"O Bairro da Tabela Periódica"
Pósfácio
A
criatividade humana é frequentemente associada ao sonho, mas um sonho que em
geral é o culminar de um trabalho bem suado. Medeleiev não escapa à norma de
que o seu grande contributo para a ciência lhe terá aparecido pronto a servir
num sonho. Mesmo a haver alguma ponta de verdade, terá sido no sonho de um
homem exausto pelo esforço de procurar a ordem onde outros tinham falhado, de
procurar fazer sentido da informação dispersa que, ao longo de décadas, tinha
sido recolhida sobre os elementos químicos. Depois de três dias e três noites a
jogar às cartas com o baralho incompleto dos elementos então conhecidos, terá
passado pelas brasas exausto e aí chegou a inspiração. As 63 cartas do seu jogo
solitário de fevereiro de 1869 eram ordenadas pela massa atómica, mas
aproximava cartas de elementos com propriedades parecidas. Estava ali a base
dos grupos que hoje aparecem como colunas nas tabelas existentes em todos os
laboratórios de química e em todas as salas de aula do mundo.
Neste
ano de 2019, a Sociedade Portuguesa de Química assume em Portugal a liderança
da celebração da grande criação de Mendeleiev. São muitos os parceiros
interessados na celebração, desde os representantes das várias disciplinas
científicas até às escolas, aos institutos politécnicos e às universidades.
Físicos, Biólogos, Geólogos são igualmente interessados nesta organização da
matéria que a Tabela Periódica medeia. Se a Tabela Periódica começou por
ordenar o trabalho minucioso dos químicos na descoberta e estudo dos novos
elementos, mais recentemente a tarefa de criar elementos artificiais nos
laboratórios – ou nas grandes instalações de física de altas energias – recai
sobre físicos e sobre as enormes equipas que trabalham nos dois ou três locais
hoje ativos neste desiderato. Mas os astrofísicos não estão menos interessados
porque a grande maioria dos elementos foram formados e estão a ser formados em
corpos estelares que começam agora a ser compreendidos. Para Biólogos, o
conhecimento da posição na Tabela Periódica dos poucos elementos que são os
constituintes dominantes da matéria viva é importante, mas também o é para os
elementos cuja presença escassa não deixa de ser crucial para a viabilidade da
vida. A Geologia estuda a Terra na sua longa história, toda ela constituída por
matéria sólida ou líquida constituída pelos 92 elementos naturais nas condições
atuais da Terra. A Ciência organiza o nosso conhecimento e a Tabela Periódica
foi capaz de organizar a nossa compreensão da natureza como a conhecemos no
nosso ambiente imediato na Terra e no espaço exterior.
Mas neste
ano de 2019 celebramos também a figura de Dmitri Medeleiev que, da sua
cidadezinha perdida na lonjura siberiana, ascendeu a pulso até à cátedra de
Química em São Petersburgo e ao protagonismo na Química europeia da sua época.
Registo especial, merece a sua presença no primeiro Congresso de Karlsruhe de
1860 que finalmente permitiu um acordo para a definição das massas atómicas dos
elementos. Depois da confirmação da sua Tabela Periódica pela descoberta de
elementos que preenchiam alguns espaços deixados vagos, Medeleiev passou a ser
o mais respeitado cientista russo e uma das estrelas no palco europeu do seu
tempo e até hoje. A sua vida pessoal foi igualmente colorida, particularmente o
seu segundo casamento com uma jovem artista e o salão que manteve ao longo de
muitos anos para receber em sua casa a nata da sociedade para discutir temas de
arte e ciência muito ao gosto do século. Mas esta seria outra história.
Manuel
Monte sonhou estes mesmos elementos, que hoje já são 118, arrumados nos seus
quatro bairros para discutir as suas diferentes afinidades e antagonismos. É da
diversidade que se faz a Química e também este mundo onde vivemos e de que somos
feitos nós próprios. A Química dá força a um argumento que junta os dramas da
vida humana com o grande drama da natureza.
José
Ferreira Gomes
Comissário
Nacional
Ano
Internacional da Tabela Periódica
Posfácio de "O Bairro da Tabela Periódica", Manuel João Monte, Editorial da Universidade do Porto, 2019, ISBN 978-989-746-210-8.
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