Um menino perdeu os socos e corre pé
descalço para não chegar atrasado à escola. Teve tempo de pegar num naco de
boroa para enganar a fome matinal, mas não deu para encontrar o calçado. Já está
frio neste outono temporão, mas nada que não se tolere, estando habituado a
correr pelos campos a ajudar nas fainas da época. O caminho é íngreme e
bastante enlameado, mas não é longe e o professor perdoará desta vez! Felizmente,
a pequena escola nova construída pelo pai já funciona, ainda que os alunos
sejam poucos, os três irmãos mais velhos e alguns vizinhos. As famílias mais
pobres não se podiam dar ao luxo de dispensar o trabalho das crianças e as
letras não prometiam uma vida melhor; para as duas casas da velha nobreza rural,
mandar os meninos à escola republicana não era opção. Valeu bem a pena o pai falar
àquele amigo republicano mais assanhado para conseguir a rápida colocação de um
professor. Em alternativa, teria de fazer todo o caminho até à escola do Conde
de Ferreira, na cidade, perto de uma hora de caminho. Mesmo assim, uma escola
parecia melhor do que as aulas privadas do padre-reitor, que fora a única opção
dos seus tios.
O professor dava a indicação de que o
menino poderia ir mais longe e a mãe impunha alguma disciplina para que os deveres
não fossem esquecidos. Mas ele era especialista em escapulir à vigilância da mãe
para as correrias com os irmãos mais velhos e os filhos dos caseiros. Sabia que,
se estivesse à vista, seria sempre chamado para ajudar a pensar o gado ou para
fazer algum recado. Melhor desaparecer mesmo e não faltava para onde. Os campos
de milho miúdo por onde tinha andado a espantar os pardais estavam colhidos e
tinham dado boa safra. Os campos de milho milhão tinham dado as espigas, mas as
canas estavam lá todas ao alto. Seriam colhidas mais tarde para alimentar os
bois no inverno, mas ainda davam bons esconderijos. O pai preferia agora semear
milhão que dava melhor rendimento e era preferido na boroa para acompanhar o
caldo. A mesa estava sempre cheia, com a família e os jornaleiros que ajudavam
nas lavouras e no tratamento do gado. As vindimas ainda não tinham acabado. Era
uma animação, mas havia sempre trabalho na colheita ou no lagar. Não gostava do
vinho novo que era tão apreciado pelas mulheres da casa. À ceia, não faltava
para compensar o longo dia de trabalho de homens e mulheres. Havia que vindimar
durante o dia, deixando todo o trabalho de adega para a noite, à luz da candeia
de azeite.
A personalidade ilustre de Penafiel que é
D. António Ferreira Gomes foi uma criança normal, que acompanhou os irmãos e as
outras crianças da vizinhança nas suas brincadeiras; que foi pescar ou brincar
no riacho que de Rande desce até ao Cavalum, logo ali abaixo da antiga escola. Correu
nos campos de Milhundos e fugiu à disciplina materna; não terá sido um aluno dócil
na escola onde aprendeu as primeiras letras. Terá sofrido muito aos 10 anos na
sua passagem dessa liberdade rural para a disciplina férrea de um internato,
abandonando subitamente a convivialidade de uma grande família onde tudo podia
acontecer menos a monotonia da sala de estudo silencioso que encontrou no Seminário
no Porto. O Tio Joaquim era já personalidade importante nesse novo ambiente,
mas não lhe daria grande proteção porque o rigor da disciplina era a pedra de
toque da qualidade da educação. E o Porto era longe! Mais de uma hora de
comboio de São Bento a Novelas seguido de uma boa hora de caminho a pé até
casa. Eram saídas para fazer umas três vezes por ano, no Natal, na Páscoa e no
verão. E não havia telefone nem cartas!
No Porto estava fechado no Seminário, mas
não escaparia à instabilidade social que se vivia em todo o país e que lhe
chegava diretamente no passeio semanal pelas ruas da cidade; o anticlericalismo
militante, a escassez dos meios de subsistência, a começar pelo pão (de milho já
que o trigo e o centeio seriam ainda mais raros). A mobilização para a Guerra
na Flandres só veio aumentar as dificuldades e aprofundar a já muito grave
instabilidade social. É esta a história de um menino de Milhundos que se afirma
progressivamente mediante o seu sucesso num percurso educativo na escola local
e, depois, no Seminário do Porto. Terminado este, segue para Roma para fazer a
sua licenciatura e vai encontrar ali a convulsão social do fascismo triunfante.
É esta a história que aqui é contada numa
linguagem fresca, mas rigorosa, convidando o leitor a ir mais longe no
aprofundamento do seu conhecimento da personalidade e da sua época. Do ambiente
que lhe foi dado viver em Penafiel, no Porto e na Europa. É uma história muito
rica porque cobre quase todo o século XX. Ele vai para o Porto uns meses antes
da revolução russa de 1917. A presença em Roma coincide com os sucessos
iniciais de Mussolini e do seu movimento.
Foi professor e reitor do seminário de
Vilar até ser nomeado Bispo de Portalegre e Castelo Branco no imediato pós-guerra.
Quatro anos depois vem para o Porto. Como ele disse repetidamente, foi a sua
nomeação como Bispo que lhe deu a responsabilidade social pelos seus povos
diocesanos. E fazem-no Bispo numa época em que Portugal não conseguia
acompanhar a rápida recuperação do pós-guerra europeu. Especialmente, o povo
rural perdeu a esperança no seu futuro e pressentiu de forma dramática a distância
que crescia para a Europa além Pirenéus. É esta realidade que levou à emigração
crescente e à sua consciência da “miséria imerecida do mundo rural”.
D. António soube sempre estar de pé diante dos homens, mesmo
quando teve de pagar um preço elevado por essa postura. É a lição de vida que
nos deixou e que nos convida a assumir. A famosa legenda que afixou no seu
Seminário de Vilar como objetivo educativo para todos os seus educandos, de joelhos diante de Deus, de pé diante dos
homens é também a lição que o leitor deve tirar desta leitura. Uma postura
que todos deveríamos assumir para a nossa conduta pessoal.
A Biblioteca Municipal e a Câmara Municipal de
Penafiel oferecem esta bela obra para uso de todos, mas especialmente dos mais
jovens. Os alunos das escolas podem iniciar-se no estudo de uma personalidade
comum da sua terra que, mercê das circunstâncias que lhe foi dado viver e da
sua própria força de caráter, ultrapassou as fronteiras da sua terra. Sem ser
político nem assumir atividades partidárias, durante perto de 20 anos foi um
espinho cravado num regime político cada vez mais anacrónico. Nos anos finais
do regime e já regressado ao Porto foi uma voz firme com homilias que tinham
sempre reservado título de primeira página na imprensa diária. Depois da
mudança de regime, veio a ser a voz forte que clamou pela necessidade de
garantir a democracia e não trair a vontade popular. Tudo isto está descrito
numa linguagem simples, numa história bem urdida que vai prender os leitores.
Penafiel, 3 de março de 2020
José Ferreira Gomes
Presidente da Fundação Spes
Prefácio de "À Descoberta de D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto", de Maria José Ferreira Gomes e Maria Adelaide Galhano, edição da Biblioteca Municipal de Penafiel, lançado em 4 de março de 2020
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