terça-feira, 17 de outubro de 2017

Ciência: Avaliação das unidades ou concurso de beleza?



Anuncia-se a avaliação das unidades de I&D. Com o regresso da avaliação centrada na visita, ganhamos o contacto visual entre o avaliador e o avaliado, mas não asseguramos uma melhor qualidade da avaliação. Para unidades da dimensão das nossas não há solução simples e barata. Os indicadores bibliométricos têm limitações que todos reconhecem. A avaliação direta por pares tem outras limitações e incertezas. Estas são atenuadas se for feita com rigor e aplicada peça a peça, artigo a artigo. O custo é quase proibitivo. As avaliações tradicionais da FCT e a que agora vai ser feita não passam de concursos de beleza, na linguagem de  John Maynard Keynes (1936).

Foi finalmente publicado o Regulamento de Avaliação e Financiamento Plurianual de Unidades de I&D. Nada de novo, mas muito de curioso. Como é usual, teremos dois critérios relativos ao último quinquénio, o primeiro (A) olhando para a qualidade, mérito, relevância e nível de internacionalização da atividade realizada e o segundo (B) para o mérito científico da equipa.  Um terceiro critério (C) vai analisar a adequação de objetivos /.../ inclusivamente quanto ao plano de contratação de novos investigadores contribuindo para o aumento do emprego científico no próximo quinquénio. Presume-se que o critério (A) não se aplicará a novas unidades que terão de ser avaliadas apenas pela qualidade dos seus membros e da proposta que faz para o futuro.
Parece razoável pedir que cada unidade apresente informação sobre atividades /.../ que considerem mais relevantes evitando listas exaustivas que seriam inúteis pela sua dimensão e impossibilidade de avaliação concreta pelo painel. Já os investigadores doutorados parece poderem apresentar a sua lista exaustiva de publicações no quinquénio, mas não devem ser submetidas referências a indicadores bibliométricos, incluindo factores de impacto. É muito curiosa esta preocupação porque em Portugal nunca foi feita uma avaliação baseada em indicadores bibliométricos.
Cada unidade tem um mínimo (usual) de 10 investigadores doutorados e cada painel internacional vai avaliar pelo menos 4 unidades. Sabemos que muitas unidades têm centenas de investigadores doutorados sendo as pequenas unidades hoje residuais. (Foram eliminadas nas sucessivas rondas de avaliação!) A abrangência dos painéis é sempre um problema porque os avaliados vêm vantagens em serem avaliados por painéis muito focados nas suas áreas de trabalho, no limite por um painel especialmente desenhado para a sua unidade. A redação sugere que se vai evitar este excesso permitindo a cada painel a comparação entre pelo menos 4 unidades. É pouco, mas compreensível como limite mínimo. Vamos, portanto, ter painéis internacionais a avaliar e visitar 4 ou mais unidades, algumas com centenas de membros doutorados. Nada de novo e já sabemos o que vai acontecer.
Surpreende a necessidade de proibir as referências a indicadores bibliométricos, incluindo factores de impacto. É inútil porque nenhum avaliador confiaria nos indicadores propostos pelos avaliados pela simples razão de que teria de assegurar que os critérios e as metodologias de cálculo são uniformes o que não ocorreria! Seriam vistos como uma tentativa de influenciar ou de distorcer a visão do avaliador.
Face a uma unidade com centenas de membros doutorados, como pode o painel aplicar os critérios definidos no Regulamento.
Critério A. Para as unidades que se mantenham sem grandes alterações da sua composição, uma leitura rápida da informação sobre atividades e produção científica que considerem mais relevante permite ter uma impressão, mas dificilmente poderá decidir se estes resultados são proporcionados à dimensão da equipa.
Critério B. Espera-se que o painel analise os currículos de todos os membros doutorados, que podem ser 10 ou algumas centenas. Para cada membro tem uma informação muito rica. Terá uma descrição do trabalho e resultados do investigador com uma lista de publicações que, numa área científica típica, poderá ir da dezena à centena de artigos. Terá títulos e nomes de revistas. Não podendo ser influenciado pelo fator de impacto, terá de evitar deixar-se influenciar pelos títulos ou pelo nome das revistas. Vai ser sério e ler os artigos, pelo menos aqueles cujos títulos pareçam mais interessantes ou terá o investigador sugerido os 5 artigos mais relevantes para ele ler.  Irá ler os 5 artigos de cada autor, de cada um da centena ou centenas de membros da unidade. Alguém acredita que os membros do painel vão cumprir?
Critério C. Esta é a parte fácil. Propor objetivos ambiciosos é fácil se assumirmos que nunca serão avaliados a posteriori como agora não vai ser avaliado se os objetivos anteriormente propostos foram cumpridos. E satisfazer a expectativa de que a unidade vai dar um enorme contributo para o aumento do emprego científico, não é difícil assim venha a haver dinheiro da FCT!
Mas ainda falta a visita que o painel fará à unidade onde irá ouvir dos sucessos passados e dos planos futuros. E terá aqui a oportunidade de emendar todas as incertezas que a leitura do enorme relatório submetido poderá ter deixado. No fim, não terá dúvida em colocar a unidade num dos cinco níveis previstos.
Este procedimento não difere no essencial dos seguidos nas avaliações feitas em 1996, 1999, 2002, 2007 e 2009. Como todos recordam, as visitas foram determinantes do resultado e as grandes unidades tiveram sempre uma aparente vantagem. As mal classificadas tendem a ser as menores. Isto é facilmente compreensível, mesmo admitindo que os painéis dão o seu melhor e mais honesto esforço para premiar o melhor e assinalar o mais frágil. Face à dificuldade de avaliar a proposta submetida pela unidade, para além de uma impressão geral, a visita torna-se a componente dominante. As unidades de maior dimensão sempre terão alguns investigadores com bom currículo e com a força necessária para fazer uma apresentação convincente. As mais pequenas não podem esconder as suas fragilidades e são naturalmente atingidas pelas críticas sérias dos painéis.
O nosso processo de avaliação de unidades de I&D aproxima-se, nos objetivos, das avaliações feitas a departamentos universitários. As reservas em relação aos indicadores bibliométricos são comuns a muitas disciplinas em alguns países. Mas a alternativa não é descarregar a responsabilidade sobre um painel que fica irremediavelmente perdido num excesso de informação em bruto. A solução inglesa e italiana é começar por fazer a avaliação individual de cada artigo submetido, uns 4 por investigador considerado. É seguramente um processo muito caro porque exige uma leitura cuidada e uma classificação de cada um destes artigos. São algumas dezenas de milhão de euros nesses países. A alternativa adotada nos países nórdicos é construir métricas simples para valorar as publicações de cada autor para chegar a uma avaliação individual que depois é reunida na avaliação do departamento ou da universidade. A Espanha tem uma estratégia similar na avaliação individual para decidir os suplementos remuneratórios dos docentes.
As avaliações baseadas em métricas predefinidas estão expostas a críticas sérias. As avaliações por pares são caras, imprevisíveis e muitas vezes divergem do senso comum e, quase sempre, da opinião dos interessados. Resta o esforço de satisfazer a presumida perceção da maioria no sentido dado ao “concurso de beleza” de John Maynard Keynes. Pode esperar-se que a opinião recolhida nas visitas vá neste sentido e alguma “gestão política” dê o retoque final necessário.
Pode ser embaraçoso notar que é esta mesma teoria que tem sido usada para explicar o comportamento irracional dos mercados financeiros [Ver Richard Thaler, Prémio Nobel da Economia, 2017, em Misbehaving: The Making of Behavioural Economics, Allen Lane, Londres, 2015.]

José Ferreira Gomes
Secretário de Estado do Ensino Superior e da Ciência no XX Governo

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Abandono escolar precoce

Resumo
Portugal teve uma recuperação rápida do atraso histórico que registava e poderá atingir o objetivo de 10% de abandono escolar precoce em 2020.



Convencionalmente, o abandono escolar precoce é medido pela percentagem dos jovens de 18 a 24 anos que já não estão a estudar sem terem completado o ensino secundário. Nos últimos anos, Portugal teve uma notável recuperação neste indicador. Uma extrapolação exponencial simplista permite prever que o objetivo de 10% para 2020 será atingido, estando nessa altura numa situação similar à da média europeia.
Este indicador esconde a enorme transformação que ocorreu na vida das nossas escolas secundárias que tiveram de se preparar para receber (quase) todos os jovens agora atingidos pela obrigatoriedade de permanecer na escola até aos 18 anos. Se a percentagem dos jovens que terminam o ensino secundário pela via cientifico-humanística teve neste período um crescimento muito modesto, a grande inovação deu-se na expansão das vias profissionais e vocacionais. O objetivo é ter cerca de 50% dos jovens a seguir as vias profissionalizantes o que ainda não foi atingido.
Há sinais bastante robustos de que este processo decorreu mantendo-se uma boa qualidade do ensino que até poderá ter melhorado a fazer fé nos indicadores internacionais PISA, TIMSS e PIRLS. A enorme visibilidade dos exames nacionais dá também uma garantia de transparência na preocupação com a qualidade do ensino. Infelizmente, é muito mais difícil avaliar o sucesso do ensino nas vias profissionais e vocacionais.
Terminada esta fase de recuperação do atraso histórico, teremos certamente de dar mais atenção à qualidade do ensino em todas as suas vias. A via cientifico-humanística mantém-se aberta à crítica pelos professores do ensino superior sempre insatisfeitos com a bagagem dos estudantes que ali chegam. Nas vias profissionalizantes, a medida última é dada pelo sucesso dos seus diplomados que optam pela entrada imediata no mundo do trabalho. Aqueles que decidem continuar imediatamente o seu percurso escolar precisarão de um apoio adicional ao estilo das “passerelles” francesas ou dos bridging courses americanos para se juntarem aos colegas que tinham já optado por um percurso educativo mais longo. Um novo desafio para as escolas no apoio ao sucesso dos seus alunos.

Referência Gomes, JANF (2017) Editorial, Rev. Ciência Elem., V5(03):030
DOI doi.org/10.24927/rce2017.030 



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