sexta-feira, 24 de janeiro de 2025
RJIES, ainda o sistema binário
No Portugal de hoje, todos os que refletem sobre o ensino superior pensam que o sistema binário é o melhor para o país, para os estudantes e para os empregadores. Na realidade, temos hoje um sistema ternário porque, para além da opção entre uma licenciatura universitária e uma licenciatura politécnica, existe ainda a opção por um curso TeSP, Técnico Superior Profissional. O acordo é universal, mas os docentes politécnicos sempre sentiram o desconforto de se verem como uma segunda classe. Esta reação tem uma longa história e teve cedências sucessivas do poder político sem que tenha havido políticas de consolidação da natureza binária (ou ternária na última década). Que resta hoje da obrigação estatal de oferecer percursos diversificados para responder à enorme diversidade dos candidatos agora admitidos ao ensino superior e à diversidade ainda maior das atividades profissionais que os seus diplomados irão escolher ao longo da vida? Muito pouco.
Ao repensar a lei de organização do ensino superior português, parece haver consenso sobre a conservação de um sistema binário. E, contudo, todas as alterações vão no sentido de enfraquecer ainda mais esta diferenciação. A questão deveria pôr-se de forma mais aguda nas áreas de educação e formação como as engenharias que existem nos dois subsistemas, mas não parece ser o caso. A sociedade (empregadores) compreende mal as diferenças, talvez porque estas não têm sido bem marcadas, quer do lado politécnico, quer do lado universitário; as famílias e os estudantes escolhem o politécnico ou a universidade percebida como de maior prestígio, isto é com maior nota de acesso, embora a proximidade da residência possa ser mais importante face aos elevados custos de deslocação; os docentes têm carreiras cada vez mais próximas; a estratégia de investigação dos docentes vai procurar validação e financiamento à mesma entidade, a FCT; e aqui os concursos admitem projetos originários do ensino universitário ou politécnico, não sendo valorizada qualquer diferença entre ambos. Estaremos com esta prática a cumprir a lei que desde as origens tentava sugerir algumas diferenças? Haverá diferenças entre os dois subsistemas universitário e politécnico apenas porque isso é afirmado na lei de bases quando depois ninguém reconhece as diferenças?
Como chegamos aqui
Originalmente, na proposta de Veiga Simão de 1973, o ensino politécnico tinha apenas cursos curtos de três anos e não se falava em investigação. Aquando da criação efetiva do ensino politécnico no início dos anos de 1980, manteve-se o objetivo de cursos curtos e não tocou na investigação. As escolas mais antigas que foram integradas nos novos institutos politécnicos não tinham investigação. Tudo parecia em perfeita harmonia.
A primeira reivindicação foi a de alongar o percurso educativo do bacharelato de 3 anos para chegar à velha licenciatura de 4 a 6 anos. Os docentes vinham de um grau universitário e começaram a ter alguma experiência de investigação num dos antigos mestrados que eram o requisito de entrada na docência politécnica, e só muito raramente num doutoramento. Muito naturalmente, tentaram replicar os planos curriculares universitários que conheciam e sentiram-se limitados num ciclo curto. Foi assim que no início dos anos de 1990, começaram a oferecer “licenciaturas bietápicas” um eufemismo para algo equivalente a uma licenciatura universitária (pré-Bolonha), o curso universitário universal do século XX. Na fase de explosão da procura de finais dos anos de 1980, alguns institutos politécnicos bateram-se pela conversão em universidade por uma questão de prestígio, sempre com apoio das forças políticas regionais. E que poderia o governo da república oferecer a uma cidade do interior que tivesse alguma sonoridade e fosse mais barato que uma universidade? Alguns, poucos, decidiram começar a recrutar docentes doutorados ou a doutorar os mais jovens, embora outros o rejeitassem porque os docentes seniores eram apenas licenciados. Quando pediam financiamento para a investigação, os responsáveis políticos sugeriam que se poderiam associar às então novas unidades de investigação universitárias e concorrer aos financiamentos FCT.
A carreira docente do ensino politécnico manteve uma estrutura muito incipiente até 2009, com os docentes mais velhos sem doutoramento e, portanto, sem qualquer iniciação à investigação. Alguns mais novos aspiravam a fazer o percurso completo dos colegas universitários, enquanto lhes estava vedado o equiparável ao catedrático. Aquando da reforma dita de Bolonha em 2007, venceram a resistência inicial do então ministro Mariano Gago à oferta dos novos mestrados e conseguiram uma oferta educativa com as mesmas designações do universitário e os graduados passaram a ter total equivalência aos universitários. Um licenciado politécnico (pós-Bolonha) passou a ser obrigatoriamente aceite num mestrado universitário, apesar de se manter nos documentos legais a pretensão de que os ciclos de estudos politécnicos teriam uma intenção profissional, diferente dos universitários. A partir da mesma época tornou-se claro que a docência por doutorados era um importante fator de prestígio e deu-se uma corrida a doutoramentos, havendo apoios e dispensas de serviço para alguns velhos docentes. As universidades espanholas foram a opção de muitos, levando a que o número de portugueses a doutorar-se em Espanha nessa época chegasse a 100 vezes o número de espanhóis em Portugal. A nova carreira docente de 2009 deu aos docentes politécnicos um percurso quase homólogo do universitário. Para além de uma pequena diferença salarial na categoria de entrada, a maior diferença é a obrigação de aceitarem 6 a 12 horas semanais de lecionação, enquanto os colegas universitários apenas têm 6 a 9 horas. Note-se que esta diferença tem pouco impacto no número médio de alunos por docente em cada um dos dois subsistemas.
Restou a marca diferenciadora “politécnica”, a não acreditação de doutoramentos e as 6 a 12 horas. A batalha seguinte foi a autorização para a acreditação de doutoramentos, curiosamente conseguida na lei regulamentar antes de introduzida na lei de bases. Se ia haver doutoramentos, faltava a etiqueta de universidade. Tinham batalhado longamente pela designação de “university of applied sciences”, uma designação adotada em alguns países europeus para a designação de apresentação internacional e nunca na língua própria. As conquistas anteriores tinham sido tão fáceis que esta designação já parecia insuficiente e começou a defesa da designação de “universidade politécnica” à semelhança das universidades espanholas de prestígio e especializadas nas engenharias. Ficaremos por aqui? Dou já por adquirida a equivalência total das carreiras docentes com agregações feitas também no setor politécnico.
O ponto a que chegamos
O Ministério da Educação faz agora uma proposta de lei de revisão do RJIES (Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior) enquanto os vários partidos parlamentares preparam também os seus projetos de lei. Não vai ser um processo simples com a carga ideológica que alguns partidos tentam associar às opções da lei original de 2007. Todos concordarão em algumas limitações da lei atual, mas dificilmente haverá grandes acordos quanto à direção a imprimir nesta revisão. Corre-se o risco de a ideologia ser muito mais importante do que o interesse público. Poucos tentarão analisar o que deve ser alterado para melhor servir a população, estudantes e famílias. Menos ainda serão aqueles que tentarão fazer alguma análise comparativa internacional para escolher um caminho que sirva melhor esse interesse público.
Desde a sua criação, todos os incentivos práticos foram no sentido de atenuar a diferenciação, apesar das juras de fidelidade ao sistema binário feitas por políticos, presidentes, docentes e alunos. Os institutos politécnicos foram incentivados a melhorar a sua atividade no sentido da aproximação das universidades com a criação de grupos e unidades de investigação que se poderiam financiar na FCT pelos mesmos critérios e com os mesmos painéis de avaliação das universidades. Mais tarde, incentivaram a sua participação em doutoramentos em associação com universidades portuguesas (e até com estrangeiras se houvesse alguma dificuldade com as portuguesas). O destino final previsível foi a autorização para criarem os seus próprios doutoramentos. E o critério legal de competência investigativa para acreditação de um doutoramento continua ainda a ser incompreensível ao falar-se em unidades de investigação próprias. Mas também é aceitável uma unidade supostamente multidisciplinar, ainda que cientificamente muito frágil em todas as disciplinas, ou então associações de instituições, mesmo antes de estar demonstrada a coesão dessa associação e, especialmente, o ambiente que cada aluno de doutoramento vai experienciar. Mais grave, a responsabilidade académica pela qualidade do doutoramento recai num conselho científico onde o conjunto de membros ativos na investigação pode ser ultraminoritário. No caso de associações o escrutínio científico furta-se a cada uma e a todas as instituições.
Nunca houve qualquer acordo sobre o tipo de investigação a promover no setor politécnico, usando-se termos como “investigação aplicada” e “investigação orientada” totalmente vazios de sentido legal ou de significado consensual na linguagem comum em ciência. O primeiro governo António Costa ainda tentou alargar o conceito de I&D do Manual de Frascati da OCDE, “incluindo um leque alargado de atividades de investigação derivadas da curiosidade científica a atividades baseadas na prática e orientadas para o aperfeiçoamento profissional”, mas rapidamente abandonou a ideia pela dificuldade de a fazer aceitar pela comunidade politécnica.
Chegamos assim a um ponto onde temos licenciaturas e mestrados com ligeiras diferenças na definição legal, mas um terceiro ciclo, o doutoramento, com uma única definição de conceito, ainda que possa escapar à regulamentação quando decorra em ambiente não académico. Deve ser claro que esta realidade legislativa não pode guiar a A3ES na imposição de uma diferenciação entre o que se espera de um docente e dos ensinos universitário e politécnico. Só podemos esperar que o sistema politécnico continue a deslizar para uma aparente imitação do universitário. Digo aparente porque, a realidade, pode ter enormes diferenças. Pensemos em cursos de engenharia de uma dada especialidade, um (A) numa das universidades mais procuradas de Lisboa ou Porto, e o outro (B) num instituto politécnico dos menos procurados pelos candidatos. Entre estes dois extremos poderão encontrar-se todos os graus intermédios, em universidades ou institutos politécnicos. A instituição (A) vai receber estudantes com muito bom desempenho nas disciplinas centrais do ensino secundário, provavelmente com classificações superiores a 16 em Matemática e Física. A instituição (B) vai receber poucos ou nenhum candidato selecionado pelo concurso nacional de acesso e terá estudantes com percursos anteriores em cursos TeSP, maiores de 23 anos ou admitidos por outros concursos locais. A grande maioria destes terá uma matemática e uma física a nível pouco superior ao do nono ano. O sucesso académico nas duas instituições será provavelmente semelhante, com as instituições a serem consequentes com a sua política de acesso, ajustando a ambição dos cursos à realidade dos estudantes admitidos. A enorme diferença estará nos objetivos propostos em cada uma das instituições para os seus licenciados. Compreensivelmente, na instituição (B) raramente se irá além da matemática e física do 12º ano.
Não ponho a questão da utilidade social, para Portugal, de cada um dos cursos de engenharia. O que deve ser evidente é que as competências dos diplomados nos dois cursos são muito diferentes. Ao emitirmos o mesmo diploma nos dois casos, estamos e desvalorizar o próprio diploma pela sua menor utilidade no momento do recrutamento.
Como se define um sistema binário
A lei de bases de reforma do sistema educativo de 1973 declara que “O ensino superior é assegurado por Universidades, Institutos Politécnicos, Escolas Normais Superiores e outros estabelecimentos equiparados.” E ainda que “1. Os estabelecimentos universitários conferem os graus de bacharel, de licenciado e de doutor. 2. Os Institutos Politécnicos, as Escolas Normais Superiores e os estabelecimentos equiparados conferem o grau de bacharel. 3. Aos graus de bacharel e de licenciado, quando incluam determinados grupos de disciplinas, podem corresponder títulos profissionais.“ Não há tentativa de descrever o tipo de ensino que seria oferecido em cada tipo de instituições.
Desde então, as leis de bases e as leis subsequentes tentam explicitar com pouco sucesso o tipo de ensino e de investigação no setor universitário e no setor politécnico. E podemos recorrer aos chamados descritores de Dublin que poderão ajudar, mas também são suscetíveis de interpretação ambígua por não iniciados. Possívelmente, o mais eficaz será fixarmo-nos na duração do ciclo ou ciclos de estudos que deve facilitar à entrada no mercado de trabalho e construir a partir daí os percursos escolares que melhor poderão levar a esse resultado, à plena aptidão para entrar no mundo do trabalho na melhor posição possível.
A um jovem que tenha terminado o ensino secundário, é hoje proposta a escolha entre três percursos, (i) um curso TeSP, (ii) uma licenciatura politécnica e (iii) um mestrado integrado ou uma licenciatura universitária seguida de mestrado. Para algumas áreas mais procuradas, a escolha é imposta pelo desempenho escolar do candidato. Para a maioria das áreas a escolha é livre e depende da disponibilidade do jovem para continuar um percurso escolar menos ou mais longo na dependência económica da família. No primeiro caso um estudante de TeSP que poderá ter algumas fragilidades no ensino secundário, é proposto um percurso de 3 semestres, seguido do estágio de um semestre já num posto de trabalho real. O plano curricular e as propostas de conteúdos terão de ser tais que o estudante se adapte rapidamente ao posto de trabalho, seguramente com uma formação estreita e relativamente pouco flexível. No segundo caso, um estudante de licenciatura politécnica terá um percurso de 6 semestres que lhe permite uma formação mais alargada e aprofundada para uma melhor compreensão dos problemas que vai enfrentar no posto de trabalho e uma maior flexibilidade para eventuais mudanças de percurso profissional. Por fim, o estudante que opte por um mestrado integrado de 10 a 12 semestres ou por uma licenciatura seguida de mestrado, estará disponível para uma formação inicial mais teórica ou desligada da realidade do posto de trabalho a que aspira e terá provavelmente mais flexibilidade para ajustes posteriores do seu percurso profissional.
Esta descrição refere-se aos ciclos de estudos de formação inicial de jovens adultos. A formação ao longo da vida de pessoas com experiência profissional poderá envolver a frequência de ciclos de estudos de TeSP, licenciatura, mestrado ou doutoramento, mas estes deverão ser organizados com propostas curriculares diferentes e com pedagogias adaptadas a adultos. Particularmente, quer as universidades, quer os politécnicos poderão desenhar mestrados para este público, o que é hoje quase inexistente em Portugal. O mesmo se diga para os doutoramentos, podendo adultos com experiência profissional procurar uma especialização de alto nível com um doutoramento que será normalmente de índole profissional avançada.
Mais do que definir o tipo de ensino e os seus objetivos, deixa-se aos docentes e à instituição de ensino superior a definição detalhada do percurso e dos objetivos de cada etapa do trabalho proposto para que os grandes objetivos sejam atingidos ao fim do tempo prescrito. Neste quadro em que o ciclo de estudos é caraterizado pelos grandes objetivos finais, deveremos corresponsabilizar a instituição de ensino superior e também o candidato ao acesso pela preparação necessária para o seu início e sucesso. Isto significa que o processo de seleção dos candidatos a cada ciclo de estudos em cada instituição deverá ser definido pela instituição com eventual imposição de uma preparação adicional do candidato, de um curso propedêutico (sem a admissão garantida) ou alguma formação adicional extraordinária no período inicial de frequência, depois de admitido.
Neste modelo de definição do sistema binário (ou ternário), cabe à Agência de Acreditação a certificação de que os pontos críticos da admissão dos candidatos e as competências finais para entrada num posto de trabalho são devidamente geridas pela instituição de ensino superior. Mais do que a avaliação de pré-requisitos e de procedimentos, a Agência deverá certificar os resultados, as competências para entrada num posto de trabalho e a boa preparação inicial para admissão ao ciclo de estudos e sucesso subsequente.
Não poderemos fugir aqui do comentário à obrigação de investigação dos docentes que hoje é quase universal para docentes de licenciatura, mestrado e doutoramento, do setor politécnico ou universitário. Para estes ciclos de estudos, estão definidas percentagens de docência por docentes de carreira que se presume satisfazerem mínimos apropriados de desempenho na qualidade do ensino e da investigação. A docência remanescente deverá ser feita por especialistas, incluindo profissionais experientes e destacados pelo reconhecimento do seu exercício profissional. Para cursos TeSP, exige-se docência competente nas áreas respetivas e uma grande proximidade do exercício profissional para as unidades curriculares de índole técnica.
Quanto vale o sistema binário atual
No sistema binário atual há diferenciação, pelo menos formal, das instituições, dos cursos oferecidos e da carreira dos seus docentes. A realidade é que qualquer destes três aspetos foi muito enfraquecido ao longo dos últimos decénios. Começando com a criação de institutos politécnicos, foi rapidamente permitido às universidades já estabelecidas a criação de unidades orgânicas com a natureza de escolas politécnicas. Aquando da integração da formação em enfermagem no ensino superior, em 2007, a norma foi serem integradas em institutos politécnicos quando existentes na mesma localidade ou em universidades quando tal condição não fosse satisfeita. Em Lisboa, Coimbra e Porto, o governo de então não teve força política suficiente para aplicar aquele princípio e manteve as escolas de enfermagem não integradas até que a sua exigência de integração nas universidades está agora a ser satisfeita. Por este princípio, outras escolas politécnicas dos respetivos institutos poderão requere a sua integração nas universidades locais. Esta realidade traduz-se em que um licenciado ou mestre em enfermagem poderá ter um diploma emitido por uma universidade ou por um instituto politécnico. O mesmo acontece, por exemplo, com um licenciado ou mestre numa engenharia sem que haja nenhuma diferenciação na inscrição numa ordem profissional. E as duas ordens ainda existentes perderam a sua diferenciação em função dos percursos académicos.
Concluímos que nunca houve a preocupação de que o diploma de graduação que vai ser apresentado ao empregador refletisse a natureza do percurso académico.
Mesmo muito descaraterizado, o sistema binário atual oferece uma escolha em todo o país. Os alunos com perfil mais académico mais inclinados para um percurso académico mais longo optam pelo universitário; aqueles que preferem a rápida entrada no mercado de trabalho procuram o politécnico, em licenciatura ou curso TeSP. Infelizmente, o percurso TeSP é visto por muitos institutos politécnicos como um canal adicional de acesso a licenciaturas para os candidatos que não satisfaçam os requisitos mínimos de acesso. Não só permite um canal adicional como pode permitir ultrapassar algumas disciplinas iniciais da licenciatura que representariam maior desafio.
Esta realidade transparece na grande percentagem de diplomados TeSP que prosseguem estudos, muito maior do que em Espanha ou França onde o mercado de trabalho é o destino imediato dominante e o valor do curso é bem percebido pelos estudantes, pelas famílias e pelos empregadores.
Que vai mudar com o fim do sistema binário
No imediato, apenas mudam as condições de carreira dos docentes, um pequeno acerto na remuneração dos professores adjuntos e uma redução do período letivo de 12 para 9 horas semanais. Como o rácio docente/discente já não reflete este maior esforço docente, o aumento de custos será pequeno. As atuais diferenças de custo entre cursos similares em universidade ou instituto politécnico são mais o resultado de o pessoal docente universitário ser mais velho e haver mais docentes no topo da carreira. A diferença entre os custos unitários dos estudantes no universitário e no politécnico refletem mais as diferenças de posição na carreira que tenderão a esbater-se nos próximos anos com a renovação do corpo docente e as promoções. Deve ser claro que vamos ter um sistema de ensino superior muito caro na utilização de recursos humanos porque nenhum país impõe que todos os docentes de todas as instituições de ensino superior sejam investigadores ativos. Utilizar mais docentes, significa que, tendencialmente, se vão manter salários comparativamente muito baixos e que o financiamento da investigação terá de ser repartido por mais aspirantes a investigador. Qualquer destas limitações é já hoje sentida. Na comparação entre carreiras especiais da função pública, os académicos perderam já uns 50% desde 1979. E é bem conhecida a dificílima gestão financeira da FCT sempre dependente de alguma sobra da execução do Orçamento de Estado ou dos fundos de Bruxelas. Teremos um ensino superior caro, mas de baixos salários e mal financiado na investigação.
Mais do que diferenças no desenho curricular, a diversidade da oferta atual é induzida pela grande diversidade na formação prévia dos alunos. A maioria daqueles que não passaram pelo Concurso Nacional de Acesso tem falhas em áreas disciplinares importantes que forçam que o curso superior que frequentam se ajuste, especialmente quando a maioria dos seus alunos está nestas condições. Com o fim do sistema binário, aumentará o esforço para que todas as licenciaturas pareçam semelhantes, mas isto não será novidade porque a A3ES já hoje não tem norma habilitante legal para impor uma grande diferenciação. As diferentes culturas são repassadas pelas Comissões de Avaliação Externa, CAE, com docentes dos respetivos subsetores. Deverá esta prática ser mantida se for ainda mais descaraterizado ou terminar formalmente o sistema binário? Se for abandonada e as CAEs forem formadas por docentes experientes, quer sejam do universitário, quer sejam do politécnico, regressarão as queixas de que estão as grandes instituições, leia-se universidades, a tutelar as mais pequenas e mais frágeis. Na acreditação de doutoramentos vai haver certamente queixas se, como será de esperar, todos ou a maioria dos membros das CAEs forem recrutados nas universidades com doutoramentos mais bem estabelecidos. Todas as licenciaturas parecerão iguais, mantendo-se as grandes diferenças resultantes das escolhas dos candidatos. Nos grandes centros do litoral, manter-se-á uma procura pelas instituições com maior prestígio embora a perceção de prestígio pelos empregadores continue a ser mais suave do que, por exemplo em Espanha. A França mantém enormes diferenças de prestígio entre as universidades massificadas e as muito seletivas Grandes Écoles de engenharia, medicina e negócios e o sistema de concurso para a admissão nestas continua a manter uma forte diferenciação.
À laia de conclusão
Ainda valerá a pena lutar na defesa do sistema binário? Na configuração política atual, dificilmente poderá essa luta sair vitoriosa. Ficará para a história como um último esforço para defender o interesse público com um sistema que devia ter sido mantido e muito melhorado. No passado, a natureza binária foi sendo enfraquecida progressivamente com pequenos passos tendo como fim nunca expresso um sistema unitário de ensino superior. Temos hoje um ensino básico e secundário com um relativamente baixo índice de abandono precoce, mas com maus indicadores de resultados. Em comparação internacional (OCDE), os indicadores de “literacia”, de “numeracia” e de “resolução adaptativa de problemas” da população adulta, mesmo da mais jovem, são assustadores, ficando Portugal no último lugar. A indicação mais chocante do recente relatório oficial para Portugal foi que, na literacia, os adultos com ensino superior em Portugal obtiveram resultados inferiores aos dos adultos com ensino secundário na Finlândia . Espera-se que estes resultados tenham servido de alerta forte para os responsáveis, depois de os últimos estudos PISA terem apontado no mesmo sentido.
A maioria dos países tem sistemas de ensino superior diferenciados, sendo essa diferenciação bem percebida por candidatos, famílias e empregadores. O nosso modelo tende para um tipo único de instituições com um corpo único de docentes e apenas os cursos TeSP marcam uma opção diferenciada de percurso (inicial) no ensino superior. Esta realidade cria um sistema muito caro e mau por não servir a diversidade estudantil. Não serve os mais ambiciosos (e mais capazes) que deveriam ser desafiados com um percurso academicamente competitivo aos melhores níveis internacionais. Não serve os candidatos mais pragmáticos que procuram uma rápida entrada no mercado de trabalho porque são aliciados a prosseguir num percurso demasiado longo. Não serve a sociedade porque oferece um perfil único de formação, pelo menos na aparência. A única fonte visível de diferenciação provém do Concurso Nacional de Acesso, enquanto a procura estudantil se mantiver elevada, o que tende a diminuir no futuro próximo.
Desistindo-se de um sistema binário (ou ternário com a inclusão dos cursos TeSP), resta a esperança de que um sistema com (i) um único tipo de instituições e (ii) um único tipo de docentes ainda (iii) ofereça um maior desafio para os estudantes mais ambiciosos academicamente e (iv) uma maior proximidade à prática profissional para os estudantes mais pragmáticos nos seus objetivos de formação. Poderá esperar-se que também se consiga um modelo de avaliação docente que (v) estimule uns a uma maior proximidade dos estuantes e (vi) outros a uma maior competitividade internacional. A nossa história dos últimos decénios não é promissora em qualquer destes possíveis canais de diferenciação, mas podemos sempre alimentar alguma esperança.
Maia, 24/jan/2025
Publicado em O Observador, 25 de janeiro de 2025
José Ferreira Gomes, Reitor da Universidade da Maia, Secretário de Estado do Ensino Superior no XIX e também da Ciência no XX Governo Constitucional
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