sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Para a reforma do sistema de C&T

[Uma versão encurtada foi publicada no Expresso de 30 de dezembro de 2016)

É tempo de abandonarmos um bom modelo dos anos de 1990 e procurarmos inspiração nas melhores práticas internacionais que prometam uma consolidação do SNCT que sirva o país num tempo de competição global.


Os planos anunciados pelo governo para a evolução do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT) e para a avaliação das unidades de investigação prometem manter o modelo bimodal de separação estrita entre ensino e C&T e uma avaliação de grandes unidades com implicações demasiado débeis na identificação das forças e fraquezas de cada unidade e na renovação dos quadros e na especialização estratégica das instituições. É tempo de abandonarmos um bom modelo dos anos de 1990 e procurarmos inspiração nas melhores práticas internacionais que prometam uma consolidação que sirva o país num tempo de competição global. Propõe-se a devolução de responsabilidades aos governos das universidades com a missão de contratação de docentes/investigadores para satisfazer os objetivos nacionais de C&T.
O SNCT como o conhecemos hoje foi impulsionado a partir da nossa adesão à então Comunidade Europeia tendo por base e por atores principais os doutorados no estrangeiro nas décadas de 1960 e de 1970 que para isso tinham beneficiado do apoio do estado (INIC) e da Fundação Gulbenkian. A organização que conhecemos foi sendo estabelecida a partir do início da década de 1990 muito inspirada na experiência francesa. Baseia-se em unidades de investigação de adesão livre dos investigadores (autorizados pelas instituições de ensino superior quando a ela vinculados contratualmente) e financiadas em total autonomia das universidades. Este modelo reconhecia implicitamente a incapacidade de os órgãos de governo das universidades para terem alguma intervenção útil ao desenvolvimento do SNCT. Na generalidade dos casos as instituições eram governadas por uma geração de jovens doutorados que tomaram a liderança com a lei Sottomayor Cardia de 1976, trocando os seus laboratórios de investigação pela gestão de um equilíbrio sempre delicado entre os interesses das corporações de professores, estudantes e funcionários que detinham o poder na estabilização pós-revolucionária. Não tinham de facto condições para gerir o desenvolvimento científico que todos sabíamos necessário.
Passados 30 anos a situação é diferente.  A maioria dos reitores das nossas universidades teve uma relativamente longa carreira científica e reconhece a necessidade de uma gestão firme que permita a consolidação da sua instituição dentro do SNCT. Continuar a ignorar o seu conhecimento das condições locais e a negar às instituições a definição de uma estratégia de desenvolvimento em C&T é contraprodutivo e afunda o beco sem saída que criou os graves desequilíbrios atuais entre o pessoal próprio e o pessoal de investigação. De facto, continua a ser o pessoal docente das universidades o responsável pela direção de quase toda a atividade científica e todos reconhecem que está ali o potencial para a desejada melhoria da transferência de conhecimento para a economia e a sociedade. Mas os reitores e os órgãos de governo das universidades não respondem pelo desempenho científico nem têm meios para influenciar as decisões estratégicas, estabelecer prioridades e reunir os meios materiais e humanos para as atingir. Não é surpreendente que as decisões de recrutamento de docentes a todos os níveis nem sempre favoreçam os mais promissores. É compreensível que as decisões de abertura de concursos, de constituição de júris e de seriação pelos júris pareçam perseguir outros objetivos, sabendo-se que o equilíbrio interno da corporação docente ainda é muito importante. Todos estão de acordo em criticar o inbreeding, mesmo aqueles que participam nos processos que o reforçam.
Os momentos de avaliação e recontratualização com a FCT são sempre aproveitados para repensar as estratégias de grupos unidades e, deveríamos esperar, das universidades que lhes fornecem os meios humanos seniores e as acolhem. Não seria saudável nem necessário promover uma grande reorganização das unidades que, em geral, cumprem bem a sua missão de enquadrar e dar sentido às estratégias individuais dos investigadores seniores. Mas a avaliação a ser promovida pela FCT deverá permitir em simultâneo, valorar as unidades, os seus grupos constituintes e as universidades a que os investigadores seniores estão vinculados. As decisões de financiamento cabem à FCT, mas exigem uma negociação com a(s) universidade(s) de vinculação dos investigadores seniores. Seriam as universidades a receber o financiamento para emprego científico e para equipamento dentro de um contrato programa negociado com a FCT tendo em vista a estratégia da unidade dentro da universidade. Da avaliação resultaria simultaneamente uma apreciação da Unidade como agregado de grupos de investigação e de cada Universidade como entidade de vinculação contratual de investigadores seniores. A avaliação dos resultados obtidos (outputs e outcomes) é feita sob a responsabilidade da FCT, a avaliação da estratégia terá de ser vista no quadro do que sejam os planos da Universidade, da região e do país.
Neste texto discute-se quase exclusivamente a situação nas universidades por ser ali que os problemas se desenvolveram mais cedo, mas um modelo semelhante poderá ser adotado nas instituições politécnicas.




Secretário de Estado do Ensino Superior no XIX Governo e do Ensino Superior e da Ciência no XX Governo

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Para um emprego científico estável

[Uma versão encurtada foi publicado em Jornal Público26 de Dezembro de 2016, 6:51]
Defende-se a adoção de uma política de contratualização com as universidades para a integração de investigadores nos seus quadros docentes, mas isto só é possível depois de uma avaliação do desempenho científico de tipo novo.

É geralmente reconhecido o envelhecimento dos quadros docentes universitários enquanto os laboratórios fervilham com jovens investigadores doutorados. A gestão corrente e a orientação estratégica das universidades são muito determinadas pela corporação docente. As unidades de investigação são também lideradas por docentes e, principalmente, por docentes seniores, enquanto a grande maioria dos investigadores doutorados ativos são jovens com contrato de bolseiro pós-doc ou contrato de trabalho sempre com um horizonte limitado no tempo.
O governo tem apresentado vários instrumentos de incentivo ao emprego científico e publicou um decreto-lei (57/2016 de 29 de agosto) com um novo regime de contratação de invjestigadores doutorados que não parece ter agradado a ninguém nem se vê como vai resolver este problema de precariedade. Para as universidades e as suas unidades de investigação, o problema é o de integrar um número maior de jovens investigadores com plenos direitos dentro da instituição. Só assim poderemos fruir plenamente da criatividade e da capacidade de inovação desta população jovem, internacionalizada e muito bem treinada.
Muitos departamentos universitários mais dinâmicos têm mais de dois investigadores doutorados por cada docente contratado. Não poderemos aspirar a integrar todos estes investigadores, mas não seria difícil incorporar uma parte significativa como docentes (ou investigadores) com plenos direitos e obrigações perante a universidade. Não restarão dúvidas de que um tal rejuvenescimento dos quadros universitários teria um impacto muito importante na sua resposta aos novos desafios que se põem hoje ao sistema científico. Uma boa gestão do pessoal docente poderá libertar os mais produtivos das cargas docentes excessivas e rotineiras por períodos limitados.
Esta operação terá de ser feita com muito cuidado porque temos já hoje um rácio docente / discente semelhante à média europeia (ou da média da OCDE) e não poderemos baixar a eficiência global do sistema de ensino superior. Mas deve ser claro que a renovação do corpo docente pela integração de um número significativo de investigadores muito ativos irá fazer uma mudança qualitativa na universidade. Teremos uma nova geração a tomar a iniciativa e bem preparada para dar novas respostas aos desafios que se põem à sociedade. Provavelmente, só com uma revolução deste tipo poderá a universidade portuguesa ganhar o ânimo para satisfazer as enormes expectativas que todos depositam nela.
Como poderemos oferecer um contrato de carreira docente a uma parte relevante dos investigadores que já hoje trabalham nos nossos laboratórios sem correr o risco de vir a ter desequilíbrios financeiros graves nem baixar o desempenho do sistema científico? A generalidade dos reitores são hoje pessoas com um longo e bem reconhecido percurso de investigação. Conhecem bem as necessidades do sistema, mas estão ainda muito dependentes dos interesses mais imediatos da corporação docente e não dispõem de bons instrumentos de avaliação externa para promover uma gestão da investigação mais distanciada desses interesses. A experiência de muitos países europeus (Inglaterra, Itália, países nórdicos) é que é possível criar esses instrumentos por uma avaliação que, de forma transparente, consistente e estável, evidencie a relação entre as decisões de gestão e os resultados da avaliação. Feito isso, as verbas já hoje destinadas ao emprego científico poderiam ser melhor geridas pelas universidades e teríamos um sistema mais criativo, produtivo e com melhor resposta às necessidades da sociedade. Só então teríamos as decisões de contratação (e promoção ou reposicionamento) das universidades e dos seus colégios internos bem alinhadas com as estratégias nacionais. Os parceiros institucionais perceberiam o seu próprio interesse em alinhar as suas decisões com as estratégias nacionais.
No passado, as universidades sempre resistiram ao aliciamento pelos responsáveis pela gestão da Ciência para que contratassem mais investigadores e fizeram-no por muito boas razões. Tendo uma dotação orçamental quase sempre “histórica”, mas percebida como proporcionada ao serviço docente prestado, não podem correr o risco de assumir compromissos de muito longo prazo sem a garantia de que terão meios para os satisfazer. Na visão aqui defendida, a dotação institucional passaria a ter uma componente variável dependente do desempenho científico seguindo um processo de avaliação regular. Haverá certamente flutuações futuras desta dotação, mas não é previsível que o desempenho de uma grande instituição sofra variações bruscas pelo que essas flutuações virão a funcionar como alertas a convidar a uma resposta imediata de expansão de algumas áreas e de contenção noutras.
Uma avaliação do tipo da que sempre foi adotada para as unidades de investigação não dá garantias de rigor nem de estabilidade porque cada painel de pares poderá legitimamente ter uma decisão muito diferente da que foi assumida no exercício anterior. Toda a avaliação por pares sofre deste problema e a correção que tem sido quase sempre usada de lhe sobrepor uma gestão mais política das decisões finais ou dos processos de recurso tira-lhe o rigor, a honestidade e a transparência que são exigidos para que produza os efeitos aqui propostos. Para que a avaliação do desempenho científico da universidade possa ser usada na gestão interna, é necessário que cada (pequeno) departamento compreenda bem qual foi o seu contributo e como uma decisão sua pode vir a afetar o resultado numa avaliação futura. Assim acontece nos países de referência, mas não é o caso da experiência conhecida em Portugal.
Neste texto centramos a discussão na universidade, mas uma inflexão política semelhante poderia ser aplicada aos institutos politécnicos.


Secretário de Estado do Ensino Superior no XIX Governo e do Ensino Superior e da Ciência no XX Governo

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

PISA, TIMSS e Rankings


[Editorial da Revista de Ciência Elementar, vol. 4, nº 4 (2016)]

Valerá a pena olhar para os resultados das comparações nacionais e internacionais que apareceram nos últimos meses? Tal como no desporto, o tempo dedicado à discussão da tabela de pontuação varia diretamente com a posição da equipa preferida. No caso do PISA, os maus resultados têm servido de sinal de alarme em muitos países que não imaginavam ser possível ficar na posição apresentada pela OCDE. De três em três anos a reflexão repete-se e as consequências políticas são visíveis. Para Portugal, o progresso regular desde 2000 tem sido motivo de alento e até de celebração. No caso espanhol, por exemplo, o Diretor de Educação da OCDE, Andreas Schleicher, diz que se terão concentrado em legislar, deixando de lado a qualidade do ensino. Os rankings portugueses baseiam-se nos resultados dos exames nacionais. Os estudos internacionais baseiam-se em testes especiais menos dependentes dos conhecimentos dos alunos porque são aplicados a muitos países e não há um currículo comum. Qualquer destes exercícios acompanha as métricas da aprendizagem dos alunos de dados de contexto para permitir uma melhor apreciação dos resultados. De facto, é bem sabido que o desempenho escolar depende muito do contexto socioeconómico dos alunos. Dos sete países de tradição cultural oriental presentes no estudo da OCDE, só dois (Tailândia e Vietnam) não aparecem entre os dez países (ou territórios) no topo do PISA. A despesa por aluno ou a dimensão das turmas é menos importante do que o ambiente familiar. Mas o nosso dever é procurar ajustar os fatores externos que podem permitir melhorar o desempenho dos estudantes e prepara-los melhor para uma vida futura num ambiente imprevisível e certamente de mudança.
Portugal tem apresentado melhorias consideráveis nas comparações internacionais. O ambiente familiar deve ser um fator a ter em conta porque a generalização da educação para além do 1º ciclo só foi feita a partir do início da década de 1970 e terá tido efeitos sobre a geração seguinte dos alunos nascidos a partir do fim do século. Este fator de “capital educativo” das famílias pode ser importante, mas temos de acreditar que o esforço individual dos alunos e dos seus professores também se reflete nos resultados. E as políticas educativas que enquadram esse esforço são o único agente de mudança em que, como sociedade, podemos atuar.
A riqueza de informação anualmente disponibilizada pela Direção Geral de Estatísticas de Educação e Ciência chega ao público através de uma série de rankings que não fazem justiça ao trabalho dos professores e das escolas. Em particular, o novo indicador de progressão calculado escola a escola para o Português e a Matemática permite analisar em grande detalhe o esforço feito por alunos (e famílias) e por professores (e escolas) para melhorar o desempenho na passagem do 9º ano para o 12º ano. Sabemos que os exames finais do 12º ano são vistos como determinantes do futuro dos alunos que pretendem prosseguir educação superior e são por isso levados muito a sério. Para muitos alunos, a pressão familiar é enorme, mas o trabalho na sala de aula é determinante e estes microdados devem permitir analisar o efeito desse trabalho a um nível quase individual. Este indicador de progressão agora disponibilizado merece mais atenção. A comparação dos resultados em contexto permite atenuar alguns dos efeitos exteriores à escola (mas não estão ainda disponíveis para as escolas privadas).

José Ferreira Gomes 
Editor-chefe Revista de Ciência Elementar