com classificação de Muito Bom ou Excelente!). Em último recurso segue a litigação em tribunais administrativos que permite ganhar longos anos de sobrevivência do status quo. Deveria ser encarada a possibilidade de desligar a avaliação da FCT para financiamento das pesadas consequências que lhe foram sendo associadas.
A situação é insustentável por duas ordens de razões. Por um lado, mantém-se um modelo de organização que deixou de servir as universidades (e agora também os institutos politécnicos) a partir do momento em que estas vêm na investigação o primeiro fator de prestígio, quando não de sustentação. O prestígio das universidades depende da sua investigação e, contudo, estas não têm meios para o seu planeamento estratégico. Por outro lado, o número de investigadores cresce em progressão quase geométrica enquanto o financiamento público disponível estagnou há muito em cerca de 0,7% do PIB e com um PIB em crescimento anémico. O resultado é termos um sistema científico muito grande em número de investigadores no setor académico, mas quase todos mal financiados e, consequentemente, pouco competitivos internacionalmente.
Portugal é provavelmente o único país do mundo onde já temos mais de 50% da coorte jovem a chegar ao ensino superior e a esperar-se que todos os seus docentes sejam investigadores ativos! Não podemos esperar que todos satisfaçam as suas expectativas de financiamento para serem internacionalmente competitivos. Em alternativa, poderia separar-se o financiamento da investigação fundamental num quadro internacionalmente competitivo da investigação aplicada aos problemas atuais dos parceiros empresariais. Separar-se-ia claramente a I&d (com mais ênfase no I da investigação do que no d do desenvolvimento experimental), da i&D+I (em que a ênfase estaria no desenvolvimento experimental para o I da inovação nas empresas).
Podemos esperar da nova AI2 uma boa articulação de todo o esforço desde a I&d até à i&D+I. Sabemos que muitas das nossas empresas têm ainda uma capacidade limitada para absorver um financiamento de D+I que as leve a chegar ao mercado com novos produtos e serviços internacionalmente competitivos, mas poderemos contar com as nossas universidades e politécnicos para fazerem a ponte entre a I&d intramuros e a D+I extramuros, dentro das empresas e outras organizações. A criação da nova AI2 merece alguma reflexão para a criação da entidade pública “Agência” com maior autonomia do poder político do que o antigo “Instituto Público”. Sim, todos os parceiros ganham com o empoderamento da nova AI2 a maior distância do poder político de turno.

In Público, 6 de agosto de 2025

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