domingo, 2 de junho de 2019

O Bairro da Tabela Periódica - pósfácio







"O Bairro da Tabela Periódica"
Pósfácio
A criatividade humana é frequentemente associada ao sonho, mas um sonho que em geral é o culminar de um trabalho bem suado. Medeleiev não escapa à norma de que o seu grande contributo para a ciência lhe terá aparecido pronto a servir num sonho. Mesmo a haver alguma ponta de verdade, terá sido no sonho de um homem exausto pelo esforço de procurar a ordem onde outros tinham falhado, de procurar fazer sentido da informação dispersa que, ao longo de décadas, tinha sido recolhida sobre os elementos químicos. Depois de três dias e três noites a jogar às cartas com o baralho incompleto dos elementos então conhecidos, terá passado pelas brasas exausto e aí chegou a inspiração. As 63 cartas do seu jogo solitário de fevereiro de 1869 eram ordenadas pela massa atómica, mas aproximava cartas de elementos com propriedades parecidas. Estava ali a base dos grupos que hoje aparecem como colunas nas tabelas existentes em todos os laboratórios de química e em todas as salas de aula do mundo.
Neste ano de 2019, a Sociedade Portuguesa de Química assume em Portugal a liderança da celebração da grande criação de Mendeleiev. São muitos os parceiros interessados na celebração, desde os representantes das várias disciplinas científicas até às escolas, aos institutos politécnicos e às universidades. Físicos, Biólogos, Geólogos são igualmente interessados nesta organização da matéria que a Tabela Periódica medeia. Se a Tabela Periódica começou por ordenar o trabalho minucioso dos químicos na descoberta e estudo dos novos elementos, mais recentemente a tarefa de criar elementos artificiais nos laboratórios – ou nas grandes instalações de física de altas energias – recai sobre físicos e sobre as enormes equipas que trabalham nos dois ou três locais hoje ativos neste desiderato. Mas os astrofísicos não estão menos interessados porque a grande maioria dos elementos foram formados e estão a ser formados em corpos estelares que começam agora a ser compreendidos. Para Biólogos, o conhecimento da posição na Tabela Periódica dos poucos elementos que são os constituintes dominantes da matéria viva é importante, mas também o é para os elementos cuja presença escassa não deixa de ser crucial para a viabilidade da vida. A Geologia estuda a Terra na sua longa história, toda ela constituída por matéria sólida ou líquida constituída pelos 92 elementos naturais nas condições atuais da Terra. A Ciência organiza o nosso conhecimento e a Tabela Periódica foi capaz de organizar a nossa compreensão da natureza como a conhecemos no nosso ambiente imediato na Terra e no espaço exterior.
Mas neste ano de 2019 celebramos também a figura de Dmitri Medeleiev que, da sua cidadezinha perdida na lonjura siberiana, ascendeu a pulso até à cátedra de Química em São Petersburgo e ao protagonismo na Química europeia da sua época. Registo especial, merece a sua presença no primeiro Congresso de Karlsruhe de 1860 que finalmente permitiu um acordo para a definição das massas atómicas dos elementos. Depois da confirmação da sua Tabela Periódica pela descoberta de elementos que preenchiam alguns espaços deixados vagos, Medeleiev passou a ser o mais respeitado cientista russo e uma das estrelas no palco europeu do seu tempo e até hoje. A sua vida pessoal foi igualmente colorida, particularmente o seu segundo casamento com uma jovem artista e o salão que manteve ao longo de muitos anos para receber em sua casa a nata da sociedade para discutir temas de arte e ciência muito ao gosto do século. Mas esta seria outra história.
Manuel Monte sonhou estes mesmos elementos, que hoje já são 118, arrumados nos seus quatro bairros para discutir as suas diferentes afinidades e antagonismos. É da diversidade que se faz a Química e também este mundo onde vivemos e de que somos feitos nós próprios. A Química dá força a um argumento que junta os dramas da vida humana com o grande drama da natureza.

José Ferreira Gomes
Comissário Nacional
Ano Internacional da Tabela Periódica


Posfácio de "O Bairro da Tabela Periódica", Manuel João Monte, Editorial da Universidade do Porto, 2019, ISBN 978-989-746-210-8.

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