Atrever-me a comentar Bolonha nesta mesa é de uma tremenda coragem ou
talvez insensatez. Tenho aqui sujeitos desta história que poderão dar o seu
testemunho de uma intensa vivência dos antecedentes e das peripécias do
processo político. Como observador externo e distante, só posso comentar, dar
uma visão pessoal do que chegou então à província e da vivência do longo
processo do que Bolonha foi sendo ao longo destes últimos 20 anos.
A primeira nota é que Bolonha foi um tremendo êxito. De uma angústia política
de um ministro francês (Claude Allègre), o truque de uma assinatura com mais
três ministros (Itália, Alemanha e Reino Unido) para uso interno foi fogo que
chegou a toda a Europa e mais além. Não é comum podermos revisitar 20 anos
depois os objetivos políticos de uma simples declaração e concluir, sem grande
ofensa à verdade, que foram plenamente cumpridos:
- Adoção de um sistema com graus
académicos de fácil equivalência
- Adoção de um sistema baseado
essencialmente em duas fases principais
- Criação de um sistema de
créditos
- Incentivo à mobilidade
- Incentivo à cooperação Europeia
na garantia da qualidade
- Promoção das necessárias dimensões a nível Europeu no campo do ensino superior
E contudo, 20 anos depois, quase tudo isto é já dado como adquirido e vemos
as limitações que é preciso esconder para que formalmente possamos apresentar apenas
o sucesso.
- Adoção de um sistema com graus académicos de fácil equivalência. A França atingiu o seu objetivo de tornar o seu sistema de ensino superior mais compreensível do exterior sem ter de mexer em nada de essencial. Todo o edifício anterior foi preservado, assinalando-se agora os níveis de 1º ciclo, de 2º ciclo e de 3º ciclo. A maitrise continua; a passagem da maitrise para o segundo ano do mestrado não é para toda a gente; as grandes écoles mantêm o sistema de 2+3 com um concurso muito duro para a entrada no +3. Tenho consciência de que esta visão otimista não será partilhada por muitos governantes franceses que tentaram levar mais longe a reestruturação do sistema de graus e diplomas. Também sei que a recente decisão (de Macron) de extinguir a ENA (École Nationale d’Administration) é uma resposta, talvez oportunista, a um sentimento de repulsa a um sistema bastante elitista de educação. E, contudo, foi este sistema que manteve a França que conhecemos e tem permitido pagar um estado social muito dispendioso.
- Adoção de um sistema baseado essencialmente em duas fases principais
O objetivo de compreensão dos três ciclos de graduação, L-M-D, foi
conseguido. Em geral não houve grandes traumas, sendo o sistema anterior de
cada país vertido na nova linguagem. Dentro deste quadro muito geral, cada país
tentou aproveitar o impulso externo de reforma para atingir objetivos próprios.
Em Portugal, optamos, caso possivelmente único na Europa, por mudar a designação
do grau académico ao nível +3 (licenciatura para o antigo bacharelato),
mantendo-se até hoje uma indefinição quanto aos seus objetivos no mercado de
trabalho. O sistema binário português foi defendido por todos os governos desde
1980, mas esteve sempre sob ataque e a diferenciação foi ainda mais esbatida
com a reforma de Bolonha (2007). E a recente extinção dos mestrados integrados
de engenharia vai provavelmente agravar esta realidade. De facto, a figura de
Mestrado Integrado era o único “privilégio” das universidades na oferta inicial.
Os novos primeiros ciclos vão rapidamente aproximar-se das licenciaturas
politécnicas como já acontece com os primeiros ciclos de engenharia de muitas
universidades. Queremos caminhar para um sistema em que a (nova) licenciatura é
o nível preferencial de profissionalização? E queremos adotar esta estratégia,
quer para os cursos universitários, quer para os cursos politécnicos? A
diferenciação feita nos textos legais é muito ténue e a sua aplicação pelo
regulador (A3ES) é claramente insuficiente. Acreditaremos ainda na
possibilidade de manter um sistema binário para as engenharias?
A Espanha teve uma história especial. Não foi conseguido consenso político
e foi preciso chamar ao governo um presidente do CRUE para se fazer uma
conversão rápida, ainda que muito atrasada. E a controvérsia continua. Foram
extintos os antigos diplomas de 3 anos de engenharia, fazendo-se convergir
todos os cursos (1º ciclo) para 4 anos com a possibilidade de um segundo ciclo
de 1 ano. Uma tentativa interessante de aproximar do sistema americano, mas à
distância do Atlântico... O sistema é equilibrado pela pujança dos ciclos
curtos de 2 anos equivalentes ao nosso curso de TeSP, Técnico Superior
Profissional. Note-se que, na população de 25 a 34 anos[1],
Portugal tinha em 2017 mais licenciados (ou com grau mais alto) do que a
Espanha, a França ou a Alemanha.
Percentagem
da população de 25 a 34 anos com um grau ou diploma de ensino superior
(Ed. at a Glance, 2018)
Doctoral or equivalent
|
Master's or equivalent
|
Bachelor or equivalent
|
Short-cycle tertiary
|
BA or higher
|
Higher Education
|
|
EU22
|
11.94
|
17.03
|
19.14
|
4.77 |
36.17
|
40.94
|
Portugal
|
0.00
|
17.29
|
16.32
|
0.00
|
33.61
|
33.61
|
Spain
|
0.40
|
16.07
|
12.98
|
13.20
|
29.45
|
42.64
|
France
|
0.63
|
17.59
|
12.02
|
14.10
|
30.24
|
44.34
|
Germany
|
0.83
|
13.62
|
16.52
|
0.34
|
30.97
|
31.31
|
Netherlands
|
0.44
|
17.40
|
27.39
|
1.37
|
45.23
|
46.59
|
Unit. Kingdom
|
0.89
|
13.61
|
29.51
|
7.62
|
44.01
|
51.62
|
- Criação de um sistema de créditos
O sistema de créditos foi aceite, embora estejamos longe de um entendimento
único do que vale uma unidade. Faz-se a medida pela noção de trabalho do
estudante, mas não há nenhum esforço de aferição dessa realidade. A ideia
nacional de que os créditos são transferíveis entre quaisquer instituições de
ensino superior é simplista e esconde uma realidade mais complexa. Quando
aplicada cegamente, causa distorções graves no progresso dos estudantes em
mobilidade e na credibilidade dos diplomas concedidos.
- Incentivo à mobilidade
O programa Erasmus é porventura o maior êxito da União Europeia, com enorme
adesão dos jovens estudantes. Para além da preocupação política, podemos dizer
que a adesão dos jovens é fruto da realidade social contemporânea, da maior
facilidade da mobilidade temporária ou permanente e da aspiração de sempre dos
mais jovens a alargar os seus horizontes.
- Incentivo à cooperação Europeia na garantia da qualidade
Formalmente, tudo funciona bem, embora com tensões fortes. A acreditação
transfronteiriça foi travada, mantendo-se a soberania nacional ou regional
sobre as agências.
Como todos os sistemas de qualidade, também a regulação da qualidade do
ensino superior não vai certamente cristalizar na forma em que foi introduzida
em Portugal. Estamos na fase de verificação da conformidade que tem um custo
elevado para uma simples verificação de procedimentos (na melhor visão de uma
realidade mais complexa). Não poderemos deixar de atender à necessidade de
passar daqui para uma regulação da qualidade das aprendizagens (ou das
competências, se preferirmos esta linguagem). Atualmente, os sistemas nacionais
de verificação das aprendizagens são frágeis e será certamente muito difícil
chegar a um acordo transnacional. O AHELO (da OCDE) falhou e, noutro plano, o
MULTIRANK é ridiculamente mantido pela hipocrisia do financiador comprometido e
do financiado interessado. O sistema de verificação da qualidade dos
procedimentos permite e talvez incentive a divergência da qualidade das
aprendizagens, pelo que o passo seguinte será inevitável. Creio que é urgente!
- Promoção das necessárias dimensões a nível Europeu no campo do ensino
superior
A cooperação interinstitucional tem crescido e a queda das fronteiras e a
mobilidade crescente de pessoas e ideias é certamente um forte incentivo para
que este caminho continue a ser trilhado. Pessoalmente, tenho muitas dúvidas
sobre o mérito das duplas ou múltiplas certificações como têm sido incentivadas
pelo financiamento da União Europeia. Nem sempre a transparência para
estudantes e empregadores é mantida ao nível desejável, para que o valor da
experiência social seja realmente complementado por um valor académico que nem
sempre está assegurado.
Não devemos omitir que estas propostas
chegaram às instituições de ensino superior embrulhadas numa linguagem de um eduquês requentado de décadas
anteriores. Os financiamentos da União Europeia alimentaram este exercício de
uma forma nem sempre muito transparente, mas firmemente direcionado. Estou a
falar dos projetos Tuning[2]. No ensino superior,
esta linguagem apareceu como novidade e foi bem aceite pelo que tem de senso
comum. Todos passaram a falar de competências e de centrar o processo educativo
no estudante. Em Portugal, o ano de 2007 foi o culminar deste exercício de
modernização da linguagem dos nossos docentes. De um momento para o outro
deixaram de existir disciplinas ou cadeiras para tudo se encaixar em unidades
curriculares. E deixou de haver conhecimentos e experiências a transmitir e
avaliar para só se discutirem “competências”. Foi uma belíssima experiência de
dinamismo das nossas instituições que deram prova de uma enorme capacidade de
transformação. Infelizmente, foi fogo de pouca dura. Como apareceu, a paixão
pela modernidade também desapareceu sem deixar grandes sequelas negativas. Os
danos que estas teorias tinham causado (e estão a causar) no ensino básico e
secundário não afetaram o superior. Os docentes tomaram o que havia de senso
comum na “nova” narrativa de aprendizagem (sem ensino!) mas não se sentiram
forçados a fazer a aplicação cega da teoria. Um belo exemplo do que pode a
autonomia universitária e a capacidade crítica dos seus docentes.
Se merece nota positiva a resistência aos
eventuais malefícios de uma teoria educativa nunca demonstrada empiricamente,
já temos de criticar o pouco esforço posto, em geral, para adaptar os métodos
de trabalho propostos a estudantes que são diferentes neste tempo de sociedade
de informação. Ao mesmo tempo, as instituições estiveram pressionadas para
conseguirem ganhos de eficiência (financeira) num quadro totalmente rígido de
gestão de pessoal e de gestão do processo educativo. A poupança possível estava
na redução do tempo semanal de aulas (ou no aumento da dimensão das turmas).
Para muitos, a redução do tempo semanal de umas 24 horas para cerca de 21 foi associado
à “modernização” de Bolonha. E já se prepara hoje uma segunda onda de redução
das 21 horas para as 18 horas semanais. E até se vão buscar bons exemplos a
Berkeley ou a Oxford, esquecendo os estudantes que lá são admitidos e os apoios
(não contabilizados) que lá são oferecidos.
According to the BFUG report (2015), “the
original European vision … has often been interpreted in different ways when
used as leverage for national reforms”, possibly because it “was not well
communicated to or not well understood by all stakeholders in higher education
and by other societal actors in the participating countries”[3].
Esta autora italiana aponta duas falhas
que serão certamente partilhadas por muitos outros observadores.
i)
O objetivo da relevância do 1º ciclo no mercado de trabalho. Logo no relatório de preparação
para a reunião dos ministro em 2001[4],
foi sentida a necessidade de notar que “not
that first degrees should be just a preparation for a particular well-defined
profession, but rather that certain dimensions required for nearly all future
professional activities (transversal skills) should receive due attention”.
Com o fim dos mestrados integrados,
parece estarmos hoje a seguir esta interpretação “errada” da pureza inicial de
Bolonha. Isto não significa que a figura de “mestrado integrado” deva ser
consagrada como imutável. O que deveria ser garantido é que nem todos os
primeiros ciclos têm a intenção de preparar diretamente para o mercado de
trabalho como acontecerá com os primeiros ciclos de engenharia que dão direito
automático a inscrição em qualquer das duas ordens profissionais do setor.
ii)
Adoção de um sistema de créditos ECTS. O sistema pretendia estabelecer que 60 créditos por
ano fossem atribuídos às unidades curriculares em função da carga de trabalho
do estudante para atingir os objetivos da unidade. Na prática olhou-se mais
para uma carga de trabalho projetada (ou imaginada) e deu-se muito pouca
atenção aos objetivos de aprendizagem. Em muitos casos, será mais relevante o
tempo letivo (de contacto) ou a suposta relevância do curso. São muito raros os
estudos empíricos, a posteriori, da
realidade vista do ângulo do estudante.
[1] OECD, Education
at a Glance 2018, Fig. A1.2
[3] IN “From 1999 to 2019: 20 years of European debate,
development, and achievements”, Maria Sticchi Damiani, doi:
http://dx.doi.org/10.18543/tjhe-6(2)-2019pp51-71 , cita: “The Bologna Process
Revisited: The Future of the European Higher Education Area” (Bfug report, Yerevan,
2015. http://www.ehea.info/media.ehea.info/file/2015_Yerevan/71/1/
Bologna_Process_Revisited_Future_of_the_EHEA_Final_613711.pdf.
[4] Haug Guy
and Christian Tauch, “Trends in Learning Structures in Higher Education (II).
Follow-up Report prepared for the Salamanca and Prague Conferences of March/May
2001” (April 2001),
http://www.aic.lv/ace/ace_disk/Bologna/Reports/Trends/trend_II.pdf.
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