A maioria
parlamentar aprovou em 24 de maio e o
Presidente da República promulgou em 7 de julho uma alteração ao decreto-lei
57/2016 que vai oferecer aos bolseiros em pós-doutoramento um contrato sem
termo. Oferecer, porque obriga as instituições a abrirem concursos a que apenas
faltará a sua fotografia e não esquece a penalização para as que desalinhem, arriscando-se
a ficar sem financiamento da FCT!
Esta
decisão vai transformar as universidades públicas. Havia (em 2015/16) 8923
docentes de carreira, dos quais 7385 estavam integrados em unidades FCT
financiadas. Nem o Governo nem a Assembleia calcularam o impacto desta lei, mas
serão vários milhares de contratos com um custo que já foi estimado em 200
milhões de euros anuais. (Compare-se com a dotação de orçamento de estado para
as universidades que é de cerca de 700 milhões!) Teremos assim uma verdadeira
revolução no sistema universitário, especialmente nas áreas de ciência e
tecnologia das grandes universidades. De uma assentada, passamos de um número
insignificante de investigadores de carreira para vários milhares com um
aumento da dotação orçamental que poderá ultrapassar os 30%. Os reitores já se
queixaram desta transformação, alguns de forma bastante amarga. E ainda não se
sabe que alterações serão introduzidas no estatuto de carreira dos
investigadores, mas, em tempos de geringonça, pode recear-se o pior. Ouvimos as
lamúrias dos reitores, mas ninguém parece ter equacionado o efeito de longo
prazo.
Nos
últimos 15 anos, doutoraram-se em Portugal mais de 20 000 pessoas. Ao contrário
do que acontece nos países com que gostaríamos de nos comparar, foram muito
poucos aqueles que optaram por uma atividade fora do sistema académico. São
muito poucos os que chegaram à produção de bens e serviços. Essa passagem
exigiria uma reorientação das suas motivações, assumindo os objetivos da
organização onde se integrassem. A formação doutoral não prepara para esta
passagem e a remuneração inicial no setor privado não é competitiva com a que é
garantida no sistema público. Muitos daqueles doutorados já não tinham direito
automático a um contrato como docentes no ensino superior, mas alguns ainda o
conseguiram e outros, porventura os mais competitivos, procuraram uma
experiência internacional. Mas alguns milhares, talvez uns 25% do total, foram
aceitando a situação de bolseiro sem “direitos sociais” e sem direitos académicos,
quase sempre na dependência estrita do seu amo e senhor. São estes que agora
vão ser obrigatoriamente contratados.
Ao longo
de mais de 30 anos, o fluxo de fundos europeus transformou o país para muito
melhor, mas criou também muitas dependências e distorções. A Ciência é disso um
bom exemplo. Os condicionalismos desta ajuda externa levaram ao emagrecimento
das universidades para alimentar o crescimento de um sistema de investigação
autónomo. Não é invulgar ter um departamento universitário com mais de dois
investigadores doutorados (usando financiamento externo) por cada docente
permanente. O reitor fala pela universidade, mas, mantendo-se uma antiga
desconfiança da eficácia das estruturas de gestão universitária, o Governo
mantém na FCT o controlo desta vasta rede de competências. Um resultado perverso
desta política é que a contratação e a “promoção” dos docentes universitários e
politécnicos tende a proteger aqueles que já são parte do sistema (e são
eleitores...). Enquanto a FCT introduzia uma (antiquada) avaliação do desempenho
científico da sua rede de unidades de investigação, nunca foi sequer tentada
uma avaliação do desempenho científico das universidades que dê força aos
reitores para criarem mecanismos mais eficazes de seleção dos melhores.
Ultrapassamos
agora os limites da decência (e da legalidade) com uma lei que obriga os
reitores a abrir concursos à medida e que os penaliza financeiramente se o
resultado não for o “esperado”. O comentário que acompanha a promulgação pelo
Presidente da República é bastante esclarecedor da sua avaliação: Apesar de poder envolver um acréscimo de
custos para as instituições académicas públicas nos próximos anos – que o
Estado dificilmente não terá de assumir como despesa sua –, de poder implicar
eventuais questões com docentes já em funções, de criar problemas de gestão de
contratações futuras para a investigação e a docência e de apresentar pontos
insuficientemente desenvolvidos – como o da progressão nas carreiras –,
atendendo a que o presente diploma visa reparar uma flagrante situação de
injustiça – qual seja a da precariedade de muitos bolseiros doutorados que
desempenham funções em instituições públicas, que deveriam corresponder a um
estatuto contratual estável – e de que se trata de um regime excecional e
portanto irrepetível, o Presidente da República promulgou...
Seria
indigno manter estes jovens investigadores (e alguns já não tão jovens) sem um
contrato que lhes dê os direitos normais de um trabalhador e sem a
independência e autonomia intelectual que lhes permita demonstrar a sua criatividade
e realizar o seu potencial de transformação do país. Era possível criar um
mecanismo competitivo de integração dos melhores como docentes universitários e
como investigadores em novas instituições vocacionadas para a inovação
empresarial e social. Nenhum país pode criar a expectativa de que todos os seus
doutorados que não encontrem outra alternativa terão sempre lugar no espaço
académico! Portugal nunca foi capaz de dinamizar e obter o retorno desejado dos
laboratórios do estado mas também nunca passou dos estudos para a sua reforma.
As universidades nunca foram capazes de gerir e justificar o investimento nos
seus investigadores de carreira. A preferência de universidades e de decisores
políticos foi no sentido de prestigiar a carreira docente, dando-lhe
efetivamente o papel de liderança do sistema científico.
A
repetição exagerada de pós-doutoramentos não é um erro exclusivamente português.
Mas temos o exclusivo de criar agora um fortíssimo desincentivo para entrada dos
doutorados noutros setores de atividade. Mais grave, ninguém acreditará que se trata de um regime excecional e,
portanto, irrepetível. O problema agora (mal) resolvido voltará a pôr-se
aos atuais e futuros estudantes de doutoramento. Eles saberão que, se forem
pacientes e pouco ambiciosos, evitarão o desconforto da saída para um mundo
desconhecido. A formação doutoral não é um fim em si próprio nem o “emprego
científico” deveria ser, por si, um objetivo. São meios para capacitar a
sociedade para se tornar mais rica e mais feliz. Para isso, a maioria dos
doutorados terão de sair da academia. O sinal que estamos a dar aos mais novos
é exatamente o inverso. Esperem pacientemente e um regime excecional surgirá! No entretanto, continuaremos sem
doutorados no exterior e as empresas continuarão sem compreender quanto podem
ganhar com um doutorado. As universidades ficarão com pessoal que foram
obrigadas a contratar e que escapa à sua própria estratégia.
Portugal
não tem já falta de pessoal de investigação. Na publicação de trabalhos
científicos (por milhão de habitantes), até já ultrapassamos a França e a
Alemanha! Mas no impacto destes trabalhos, continuamos cada vez mais firmes no
último lugar da Europa comunitária (maissuperior.blogspot.pt). Esta opção
legislativa vai afastar o sistema científico da competição internacional e da
criação de valor para os portugueses. Mas nem tudo está mal. Vai certamente
contribuir par a solidez da “solução governativa” e para o reforço de alguma
clientela partidária.
In Observador, 17/07/2017, http://observador.pt/opiniao/investigadores-com-contratos-a-medida/
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