Os exames são uma componente muito importante do processo de ensino, mas a escola é muito mais do que exames. Estranhamente, depois de passarmos cinco anos a desvalorizar os exames, centramos agora a discussão da reabertura das escolas para os exames. Erro duplo. Os exames não podem ser desvalorizados pelo que contribuem para a aprendizagem e para a responsabilização de todos os atores do sistema educativo, mas não são a componente mais importante na situação de exceção em que vivemos. Infelizmente, o governo parece ter como única preocupação os exames do secundário. Talvez apenas com os exames de Matemática, Física & Química e de Biologia & Geologia que interessa ao grupo que poderá criar maiores problemas políticos na imagem pública do acesso ao ensino superior.
Depois de longas semanas de incerteza, vários países europeus começam a poder fazer uma primeira avaliação das suas estratégias de contenção da pandemia e de planeamento de uma saída, ainda que provisória, que evite que o pós-pandemia seja mais mortífero que o covid-19. É já evidente que, nesta altura, o afastamento social é a única arma de combate disponível e não sabemos ainda quando (e se) estarão disponíveis os ambicionados instrumentos eficazes de terapêutica e de imunização rápida. Hoje haverá 1 a 5% da população imunizada, dependendo do país e das projeções de cálculo, muito longe dos 60 a 70% de imunização julgados necessários para quebrar um surto de propagação deste vírus. Com a vacina num horizonte de longos meses ou anos, resta-nos viver com a expectativa de controlo de sucessivos surtos sempre controlados abaixo da capacidade do sistema de saúde. Portugal estará a passar este primeiro teste e, se formos otimistas e pensarmos que o verão será desfavorável à propagação do vírus, teremos de começar a planear o outono, reforçando muito mais a capacidade do sistema de saúde (e hospitalar, em especial) e aferindo os parâmetros dos modelos epidémicos para melhorar a capacidade de previsão disponível aquando do segundo surto. Estaremos assim muito melhor preparados para enfrentar o outono e atenuar os efeitos sociais e económicos das medidas que ainda irão ser necessárias. Este é um tema tabu pela enorme preocupação com os resultados imediatos, mas não podemos deixar de pensar o médio prazo.
Assegurada a segurança imediata, a questão mais urgente é a da saída segura das restrições extremas atualmente impostas, enquanto se planeia o futuro mais distante. Em particular, como atenuar as restrições ao funcionamento do sistema educativo sem correr riscos desnecessários para a segurança sanitária da população, mas atenuando o tremendo impacto económico da situação atual. Parece previsível que, entre nós, o surto epidémico seja bastante moderado ao longo de maio e que alguma abertura social possa ser considerada. Vamos supor que a propagação será moderada no verão, permitindo o restabelecimento dos circuitos económicos com menos limitações. O setor da hospitalidade manter-se-á muito afetado, mas alguma mobilidade local ou de necessidade imediata poderá vir a ser permitida. Os setores produtivos serão incentivados a voltar à atividade plena, dependendo do restabelecimento das cadeias de valor. Numa perspetiva otimista, poderemos esperar o regresso até aos 80% do nível de atividade económica anterior. Não será excessivo esperar que muitos estarão disponíveis para dispensar as férias de agosto para atenuar o impacto económico já sofrido e prevendo a grande probabilidade de novos impactos no próximo inverno. Obviamente, o pessoal do sistema de saúde e de outros serviços essenciais que foi mais sobrecarregado no período agudo, terá de ter condições de recuperação para que esteja em boas condições para enfrentar o inverno seguinte. Esta relativa pausa estival não pode deixar de garantir que os preparativos são feitos para que todo o sistema de saúde responda melhor no futuro (se for chamado a isso) e que a capacidade de acolhimento seja ampliada, inclusive com hospitais temporários que poderão ser necessários. Não é este o tema aqui.
Todos os sistemas educativos foram forçados a transitar subitamente do modo convencional para o ensino digital, a distância. É geralmente aceite que o ensino a distância é um bom substituto do presencial para adultos, mas falha pela ausência da componente de socialização para jovens, sendo totalmente inadequado para as crianças. Acresce que o ensino superior já tinha alguma experiência prévia (ainda que modesta) de ensino a distância, enquanto que, no outro extremo, o ensino básico (para não falar da educação pré-escolar) não tinha qualquer experiência, uma situação comum a todos os países. Estou a desconsiderar grupos especiais de alunos que pelas suas condições de vida não podem frequentar uma escola normal, havendo algumas experiências muito interessantes. Neste quadro, é claro que este regresso a uma quase normalidade, deverá dar mais atenção aos mais jovens, o que significa focar-se no ensino básico antes do secundário.
Para o sistema educativo, o desafio é recuperar tudo o que possa recuperar neste período (esperado) de relativa acalmia. Para as crianças até aos 12 anos, acresce a necessidade de criar condições para que os pais possam regressar às suas atividades normais se a tal forem chamados. Para todos, põe-se a necessidade de atenuar os efeitos do encerramento das escolas e de preparar desde já o próximo ano escolar. A grande maioria dos professores e educadores manteve-se muito ativa neste período e há disso muitos testemunhos. Na Casa das Ciências (https://www.casadasciencias.org/), o número de acessos subiu cerca de 50% em março em relação aos meses anteriores! Apesar deste esforço, todos concordarão que o efeito é limitado e muito variável. Tem sido apontado o aprofundamento das desigualdades, uma preocupação partilhada por todos os sistemas educativos que têm sofrido restrições semelhantes. Seria excelente que pudéssemos retomar a atividade em junho num esforço de recuperação até agosto. E pudéssemos manter o início do próximo ano, com planos de contingência para prováveis perturbações futuras.
A eventual retoma de atividade em junho não poderá ocorrer sem algumas perturbações. Recordemos que o encerramento das escolas não se fez pelo risco para os alunos, mas pela sua função de vetores de propagação. E que os professores mais velhos têm algum risco acrescido. Depois destas semanas em que todo o discurso público tem sido dirigido ao enfatizar dos riscos para induzir um comportamento social que era absolutamente necessário, agora vai ser necessário calibrar melhor o discurso. Para os mais velhos e para todos os que tenham fatores de risco acrescido, irá ser preciso manter a obrigação de confinamento e protege-los dos contactos com o exterior. Os outros irão regressar a uma nova normalidade em que manterão a sua atividade habitual com algumas obrigações de afastamento social. Infelizmente, nem todos poderão de facto regressar porque algumas atividades terão no entretanto desaparecido. Estes serão os mais afetados e merecedores da solidariedade de todos. Não será preciso dizer que um estado de alerta e todos os planos de contingência terão de ser mantidos para garantir uma rápida resposta em caso de necessidade. Teremos de nos manter preparados para uma atuação em dente de serra, subindo e descendo as medidas de afastamento social para calibrar o impacto no sistema de saúde.
Para as escolas, terá de se planear a reabertura, mesmo considerando que alguns professores serão dispensados em função do seu mais alto risco. A autoridade de saúde fará a avaliação, mas terá de se considerar a hipótese de dispensar os professores maiores de 65 anos e aqueles que atestem o seu maior risco. Por essa altura deverá ser já possível distribuir máscaras (não médicas) a todas as escolas de modo que professores e funcionários não docentes se sintam algo mais seguros. Seria excelente que conseguíssemos retomar todo o sistema educativo e de ensino até ao 9º ano, com alguns pequenos ajustes. Para o secundário, as dificuldades poderão ser maiores, até por a média etária dos professores ser um pouco maior. Aqui poderia ser dada prioridade às disciplinas com exame final nacional. Os exames nacionais serão naturalmente reagendados e sabemos do enorme esforço logístico envolvido nesta operação, mas poderemos esperar que ela seja viável sem termos de ir para grandes espaços abertos como já se viu em imagens de relvados desportivos na Coreia do Sul.
Por agora já todos somos especialistas em epidemiologia, mas teremos, mesmo assim, de deixar algum espaço de intervenção aos verdadeiros especialistas e todo o devido espaço de decisão aos responsáveis políticos. As prioridades devem, contudo, ser claras e bem explicadas a todos.
Este texto mereceu a discordância ou dúvida de alguns amigos a quem ofereci em 11 de abril o post scriptum que transcrevo.
Quando penso o presente, tenho o mau hábito de imaginar um cenário de saída futura. É um exercício de altíssimo risco, quase sempre falha. Também hoje poderei estar errado e sabia que não concordarias com o meu texto anterior. Adicionalmente, vale a pena ler o F. Assis no Público de hoje.
Eu compreendo bem a pressão para fazer exames do Secundário. Muitos outros países cancelaram exames finais. Na nossa tradição de acesso, sem exames estaríamos no caos. Num quadro bem diferente, temos de lembrar a solução de 1974. Mas não me preocupa só o acesso ao Superior. A “solução" que eu tinha imaginado, escrevi-a a 5 de abril e está transcrita mais abaixo sem mexer uma letra.
Nesta altura, não sabemos ao certo se podemos abrir nem como podemos abrir alguma coisa na nossa sociedade e economia. Qualquer estratégia de abertura tem riscos, grandes riscos. Temos 50% do país fechado. Manter a situação atual não tem riscos, tem consequências certas (mas difíceis de quantificar pela novidade do evento). Das soluções discutidas, choca-me que se exclua a possibilidade de usar o mês de agosto para trabalho pleno, adiando as “férias grandes” para dezembro. Dos políticos nacionais, quem melhor tenho ouvido falar disto desde o primeiro dia é o Fernando Medina.
Para uma pessoa com a minha idade, o cenário consequente à não abertura é de entrada num túnel de que não poderei chegar a ver a saída. Na alternativa, o risco de vida é muito significativo, especialmente se este período de acalmia relativa não for aproveitado para redimensionar o sistema de saúde “de guerra” para o embate provável do próximo inverno. Não vejo que estejamos a fazer o suficiente, longe disso.
Vejo muitos países europeus à procura de estratégias de abertura calibrada pela avaliação permanente dos riscos, mas sabendo que qualquer abertura terá efeitos sanitários negativos. Porque já temos uma dívida “que não podemos pagar”, vamos dar-nos ao luxo de não correr esses riscos? Talvez faça sentido. Se formos autorizados (BCE, UE), não correremos riscos financeiros. Outros correrão por nós. Os países com dívida atualmente “sustentável", esses correm riscos sérios com o que têm de fazer pela sua economia, mesmo antes de acorrerem às dificuldades dos outros. Alguns têm memória das consequências possíveis. Preparam-se para atuar.
E a UE vai existir daqui a um ano? Não sei, ninguém sabe e as tensões internas poderão subir imenso. Se acabar (ou for muito enfraquecida), todos perderão. Portugal regressará à sua história de séculos, a tentar sobreviver no jogo perigoso da política internacional. Historicamente, foi um jogo de certo sucesso, ainda que com um preço elevado desde o casamento de Catarina de Bragança. Não deveríamos ver a realidade atual como ela é?
A UE tem um orçamento de 1% do PIB europeu. Para um federalista, deveria ser mais de 20%, à imagem dos EUA e, mesmo aí, a solidariedade é limitada e a responsabilidade individual de cada estado e de cada município é elevada e com consequências bem reais. Para chegar lá, cada estado renunciou a uma enorme fatia da sua soberania. Não creio que a Europa esteja (infelizmente) preparada para isso. Não creio que Portugal defenda isso. A Itália ainda menos. A Holanda muito menos. Cada país defende o seu interesse e cada governo vai a Bruxelas defender o seu sucesso político imediato. Portugal também cumpre o seu papel: maior soberania na despesa e maior solidariedade na receita. (A Holanda também, a seu modo: maior soberania na área fiscal, p.ex., e maior solidariedade nas áreas onde sabe ir sair ganhadora - mercado único, p.ex.) E, não esqueçamos que se discute em Bruxelas a solução sem ainda conhecer a dimensão do problema!
Creio que a vida de um pequeno país (ou médio no jargão europeu) não será mais fácil num mundo tecnicamente globalizado do que foi no passado e o passado não foi fácil. Gostaria de ver uma UE mais forte e mais solidária/coesa. Não creio que haja condições nem vontade para isso. Os ingleses saíram antes destes novos dilemas… Creio que Portugal terá de se conformar com a realidade, embora deva tentar moldá-la melhor aos seus interesses. Tentar moldá-la, mas não romper, não contribuir para que o edifício frágil desmorone. Quando exige, e parece haver aí uma real unanimidade nacional, mais do que sabe outros podem dar, está a contribuir decididamente para que a construção desmorone. E ficaremos muito pior, não duvido. Outros países, pensarão que podem inventar futuros mais à sua medida. Não sei, parece-me improvável. Para Portugal, estou certo que não.
Tudo isto para concluir que deveríamos fazer tudo para salvar vidas (i) baixando o risco do covid-19 e (ii) mantendo uma economia que não venha a matar. Um equilíbrio difícil, certamente.
Texto que escrevi em 5 de abril sobre a eventual reabertura das escolas
O desafio é enorme e a incerteza total! Algumas coisas, vejo claro:
1. Se for possível abrir alguma coisa, deveria começar-se pelos níveis mais baixos, até aos 12 anos, porque são estes os que causam mais problemas às famílias e é preciso pôr a gente (mais nova - os pais) a trabalhar quanto antes.
2. O problema do secundário, até ao verão, é “apenas” o problema do acesso e o medo do impacto político das decisões que venham a ser tomadas, especialmente para a medicina e pouco mais. Já caíram ministros…
3. No acesso, a situação não deveria servir de desculpa para “entradas administrativas”. O universo dos alunos em condições de terminarem com sucesso o secundário (mesmo que com as notas internas e níveis de corte conhecidos de anos anteriores - não é o 10 interno!) deve ser de alguma maneira seriado para o acesso. Era esta a função dos exames.
4. A prioridade absoluta do secundário, se isso for possível, é fazer exames em julho, agosto ou setembro! Para que servem? Para o que sempre serviram estes exames: para seriarem os alunos. Idealmente, as aulas reabririam por um a dois meses para prepararem todos para exame com programas reduzidos. (Será preciso reduzir mais os programas depois das aprendizagens essenciais?…)
5. Ensino a distância e a telescola, muito bem! São boas ideias para manter professores e alunos ativos, pelo menos alguns. Não servirá para mais, mas isso já é muito importante.
6. Mais complicado é projetar o que será o próximo ano e (quase) tudo indica que será muito afetado. Sobre isso, NÃO tenho ideias!
7. O Superior seguirá melhor ou pior com o seu entusiasmo a distância. As IES vão andando, resolvendo alguns problemas e escondendo outros. Creio que também deveriam ser incentivadas a fazer alguns exames de tipo global logo e quando possível. Não podemos abandonar a ideia de que os exames são importantes e que os resultados das avaliações a distância (deus sabe como) irão ser aferidos em algum momento.
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