terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Educação Superior: O que vale um relatório da OCDE?

O acesso ao ensino superior dos diplomados do ensino secundário pela via profissional é seguramente um ponto cuja discussão merece ir mais longe. Mas o tratamento dado no relatório é surpreendentemente simplista e pode induzir o leitor em erros graves. O alinhamento do Concurso Nacional de Acesso com a via científico-humanística do secundário é total, mas situações similares existem na maioria dos países europeus, ainda que por mecanismos diversos. A afirmação de que, noutros países, muitos alunos oriundos das vias vocacionais acedem ao ensino superior, 50% na Holanda, 59% na França e 75% na Koreia é falaciosa porque não se explica a que tipo de ensino superior acedem esses alunos e que lhes acontece depois. Na Holanda, o alinhamento entre o secundário e o superior é maior que o nosso com os candidatos do percurso vocacional a seguirem para o politécnico (HBO). Existem cursos especiais para a transição daqui para o universitário, mas a barreira é difícil de transpor. Na França, o acesso a muitos cursos universitários é livre, mas o insucesso nos primeiros anos de licenciatura é muito alto, muito mais alto que em Portugal. A continuação normal para os candidatos oriundos da via profissional são os ciclos curtos (BTS e DUT), cursos com excelente reputação e alta empregabilidade. A comparação com a Coreia é mais surpreendente pelas diferenças culturais e dos sistemas educativos, mas, também ali, a componente de ciclos curtos é muito importante e é a própria OCDE no seu último relatório sobre a Educação Superior Coreana que discute The Rhetoric of Under-education and the Reality of Over-education e as falácias dos argumentos que levaram aos problemas graves de desacerto entre as qualificações e a realidade do mercado de trabalho.
Sim, Portugal atrasou-se muito na universalização do secundário e os dados mais recentes apontam para uma perda de energia na redução do insucesso e abandono, isto depois da extinção da bem-sucedida experiência com o ensino vocacional. Atrasou-se na institucionalização dos ciclos curtos e precisa de os apoiar para que encontrem o seu espaço no imaginário estudantil e no mercado de trabalho, em analogia com os nossos parceiros europeus mais diretos. Temos hoje um ensino superior com mais de 40% dos jovens (de 20 anos) em licenciaturas e facilmente chegará a 10% adicionais em TeSP. O desempenho do secundário tradicional está a melhorar com mais candidatos a chegarem a licenciatura via Concurso Nacional de Acesso. A exemplo de outros países, é necessário preparar a transferência de estudantes entre as várias vias. Em particular, é necessário que alguns alunos da via profissional do secundário possam ter o reforço mais académico que lhes falta em absoluto e que necessitam para terem sucesso numa licenciatura. Esta é uma obrigação da escola, que muito poucas assumem hoje empurrando os seus alunos para “explicações”.
De acordo com os media, a outra grande proposta deste exame pela OCDE é a concessão de doutoramentos pelos institutos politécnicos. Convém lembrar a recomendação na sua forma original, to permit the carefully controlled award of doctoral degrees by polytechnics. This should be permitted in (a) practice-oriented applied research fields where (b) institutions have a clearly demonstrated capacity to support high quality instruction, where (c) there is a strong regional economic rationale for the offer of doctoral awards, and (d) there is collaboration with existing centres of PhD training. Os institutos politécnicos portugueses têm trilhado um percurso de consolidação que seguramente aponta para a sua futura capacidade para a concessão do grau de doutor. Esta inovação deve corresponder a um aprofundamento da sua missão e não para uma aproximação da missão universitária. A necessidade de clarificação e respeito por estas diferentes missões é aliás uma das preocupações recorrentes no relatório. Tal como as licenciaturas e mestrados do subsistema universitário e do subsistema politécnico têm de ser diferentes nos seus conteúdos e objetivos também os novos doutoramentos politécnicos deverão vir a ser diferentes. Como o Relatório reconhece, Portugal não tem poucos doutoramentos. O que precisa é de doutorados mais próximos da sua realidade económica e social. Para que venham a ser respeitados na sociedade, dando um contributo reconhecido para o seu desenvolvimento, criando valor para essa sociedade, é crucial que sejamos ainda mais exigentes com estes novos doutorados, com o perfil de formação e com a capacitação para resolver problemas e inovar. Na avaliação das unidades de investigação FCT em curso perde-se uma oportunidade de marcar este novo território. Missões diferentes exigem critérios diferentes e painéis de avaliação diferentes que desenvolvam noções diferentes de excelência. Ao propor uma avaliação única vamos de facto propor critérios únicos e incentivar ainda mais a deriva académica de todo o sistema. É importante ter programas de financiamento de projetos separados, mas não chega. A promessa de financiamento convoca narrativas de objetivos ajustados aos olhos de quem vai financiar, mas isso é pouco. É necessário criar uma nova cultura de qualidade focada nos novos objetivos e a avaliação das pessoas e das instituições é o momento definidor por excelência. Temos os meios humanos, temos os equipamentos, temos alguns bons investigadores, mas apontamos a todos a investigação universitária como meta única de excelência. Nestas condições, quem acredita que iremos ter doutoramentos diferentes, mais ajustados às necessidades do país?
Este relatório é um instrumento político. Os governos recorrem normalmente a “avaliações internacionais” quando querem ver reforçada uma agenda que encontra oposição interna. As encomendas à OCDE não deixam de cumprir esta função, embora nem sempre seja claro o objetivo inicial. O relatório agora divulgado merece uma leitura cuidada porque dá uma visão externa do nosso sistema de educação superior e de investigação e inovação. Se o recomendado aumento de despesa pública com a educação superior e a investigação vai certamente agradar ao MCTES, não é óbvio que seja suficiente para lhe dar a força que tem faltado neste período de exclusão do seu ministério da política expansionista do governo. O registo de que a despesa pública com todo o setor terá recomeçado a crescer é curioso por aparecer quando o CRUP e o CCISP registam o incumprimento de um acordo com o governo que apenas prometia manter as dotações de 2016. A fortíssima recomendação de que seja criado um sistema de financiamento por objetivos é uma imposição da lei de financiamento de 2003 que este governo não quis cumprir apesar de haver uma proposta já acordada com o CRUP e o CCISP que mostrava a viabilidade de convergência de todas as instituições com um período de transição de apenas 5 anos.

José Ferreira Gomes
Professor da Universidade do Porto;
ex-secretário de Estado do Ensino Superior no XIX e XX governos
In: Jornal Público, 20 de fevereiro de 2018