“O Bairro da
Tabela Periódica” de Manuel João Monte
Apresentação,
em 6 de junho de 2019
No passado
dia 26 de maio, preparei-me para ir votar na Europa com a leitura de Álvaro
Domingues no Público[1]:
A
propósito da Europa, Ovídio descreve a crise amorosa do poderoso deus que,
apaixonado pela filha de Agenor, abandona toda a solenidade do poder capaz de
num só movimento de cabeça sacudir todo o universo e, apaixonado, decide
cortejá-la adotando a forma de um touro branco de chifres pequenos e brilhantes
como joias, olhos meigos e expressão pacífica, todo ele fingido de boi manso
entre os novilhos do rebanho dos deuses. Amedrontada, primeiro, curiosa,
depois, Europa enamora-se do bicho, acariciando-o, adornando-o e oferecendo-lhe
flores. Regozija-se o apaixonado, que a beija lambendo-lhe as mãos. Já perdida,
Europa afaga-lhe o peito, coloca-lhe grinaldas na cornadura e senta-se no dorso
do animal que vai caminhando para as areias douradas da praia e se faz às
ondas, afastando-se e levando a sua presa pelas águas do mar aberto. Aterrada,
a princesa vê a costa a afastar-se, agarrando com a sua mão direita um corno e
a esquerda repousando sobre o lombo do animal. Agitadas pela brisa, as suas
roupas estremecem…
E fui votar!
As motivações
para votar os eleitos para o Parlamento Europeu são difíceis de explicar e os
poderes deste parlamento são escassos, mas de enormes consequências para as
nossas vidas. Nada como uma boa fábula para despertar uma manhã de domingo e
motivar o cumprimento do dever. Depois da leitura, votei melhor!
Fui convidado para apresentar um livro, uma peça de teatro que é
também de química e que pretende celebrar os 150 anos dum enorme contributo
para a estruturação da nossa maneira de entender o mundo que nos rodeia e para
o moldar aos nossos interesses. Do apresentador, espera-se que celebre os
méritos do autor e que “venda o livro”, não tanto aos que estão aqui (que já
foram cativados), mas aos muitos que não vieram hoje, mas podemos esperar que
venham a ser influenciados pela leitura e pela participação nas suas
representações. Mas, antes de testar a minha qualidade de vendedor, devo tentar
entender porque se terá um professor de química decidido a escrever uma peça de
teatro e a Senhora Vice-Reitora achou apropriado dar público reconhecimento
institucional e testemunho de que considera esse devaneio como parte do seu
objeto contratual.
Apesar dos esforços de alargamento da função, um professor
universitário deve ser um educador e é nesse objetivo superior que deve
entender toda a sua atividade de ensino, de investigador e de divulgador do
conhecimento. Desculpar-me-ão se considerarem esta visão antiquada, mas não
creio que possamos perder de vista o núcleo central da nossa missão. De facto,
ser um educador naquele sentido amplo é já muito difícil; se pretendermos dar
igual centralidade a todos os objetivos que aqui assumo como de segundo nível, corremos
o risco de permanentemente nos remetermos para um desempenho medíocre. Sejamos
bons educadores e assumamos que toda a diversidade da nossa vida profissional é
vista nessa perspetiva incluindo a avaliação. Até quando um produto seja uma
peça de teatro!...
Com o processo de Bolonha chegou ao ensino superior português a
notícia de que o objetivo do processo educativo eram as competências dos
diplomados. Para além do trivial, a discussão teve um efeito positivo porque
não foi levada demasiado a sério e não se chegou a explicitar a oposição entre
competências e conhecimentos como tem acontecido no ensino básico e secundário.
E a culpa não é da internet onde estará, dizem, toda a informação porque a
teoria apareceu 50 anos antes. Chegou tarde ao superior e merecerá uma
avaliação positiva se tiver deixado a noção de que o percurso educativo de cada
jovem é uma experiência única e irrepetível que deixa marcas indeléveis para
toda a sua vida. O conhecimento não foi desvalorizado, mas renovaram-se os
esforços para que a experiência do estudante seja mais rica e deixe um traço
mais profundo. Os nossos jovens merecem um esforço adicional para que o
ambiente que lhes é oferecido nas escolas, nos institutos politécnicos e nas
universidades seja mais rico e que, mantendo o seu rigor e exigência no núcleo
curricular, convide todos para experiências mais diversas. E assim chegamos ao
Teatro!
As competências de representação teatral são-nos exigidas todos os
dias[2],
qualquer que seja a nossa atividade profissional e também no ambiente de lazer
ou familiar. As competências para urdir e contar uma boa história são o
pré-requisito para a representação e para o sucesso na vida em sociedade. Aqui
surge a proposta que nos é hoje oferecida pelo Manuel João Monte. Uma estória
bem montada com muitas pequenas histórias para deixar no leitor – ou no
espectador – o conhecimento de uma extraordinária descoberta de que comemoramos
os 150 anos. A natureza que conhecemos é constituída por um relativamente
pequeno número de elementos e cada um destes elementos tem as suas
caraterísticas próprias, bem definidas afinidades para com cada um dos outros
elementos. (A isto chamamos Química.) Há 150 anos constatava-se que as
características destes elementos se repetiam quando os elementos eram ordenados
pela sua massa. Só decénios mais tarde se reconheceu que não era exatamente a
massa o parâmetro fundamental para a ordenação, mas o número de protões do seu
núcleo, o que veio a ser designado por número atómico. O impressionante é que
tivesse sido possível chegar a uma tabela periódica dos elementos químicos numa
altura em que a própria existência de átomos era incerta e nada se sabia da sua
natureza e organização, muito menos se suspeitava que pudessem ter uma
estrutura, isto é, que pudesse vir a compreender-se que seriam constituídos por
partículas mais pequenas cuja organização satisfaria regras muito próprias e
profundamente chocantes. Mas isto é já história do futuro, de um futuro que a
todos viria a surpreender.
O que interessa aqui registar é que estamos todos para celebrar a
Tabela Periódica de Mendeleiev e o Bairro que o Manuel João Monte imaginou para
recolocar os elementos químicos. Que faz isso com a simplicidade de quem cumpre
mais uma função de professor e que põe ali todo o seu esforço didático para
ensinar o leitor e os futuros espectadores. Que demonstrou ali a sua notável
competência para urdir uma bela estória e nos amarrar à leitura da primeira à
última frase. Que convida o leitor a interpretar a peça. Como professor,
convida outros professores a usarem esta peça como instrumento de aprendizagem
dos seus alunos.
Na década de 1950, C.P. Snow via a separação entre as culturas científica
e humanística como deficiência de uma educação básica inglesa muito focada
ainda nas raízes culturais latina e grega que empobrecia o conhecimento
científico dos ingleses. E via cada grupo definitivamente entrincheirado no seu
forte inexpugnável, mas também indiferente ao outro. O sistema educativo inglês
já abandonou o latim e o grego, embora não seja seguro que, com isso, tenha
corrigido as deficiências que Snow via. Os esforços para construir pontes entre
os dois redutos têm existido, mas ainda há muito poucos habitantes com dupla
nacionalidade plena. Vista do nosso reduto de Ciência, apetece perguntar
quantos do outro lado da via panorâmica sabem enunciar o segundo princípio da
termodinâmica. (E não digo entender porque isso poderia ser embaraçoso para
muitos de nós deste lado...)
Tal como Snow terá exagerado nos danos causados ao progresso da
Inglaterra pelos excessos de cultura clássica nas suas escolas, também nós
estaremos a exagerar se dissermos que não há interesse mútuo, até algum namoro casual.
Coabitação é ainda muito rara e de casamento já não é politicamente correto
falarmos.
De teatro devemos falar aqui e agora. Porque estamos a falar de
uma peça de teatro que a Universidade do Porto oferece ao público e porque esta
peça de teatro é uma bela e profunda aula de ciência. E também porque estamos
num palco que todos os dias serve para sucessivas sessões performativas de Física.
Aqui, normalmente, sessões em que o ator declama a sua narrativa para um número
pequeno de espectadores, mas não menor do que em muitos teatros, noutros tempos
ditos experimentais. O professor universitário enfrenta todos os dias o seu
público e tem um desafio semelhante ao de um encenador profissional. Tem de
passar a sua mensagem e de manter o interesse do seu público para que a sala
esteja composta e a mensagem passe. E já agora para que as avaliações no fim do
ano não sejam demasiado penalizadoras. E, frequentemente, tem pela frente
algumas centenas de estudantes, um número comparável ao dos maiores teatros. Certamente,
alguns professores se desembaraçam da sua missão sem grande preocupação com o
público, quanto a número e à passagem da mensagem, garantindo apenas que na sua
autoavaliação e na de alguns pares seja visto como um “grande professor”,
infelizmente acima da maioria dos seus estudantes. Estes, coitados, são
obrigados a dar atenção porque ainda pode haver um exame final. Terão de se
revezar para saber o que se passou em cada representação. Mas, não é muito
diferente no outro lado da barricada onde o público teatral não passa de alguns
pares que se sentem obrigados a saber o que se passou ali para fazerem a sua
crítica. Tal como no nosso meio, também ali a corporação faz normalmente
autoavaliações muito positivas, reservando as críticas amargas para a conversa
do café.
O nosso autor de hoje ganhou o gosto pelo teatro com o grande Carl
Djerassi que, depois do sucesso científico e industrial, enveredou pelas artes
no exercício e no patrocínio. Das duas obras traduzidas por Manuel João Monte
(e publicadas pela Editora U.Porto), Falácia e Oxigénio, esta última trata de
um tema eminentemente químico, a prioridade da descoberta do elemento Oxigénio.
Mas, partindo de uma realidade com interesse para os químicos, desenvolve um
enredo dramático que envolve as esposas ou companheiras (para usarmos uma
linguagem mais ajustada ao nosso tempo, mas também às ambiguidades de então) das três
personalidades em confronto, Antoine Lavoisier, Joseph Priestley e Carl
Scheele. No caso presente, o autor optou pelo caminho mais árduo de enfrentar
diretamente a química da descoberta e do desenvolvimento da tabela periódica,
reduzindo ao mínimo a trama de enquadramento. Provavelmente, toma esta opção
para não descentrar o objetivo pedagógica da peça, já que a personalidade e o
trajeto de vida real de Dmitri Mendeleiev seriam suficientes para uma novela de
prime time.
O autor constrói a sua proposta em 5 cenas, três de uma imaginada
reunião de condomínio para gerir os problemas dos 118 apartamentos do Bairro e
duas numa sala de aula de escola secundária. Na primeira cena faz-se uma
paródia muito bem conseguida ao uso atual de género, lembrando que em português
só dois dos 118 elementos são femininos, e comparando com a situação noutras
línguas.
O segundo ato, trata os problemas
relacionados com a extrema diversidade dos habitantes do bloco p, que leva o
Oxigénio a queixar-se do assédio de
metais de outros blocos a alguns dos não metais [do seu bloco], como os halogéneos, o enxofre e até [ele]
próprio (que tem sido assediado para formar os mais diversos óxidos).
Segue-se uma cena em sala de aula onde faz o elogio (ou será a apologia?) da
Química, pondo um aluno a afirmar que nem
tudo o que é natural é bom. Há muitos venenos na natureza, alguns cogumelos,
por exemplo. Finalmente, a última cena discorre sobre a tristeza pela falta
de Química nos últimos elementos conhecidos que nem sequer chegam a habitar os
seus apartamentos de tão efémeros que são. Mas, tinha de acabar numa nota
positiva de homenagem a Mendeleiev pelo desenho do Bairro. E, ao contrário da
maioria das reuniões de condomínio, termina em harmonia geral com a repetição
da Traviata em homenagem à Tabela Periódica. Passados 150 anos, sabemos já que a proposta de
Mendeleiev está bem ancorada em porto seguro e não corre os riscos de uma Europa
que se terá deixado levar pelos seus próprios devaneios, correndo todos os
riscos e a incerteza do mar alto.
O Professor Manuel João Monte tem, naturalmente, uma preocupação
pedagógica que vai ser confirmada pela adesão dos jovens escolares. Antes
disso, seremos nós a provar o humor pedagógico do autor na leitura do trecho
selecionado que nos foi prometida.
José Ferreira
Gomes
“O Bairro da Tabela Periódica” de Manuel João Monte, Edições UPorto, 2019
Apresentação, em 6 de junho de 2019, Faculdade de Ciências, Universidade do Porto
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