sexta-feira, 17 de abril de 2020

COVID-19: E a vida continua


Teríamos certamente muitos problemas nesta nova escola. Alguns pais resistiriam a deixar os seus filhos ir á escolas, pelo menos inicialmente face ao generalizado sentimento de insegurança criado. Apesar de poderem ser difíceis, estes problemas são menores do que a manutenção do encerramento, provavelmente por mais de um ano.

Este texto foi escrito como contributo para a discussão de uma política de reabertura do sistema educativo que aparece aqui na última secção.
1.             Plano de Ação para o Coronavirus.
No dia 3 de março foi apresentado pela Direção Geral de Saúde (DGS) o primeiro Relatório da Situação e o governo do Reino Unido apresentou o seu plano de ação para o Corona Virus[1] onde apareciam claramente as fases de contenção, atraso, (investigação) e mitigação. Ao ver a notícia na SkyNews, encontrei pela primeira vez um diagrama com a agora famosa curva (grosseiramente) gaussiana que estaria a ser empurrada para mais tarde naquela fase inicial de contenção e de atraso. A contenção era já insuficiente e descreviam-se as fases de atraso e mitigação. No atraso, tentar-se-ia adiar para mais tarde o surto, para mais perto do verão. Quando se viesse a chegar à fase de mitigação, então o objetivo seria o de achatar e alargar a curva para que os serviços de saúde não se tornassem insuficientes para assistir aos doentes.
O esquema parecia muito simples e eficaz a passar a mensagem, mas não impedia de fazer um cálculo simples do alargamento necessário para reduzir a altura até um nível comportável. Se tivéssemos de chegar a infetar 50% da população (mais tarde a Chanceler Merkel viria a falar de 70%) e considerando que uns 5% dos infetados poderiam precisar de internamento em cuidados intensivos (UCI) e que o país teria cerca de 1 cama UCI para 10000 habitantes, e que cada doente permanecesse 2 semanas em UCI, teríamos de manter o surto estabilizado durante 500 semanas ou 10 anos. Por mais que se ajustem ou corrijam os parâmetros desta estimativa, tornava-se evidente que esta estratégia simplista não poderia atingir a imunização de grupo! Era também claro que seria essencial um grande reforço da capacidade hospital, especialmente em UCI, mas que isso seria insuficiente. Esta a conclusão que vários amigos meus tiveram dificuldade em aceitar naqueles dias.
A única alternativa para a imunização da população é a vacinação, mas não se esperava que ela estivesse disponível antes de 18 meses, diziam os mais otimistas. Teríamos então de aplicar fortes medidas de achatamento – mitigação por um período longo, previsivelmente, mais de 18 meses. Uma estratégia possível seria segmentar a população, se houvesse garantia razoável de que a maioria da população corria um risco baixo e que a população de alto risco (mais velha ou com certas patologias) poderia ser eficientemente protegida. Se imaginarmos que a população em risco é 20% do total, então haveria vantagem em deixar correr o surto rapidamente na restante população para retirar então as medidas de isolamento da população de risco. Nenhum país tomou este caminho, talvez pela dificuldade com a definição da população de risco, para além dos mais velhos, e as prováveis consequências para um número ainda elevado de pessoas classificadas como não de risco. E será agora tarde para refazer o caminho não escolhido...
Referi acima o plano de ação do Reino Unido que seguia as orientações gerais do Centro Europeu para o Controlo de Doenças (ECDC)[2]. Em Portugal, as orientações da DGS também não se afastavam muito destas orientações europeias, talvez com menos clareza prospetiva.

2.             Proteção dos grupos de risco.
Houve claramente uma falha na criação de um plano de contingência nacional de proteção dos grupos de risco. Isso tornou-se evidente quando a Ministra da Saúde, indagada em conferência de imprensa pela resposta aos primeiros casos de infeção descontrolada em lares de idosos respondeu que eles eram privados e deveriam ter um plano de contingência. Certamente deveriam e, provavelmente, teriam um plano elaborado e publicado internamente. Deveria ter sido claro que não iriam ter capacidade nem meios para ter sucesso por si, quando o Sistema Nacional de Saúde tinha já recorrido ao encerramento de alguns centros de saúde. Para futuro, é necessário reunir recursos públicos e incentivar o apoio privado de profissionais e voluntários para conseguir garantir que o sistema de proteção de todos os grupos de maior risco está assegurado. Isto exige apoio do sistema de saúde (estatal ou privado), mas também de organização de equipas de apoio e de criação de novos espaços para permitir um afastamento social, especialmente em casos de infeção.

3.             Reforço do sistema de saúde
O achatamento da curva do primeiro surto infecioso tem por objetivo evitar o desastre imediato e dar tempo ao sistema de saúde para se preparar para o futuro. Não há indicação de que seja possível estabelecer nesta altura qual o nível de preparação necessário, mas todos os países estão a proceder como se fosse necessário um aumento significativo de duas a cinco vezes, pelo menos. Isto poderá ser feito com um reforço da capacidade permanente do sistema de internamento com um adicional de hospitalização de emergência a ser desmontado no fim deste surto.
Portugal foi prudente na data de confinamento e parece ter conseguido evitar uma crise das dimensões da de Madrid ou de Bérgamo. Conseguiu evitar a crise imediata, associada à primeira fase do surto que estamos a sentir. A questão em aberto é saber se aproveitou este tempo para preparar o futuro, se está a reforçar a capacidade hospitalar de modo aguentar os surtos futuros até atingirmos um nível suficiente imunização de grupo. Medido pelo número de camas UCI com ventilação, não parece que o número inicial de 1140 tenha sido multiplicado por um fator significativo, sem o qual não nos poderemos considerar protegidos. Madrid, Londres, Nova Iorque dão notícia de um esforço que aqui não foi necessário, mas poderá vir a ser.
A produção nacional de muitos materiais em falta no mercado internacional é possível, mas não há um esforço coordenado nesse sentido. Ao fim de um mês de inação central, começam a surgir muitas iniciativas de empresas e de organizações estatais que vão sendo aproveitadas, mas não se vê um esforço de coordenação e de escalamento que permita resolver o problema imediato e até criar a base de um novo setor industrial.

4.             A grande escolha, contenção ou mitigação
A grande escolha que se põe agora é escolher entre a contenção ou a mitigação. A opção pela contenção significa reduzir o número de novos casos até um número suficientemente baixo para que todos os casos possam ser acompanhados e isolados. Na linguagem muito visual da literatura anglófona, é martelar a curva até haver um pequeno número de novos casos diários que permita o acompanhamento individual de todos os seus contactos.
Em alternativa, manteríamos um nível de novos casos mais alto, mas sempre suficientemente baixo para que a capacidade do sistema de saúde não seja atingida. Na primeira opção, será preciso um grande esforço para manter a quase supressão até que seja feita a vacinação quase universal da população. Não sabemos qual o grau de confinamento exigido, mas teremos de estar preparados para manter um grau elevado por mais de um ano. Na segunda opção, poderíamos começar a abertura mais cedo, mas montar um sistema de monitorização eficaz para calibrar as medidas de afastamento social a ser suavizadas ou reforçadas em cada momento de modo a nunca ser atingida a capacidade do sistema de saúde.
O único país que parece ter tido sucesso na contenção foi Singapura, onde um programa agressivo de deteção e acompanhamento de todos os casos importados deu bons resultados desde janeiro até fins de março. E isto é ainda mais notável se reconhecermos que mantém intensas relações com a China, mesmo no período de maior incidência em algumas regiões chinesas. Nos primeiros dias de abril teve de aplicar medidas de confinamento.
O mais provável é que, terminado com (maior ou menor) êxito o controlo inicial do surto, tenhamos de entrar numa fase de descompressão social com altos e baixos no número de casos detetados e ajuste periódico das medidas. É a chamada fase de dança na literatura inglesa. Corre-se sempre um risco, mas será o menor risco que poderemos imaginar viável. E podemos depositar grande esperança no conhecimento e inovação que uma rede mundial de investigadores de áreas de base muito diversas está a acumular. Vão surgir melhores terapêuticas. Vão surgir melhores maneiras de afinar as medidas de afastamento social. Há a enorme esperança de que uma vacina eficaz seja encontrada e produzida em grande quantidade num tempo pensado impossível até há pouco.

5.             Reabertura social em Portugal
O sucesso do achatamento da curva epidemiológica está a ser conseguido com o encerramento forçado de mais de 50% da atividade económica com efeitos nunca testados na economia e na vida da população. O Ministro das Finanças fala[3] numa perda de PIB anual de 6,5% por cada 30 dias úteis de economia parada, e todos os economistas está de acordo que a recuperação da economia mundial será lenta, especialmente em Portugal com a sua apreciável dependência do turismo. Haverá acordo generalizado de que os riscos são enormes e que as medidas deverão ser atenuadas logo que seja previsível que o sistema de saúde está em condições de absorver o impacto do recrudescimento provável do surto infecioso. Não é aceitável olhar para esta realidade como um dilema entre a vida e a economia, porque a quebra da economia a que vamos assistir também vai provocar dificuldades sanitárias e mortes. E, com o sistema de saúde devidamente reforçado e um sistema de acompanhamento (proteção individual generalizada, testagem intensa e acompanhamento informático da população infetada) deverá ser possível moderar o confinamento sem riscos sanitários insuportáveis. Há enormes reservas na Europa a qualquer sistema de acompanhamento informático da população infetada e dos seus contactos, mas não é seguro que estas compreensíveis reservas se mantenham por muitas semanas se se tornar necessário o prolongamento ou a renovação do confinamento.

6.             Sistema educativo
Feito o encerramento dos estabelecimentos de ensino e recorreu-se em todos os países ao ensino a distância baseado na internet. Embora haja uma pressão crescente para a utilização de tecnologias no ensino, a experiência é ainda muito limitada e ninguém defende que possa ser uma boa alternativa, especialmente para os mais jovens. Nesta transição, a grande maioria dos professores de todos os níveis do ensino e até da educação pré-escolar fizeram um enorme esforço e parece terem tido algum sucesso na proposta de atividades aos seus alunos presenciais da véspera. Logo foi identificado o problema de que nem todos os alunos teriam as mesmas condições de acesso e que os oriundos de famílias socialmente mais frágeis seriam os mais prejudicados. A escola estaria a reforçar as desigualdades em lugar de as atenuar como se pretendia.
Mas este é um problema menor, mesmo admitindo que pode atingir uns 25% da população escolar. O problema real é que as razões para o encerramento das escolas se podem prolongar por mais de um ano e que os efeitos sobre estas gerações de crianças e jovens serão muito significativas. Esta realidade é agravada pelo facto de a sua presença em casa reter os pais e dificultar imenso a atividade daqueles que poderiam estar em teletrabalho.
Na estratégia de saída do confinamento, o governo decidiu dar prioridade aos exames finais do secundário e aos alunos que precisam de se preparar para esses exames. Para os outros anos, não haverá provas e os professores decidirão, mesmo sabendo-se que muitos alunos não podem ou não querem aceder ao tele-contacto. Não será possível ir além de uma passagem administrativa para não prejudicar os socialmente mais frágeis, adiando o prejuízo para uma fase ulterior da vida destes jovens.
A preocupação com os exames resulta certamente do seu impacto nas decisões de acesso ao ensino superior. Como quase todos os alunos que terminam o secundário (mais de 90%) entram normalmente no superior, o problema põe-se não no acesso em geral, mas no acesso aos cursos mais procurados. E o problema assume dimensões políticas porque estes são os filhos dos grupos sociais mais fortes e com maior capacidade para serem ouvidos e entrarem em litigação.
Dito isto, temos de concordar que o acesso é um ritual de passagem muito importante para todos os jovens e que tem de ser tratado com a maior seriedade. Note-se que a França cancelou os exames do Bac que não têm impacto direto e determinante no acesso, mas ainda tenta manter os exames de Concours aux Grandes Écoles, novamente pelas mesmas razões que o acesso aos nossos cursos mais competitivos terão de ser mantidos até ao limite. Deveremos manter os exames e um período de preparação ou de revisões suficientemente longo para atenuar as desigualdades criadas no período de encerramento. Umas seis semanas no mínimo parece nesta altura que serão viáveis, se nos permitirmos usar todo o período de verão se necessário. Os exames também terão de ser adaptados, se se entender que nem sempre teria sido possível completar o programa previsto. Com o que sabemos atualmente, não deve ser difícil atingir este objetivo, mas é pouco considerando todas as crianças e jovens no sistema e os pais que estão hoje obrigados (aqueles com condições para o fazer) a dar apoio aos seus educandos.
Quais são as objeções à abertura de todo o sistema de ensino até ao secundário? A grande razão apresentada é a elevada probabilidade de muitos jovens servirem de vetor de transmissão da pandemia, mesmo que em geral não sintomáticos ou com sintomas ligeiros. Acresce a dificuldade de professores mais velhos e outros funcionários não docentes se protegerem do contágio, principalmente pelos alunos. O encerramento das escolas (e de muitos outros tipos de espaços) foi imposto, não tanto pelo risco de contágio individual, mas pelo problema grave da expansão exponencial da epidemia muito para além da capacidade do serviço de saúde. Em todos os países onde se fez a reabertura das escolas, foram adotadas medidas extraordinárias de proteção individual, nomeadamente higiene reforçada e uso obrigatório de máscara. A expectativa é que estas medidas atenuem muito a transmissão comunitária. Quanto ao risco individual dos adultos em atividade nas escolas, é necessário que todos se sintam confortáveis, o que é muito difícil nesta altura. A intensíssima campanha pública promovida com o objetivo de achatar a curva epidemiológica valorizou os riscos individuais muito para além da realidade. No quadro abaixo apresenta-se a percentagem de fatalidades em Portugal para cada grupo etário. Não se considera aqui a existência de outros fatores de risco conhecidos da pessoa e do seu médico. Assim, o risco efetivo de cada grupo etário para pessoas “saudáveis” é mais baixo do que o expresso. Poderá ser muito mais baixo.
Poderia ser adotada uma política de dispensa de todos os professores (e outros trabalhadores) de 60 ou mais anos de idade que não se sintam confortáveis na escola e todos aqueles de idade inferior, mas com um fator acrescido de risco conhecido. Neste quadro, estaríamos numa situação de muito baixo risco local, ainda que a reabertura possa estar a contribuir para a propagação na sociedade em geral. Qualquer estratégia de reabertura tem de ser acompanhada de uma monitorização intensa para deteção precoce do risco de novo pico e temos de estar preparados para a provável ocorrência de vários picos nos próximos meses. Teremos de garantir que estes são sempre suficientemente moderados e não ultrapassam a capacidade do sistema de saúde.
Para evitar os efeitos mais danosos, serão precisas outras medidas como a proteção reforçada dos mais velhos ou de risco conhecido, medidas que terão de ser adotadas em qualquer caso.
Teríamos certamente muitos problemas nesta nova escola. Faltariam alguns professores, especialmente no secundário, aqueles que vão ser chamados a estar com os alunos em preparação dos exames! As turmas deveriam reduzidas para diminuir o contacto, mas isso é incomportável, a não ser que se reduzisse o tempo letivo. Alguns pais resistiriam a deixar os seus filhos ir á escolas, pelo menos inicialmente face ao generalizado sentimento de insegurança. Apesar de poderem ser difíceis, estes problemas são menores do que a manutenção do encerramento, provavelmente por mais de um ano.

Porto,16 de abril de 2020


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