sábado, 24 de novembro de 2018

O ensino superior – a recuperação do atraso





Dois séculos de divergência económica
Depois de meio século encantado pelo ouro de Minas, veio um terramoto destruidor que ainda hoje estamos a pagar. Ao longo do século XIX, enquanto a Europa recuperava rapidamente das guerras napoleónicas e beneficiava da libertação da economia decorrente da extinção do ancien régime, a Península tinha extrema dificuldade em reconstruir uma nova economia independente das riquezas coloniais das américas. A Espanha atingiu o seu nadir em 1898 com a derrota frente aos Estados Unidos e a perda do que restava do seu império global, Cuba, Porto Rico e Filipinas. (Depois das independências da américa central e do sul, a Flórida tinha sido definitivamente cedida aos Estados Unidos em 1821.) Portugal sai das invasões napoleónicas muito debilitado e a independência do Brasil exige um novo modelo económico que o país não é capaz de construir. A política de “melhoramentos materiais” da Regeneração leva o país à falência e a monarquia à extinção, mas não produz o esperado milagre económico. São 200 anos de divergência económica que só a devastação das guerras europeias é capaz de amortecer transitoriamente.

Figura 1.A tardia regressão do analfabetismo em Portugal[i]. A maioria dos países europeus universalizou a educação primária ao longo do século XIX. Por volta de 1850, a alfabetização de 15% em Portugal compara com 25% em Espanha, Itália e Polónia, outros países atrasados. Em 1890, Portugal aproximava-se dos 25% quando Espanha, Itália e Polónia já passavam dos 40%.
Na educação, o moderado atraso anterior foi ampliado pela expulsão dos Jesuítas (1759) que terão levado mais de 90% do aparelho educativo sem que alguém cuidasse de o reconstituir a breve prazo. Nem a longo prazo, porque as primeiras letras só voltaram a ser prioridade 150 anos depois com a República, mas essa prioridade não passou muito de retórica de estado falido. Esta fragilidade é bem marcada pelo facto de as velhas escolas primárias terem tido duas fases de edificação generalizada. A primeira, com um legado do Conde de Ferreira (1866) que permitiu a construção de 91 escolas em sedes concelhias e, mais tarde, as comemorativas dos centenários, 1940-43, da restauração e da independência. A universalização do ensino primário (4 anos) veio a ocorrer apenas por volta de 1960 com um século de atraso em relação a muitos países europeus. As reformas de Veiga Simão (1973) previam a generalização de um segundo ciclo unificado, fundindo o ensino técnico e o ensino liceal, o que veio a ocorrer de facto logo depois de 1974. Ainda que estas reformas tenham permitido o prolongamento do percurso educativo de muitos alunos para além do ciclo primário, um percurso único rígido começou a ter dificuldade em servir todos os alunos. Ainda hoje (2016/17), 7% dos alunos a frequentar o 3º ciclo do ensino básico estão em percursos alternativos ao chamado regular. A dificuldade de servir toda a população jovem agrava-se no ensino secundário onde a incapacidade de generalizar a oferta de percursos diferenciados manteve um enorme abandono escolar precoce até muito recentemente. Só a partir de 2006/07, as escolas secundárias foram obrigadas a um enorme esforço de reconversão para criarem ofertas de ensino profissional a par do antigo ensino liceal. Os resultados apareceram rapidamente e aproximamo-nos agora do objetivo de reduzir este abandono para 10% em 2020.


Figura 2. Evolução do abandono escolar precoce no último decénio. O financiamento do ensino profissional privado a partir de 1989 e a oferta desta via de ensino secundário nas escolas secundárias a partir de 2006 permitiu finalmente recuperar do enorme atraso.

O atraso no ensino superior
A massificação do ensino superior teve de esperar pelos fundos comunitários para atingir níveis comparáveis ao dos nossos parceiros mais próximos. No Reino Unido, em 1962[ii], cerca de 4% da coorte chegava à universidade e outros 4% seguiam um percurso educativo pós-secundário que hoje pode ser classificado como ensino superior. Em Portugal teríamos cerca de 1,5% da coorte a entrar na universidade. De facto, a universidade portuguesa teve sempre um peso diminuto na nossa sociedade. Embora a criação da Universidade de Lisboa em 1290 não se afaste da tendência tardo-medieval, ela manteve-se (em Coimbra) como única até à revolução republicana, ainda que acompanhada pela universidade (jesuíta) de Évora durante dois séculos até à expulsão da Companhia. Em comparação, a Espanha tinha em 1500 cinco universidades. Portugal nunca sentiu a necessidade de criar uma universidade no ultramar, enquanto Espanha criou seis universidades na América espanhola logo no primeiro século de ocupação, entre 1510 e 1580. Isto resulta talvez da diferença entre as necessidades da administração pública (eclesial e real) de um império marítimo e de um império com ocupação efetiva e exploração do território.
A curva de crescimento do número de estudantes de ensino superior reflete de perto a sorte da nossa economia com períodos de crescimento mais rápido a acompanhar o maior otimismo económico.

Figura 3. Evolução do número de estudantes inscritos no ensino superior em Portugal e comparação com a Espanha. De 1940 até ao fim do século, manteve-se um ritmo exponencial médio de perto de 6% ao ano que na década de 1986-96 cresceu para perto de 12%. Foi este ritmo de crescimento mais rápido que nos permitiu atingir nesta altura ou até ultrapassar a Espanha no número de estudantes por milhão de habitantes.
Por volta do ano 2000 esgota-se o crescimento do número de alunos a terminar o ensino secundário pela via mais académica e começam a fazer-se sentir os efeitos do declínio demográfico. Chegados a 2020, estaremos muito perto de atingir o objetivo nacional (e de média da União Europeia[iii]) de 40% dos jovens de 30 a 34 anos com um diploma de ensino superior. Se o não tivermos atingido, isso deve-se[iv] à emigração de jovens diplomados e também à tardia criação em 2014 dos cursos de Técnico Superior Profissional, TeSP, que em Espanha e França, por exemplo, dão um contributo muito significativo para esta estatística. Em Portugal, o número destes diplomados estará pelos 5% da coorte (mas com idade inferior a 30 anos), embora pareça estar a subir e fosse previsível que rapidamente ultrapassasse os 10% se houvesse uma boa oferta pública em Lisboa e no Porto. Este tipo de perfil educativo profissionalizante tem uma grande procura em todos os países europeus para satisfazer as necessidades de quadros intermédios das empresas e para oferecer uma oportunidade de rápida reorientação profissional dos ativos.


2011
2015
Espanha
41,9
40,9
França
43,1
45,1
Holanda
41,2
46,3
Irlanda
49,7
52,3
Portugal
26,7
31,9
União Europeia (28)
34,8
38,7
Tabela 1. Crescimento do número de diplomados jovens (30-34 anos). Deve notar-se que o Eurostat e a OCDE consideram não só os graduados universitários, mas também os detentores de um diploma de ciclo curto (2 anos) mais próximo de uma formação profissional superior que ainda não tem o mesmo tratamento em todos os países. [Eurostat, 2016]


Um ensino superior para o futuro
Será ainda imprudente prever o limite para o objetivo de crescimento do ensino superior que se mantém na União Europeia e noutras regiões do mundo, mas começam a aparecer alguns fortes sinais de alerta.


No more graduates needed: Switzerland goes it alone in HE
Combining egalitarian access, prized vocational education and elite research universities, the “Swiss paradox” may offer international lessons.
[Times Higher Education, 25 de abril de 2018]

  Um artigo recente[v] no semanário Times Higher Education merece alguma atenção, ainda mais por se tratar de uma publicação vocacionada para os “interesses” do Ensino superior. Observam os autores que, segundo os dados da OCDE, apenas 28% dos jovens suíços até aos 25 anos entram no ensino superior em cursos de licenciatura (de 3 ou mais anos), a taxa mais baixa de entre os 21 países que reportaram valores para 2012. Portugal apresenta 48%. O Reino Unido estaria nos 38%, a Alemanha nos 41%, a Espanha nos 44% e a Polónia em 69%. Mesmo o Presidente da Universidade de Zurique, Michael Hengartner, mostra-se confortável com a situação ao afirmar que é limitado o número de jovens que precisam de uma educação universitária clássica para as funções que irão assumir. Na Suíça, uma maioria dos jovens segue uma via vocacional no secundário com trabalho em alternância. Um número crescente de jovens com formação profissional segue para uma das “universidades de ciências aplicadas”[1] que são mantidas com uma clara missão vocacional muito distante das universidades. Com uma percentagem relativamente reduzida de jovens a terminar o secundário pela via académica, as universidades podem ser de entrada livre (à exceção da Medicina) e com propinas muito baixas. Mesmo uma escola da elite internacional como a ETH Zurique é de livre acesso e tem propinas de apenas 500€, mas a taxa de abandono no primeiro ano pode chegar a 50%, normalmente por transferência para outra universidade. O sistema mantém uma certa abertura para a mudança de percurso como é o caso exemplar do Presidente do banco UBS, Sergio Ermotti, que começou a sua carreira por um estágio profissional e veio a prosseguir a sua formação em universidades de elite internacional.
Começam a ser levantadas dúvidas sobre o valor da educação universitária no mercado de trabalho, especialmente nos Estados Unidos[vi] onde o elevado custo para as famílias levanta a questão do retorno deste investimento. Um estudo australiano[vii] encontrou um prémio salarial de 4,3% a 5,5% para os graduados por uma das oito universidades de elite, mas verifica que 13% a 46% deste prémio é devido à seleção dos estudantes. Apesar disto, a universidade de graduação terá pouca influência no salário inicial do diplomado.
A preocupação política com a empregabilidade dos diplomados cresceu à medida que ultrapassamos a massificação e alguns países experimentam um problema de desemprego de graduados jovens. É difícil desligar os dramas decorrentes das primaveras árabes de um crescimento muito rápido do acesso ao ensino superior (nem sempre nas melhores condições e com a qualidade desejável) e com uma economia estagnada que não tinha espaço para satisfazer as expectativas destas novas gerações. Todos os países da OCDE se têm crescentemente preocupado com uma oferta mais diversificada e mais próxima do mercado de trabalho, mantendo num extremo um perfil académico tradicionalmente exigente associado a uma atividade de investigação em que a sociedade põe toda a esperança de se manter competitiva numa economia globalizada. Mas reconhece simultaneamente que este perfil educativo não corresponde à maioria dos empregos existentes e previstos para o futuro e que o desalinhamento entre as expectativas criadas ao longo do percurso educativo e a realidade económica e social são motivo de desencanto de muitos jovens. Os perfis mais vocacionais a nível secundário, pós-secundário e superior têm sido reforçados. Em Portugal, o elevadíssimo abandono precoce (com baixa taxa de frequência do ensino secundário) forçou a decisão política (2009) de escolarização obrigatória até aos 18 anos, embora outros países tenham chegado a melhores resultados sem uma norma vinculativa. Mas estamos agora numa situação em que mais de 80% dos jovens vão ter um diploma de ensino secundário que aspiramos a que seja profissional ou académico em partes iguais. Os mais de 40% que terminam pela via académica (liceal) seguem na quase totalidade para uma licenciatura (ou mestrado integrado) e, cerca de metade destes, completa o mestrado. O doutoramento é hoje completado por 2% da coorte, uma taxa próxima da que chegava à universidade há 50 anos. Mas também muitos dos 40% que terminam o secundário por uma via profissional vão querer diferenciar-se para entrar no mercado de trabalho e os cursos de TeSP estão desenhados para este fim. Muitos outros ativos irão precisar de requalificação para reorientar o seu percurso profissional ao longo da vida. Destes, poucos optarão por graus académicos pela sua extensão e pela sua exigência teórica nem sempre compatível com a partilha com a atividade profissional. Formações mais curtas serão mais adaptáveis e terão procura elevada, podendo ser relevantes os cursos de TeSP e os mestrados. Este quadro de formação ao longo da vida não dispensa outros perfis formativos mais curtos que serão mais ajustados a pequenas inflexões ou especializações profissionais.



[1] Os nomes não são irrelevantes, usando a Suíça esta designação em inglês com as designações, Fachhochschulen em alemão, hautes écoles spécialisées em francês, e scuole universitarie professionali em italiano.


[i] Candeias, A., Simões, E., Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos Nacionais e estudos de caso, Análise Psicológica (1999), 1 (XVII): 163-194.
[ii] http://www.educationengland.org.uk/documents/robbins/robbins1963.html
[iii] Smarter, greener, more inclusive? Indicators to support the Europe 2020 strategy, 2018 edition, ISBN 978-92-79-85887-1, http://ec.europa.eu/eurostat/documents/3217494/9087772/KS-02-18-728-EN-N.pdf/3f01e3c4-1c01-4036-bd6a-814dec66c58c  
[iv] Diplomados com o Ensino Superior População dos 30 aos 34 anos - dados e projeções,
http://www.dgeec.mec.pt/np4/342/%7B$clientServletPath%7D/?newsId=679&fileName=DGEEC2016_TertiaryEducationalAttainment_1.pdf
[v] Mattews, D., No more graduates needed: Switzerland goes it alone in HE, Times Higher Education, 25 de abril de 2018.
[vi] The World is going to university: More and more is being spent on higher education. Too little is known about whether it is worth it, The Economist, 26 de março de 2015,  https://www.economist.com/leaders/2015/03/26/the-world-is-going-to-university
[vii] Carroll, D., Heaton, C., Tani, M., Does it pay to graduate from an “Elite” university in Autralia?, IZA DP Nº 11477, http://ftp.iza.org/dp11477.pdf