Apresentação do livro "Testemunho de duas vidas compartilhadas" de Eugénio Fonseca
Estamos aqui para
receber o livro que o Dr. Eugénio Fonseca nos oferece com memórias da sua vida
compartilhada com D. Manuel Martins. Duas personalidades bem conhecidas pela
sua atividade pública intensa ao longo de muitos anos, mas pouco devassadas nas
suas motivações e nos conflitos da sua intervenção diária. Este livro abre-nos
uma pequena janela sobre o entrelaçado destes dois percursos. Sinto-me muito honrado
pelo convite que Eugénio Fonseca me dirigiu para vos estimular a ler e meditar
neste seu escrito. Outros fá-lo-iam mais facilmente e, porventura, muito melhor.
Para mim, ficou a motivação para o ler antecipadamente e saborear as histórias
que nos vai contando. Estou certo de que nenhum dos presentes deixará de
apreciar estas iguarias já nos próximos dias.
Eugénio Fonseca escreve um livro de memórias do seu
convívio com D. Manuel Martins. Não teve coragem de usar o título Pedaços de Mim que D. Manuel teria
pensado para um seu escrito de memórias, mas sentimos aqui os pedaços da sua
carne a sangrar. A escrita mostra sempre o sangue vivo de quem viveu e revive
pedaços da sua vida em plena comunhão com o seu patrono D. Manuel. É um registo
pessoal de episódios ocorridos ao longo de 42 anos, os primeiros 23 de um
convívio diário em Setúbal; os últimos 19 de uma partilha a distância, mas onde
os 350 km da Maia a Setúbal se mostram muito curtos. A proximidade entre os
dois é evidente desde a primeira página, assumindo-se como quase testamenteiro
moral do grande D. Manuel. Ao longo de 19 episódios, Eugénio Fonseca revive e
faz-nos reviver os dramas, não só da sua história pessoal, mas também os altos
e baixos da nossa história coletiva e o seu impacto na vida das pessoas
concretas. O povo de Setúbal acorda e acorda-nos para o impacto das grandes
opções coletivas na vida de cada um, especialmente dos mais frágeis.
Conheci Eugénio Fonseca no dia 25 de setembro de 2017
quando ele velava o corpo de D. Manuel. Era violento o contraste entre a
serenidade definitiva de um e a inconsolável companhia no efémero sentimento de
quem não ouviria mais o seu conselho ou a sua admoestação paternal. Sabia há
muito do projeto de Eugénio Fonseca de passar a escrito as suas memórias de uma
longa caminhada comum. Surpreendido há dias pelo telefonema de convite para
estar aqui hoje, não podia recusar, mesmo sabendo da dificuldade e,
especialmente, sabendo da minha dificuldade pessoal para este tipo de serviço.
Aceitei de imediato no entendimento de que o erro lhe seria assacado apenas a
ele... Que os presentes nesta sessão me perdoariam a falta de coragem para
resistir ao convite e culpariam o grande ausente por não ter dado melhor
inspiração ao autor da obra.
A minha assumida deformação profissional a favor de
argumentos quantitativos, aumentava o temor de iniciar a leitura de um livro
que traduziria as emoções pessoais de um longo encontro e convívio ao longo de
quase meio século; teria mais as emoções da vida de pessoas concretas sem
elaborar nas grandes causas ou nas grandes opções políticas onde poderíamos
procurar as causas. De números não esperava mais que algumas datas. Como
poderia argumentar e contra-argumentar sem esse suporte quantitativo? Julgava
saber que estaria a laborar num terreno inóspito até ler as primeiras páginas.
Todos os receios se foram dissipando à medida que avançava e a dificuldade
estava em parar a leitura. Que me traria o episódio seguinte, provavelmente
ainda mais sentido, ainda mais cheio da vida concreta das pessoas de Setúbal.
Sim, as personagens saltam das páginas escritas por Eugénio Fonseca cheias de
vida. Apetece-nos ir também passear na Av. Luísa Todi para ver se também nós somos
interpelados por aquelas personagens. Fica a primeira sugestão aos meus
ouvintes: Levem o livro para casa e estou certo de que dificilmente deixarão de
o ler de uma assentada. E que o Vitória Futebol Clube ganhará mais alguns
adeptos...
A verdade é
que é no tempo que se faz a eternidade como se fosse o seu próprio fruto maduro,
eternidade que não se perpetua depois do tempo vivido mas antes suprime
precisamente o tempo enquanto ela mesma é desligada do tempo que se fez duração
para que se possa transformar em liberdade, o definitivo.[1]
Este livro vem cumprir esta leitura da eternidade devida
a Karl Rahner. Estamos aqui a celebrar a vida de D. Manuel através das suas
interações com o outro durante o seu tempo contingente. Eugénio Fonseca
fala-nos de D. Manuel através das interações entre eles e com os outros. Para
os que privamos com o homem e o Bispo Manuel, encontramos ali um retrato fiel
traçado a pinceladas muito fortes e muito firmes. Das páginas impressas sobressai
um homem simples e quase apagado, mas sempre preocupado com os mais fracos.
Sempre disponível para ajudar quem encontra como seu próximo sem fazer grandes
questionamentos. Um Bispo que não chegava á segunda fase de um encontro sem nos
interpelar, sem questionar as nossas opções pessoais, obrigando-nos a refletir,
mas não impondo a sua visão.
Como me compete, deixo-lhes
algumas poucas referências ilustrativas do que vão saborear na vossa leitura.
Logo no
primeiro quadro, A Surpresa,
Eugénio Fonseca é sóbrio e contido na descrição das reações públicas à chegada a Setúbal de um “padre do norte” (26
de outubro de 1975) para primeiro Bispo naquele verão quentíssimo de 1975, a um
mês do início da viragem para a estabilização. Prefere focar a sua atenção na
própria frustração aquando da nomeação a 16 de julho. Ao gosto da época, teria
havido uma reflexão interna em Setúbal para definir o perfil desejado e criar a
expectativa de que o Vigário Episcopal lá residente há já 9 anos seria o
escolhido por Roma. A escolha de um desconhecido nortenho terá sido um enorme
“balde de água fria”, para ele próprio e para muitos colaboradores próximos do
vicariato. Terá sido longo o processo de adaptação à ideia de que a escolha
seria menos devida a poderes esconsos e mais fruto da presença do Espírito Santo.
Nas breves 18
páginas da História de uma crise,
é-nos dado viver algumas pequenas histórias do quotidiano daqueles anos muito
difíceis em que o Bispo de Setúbal apareceu como grande voz dos marginalizados.
A grande história é conhecida e não parecia ferir ninguém. A primeira crise
petrolífera de 1973 com a OPEC (Organização dos Países Exportadores de Petróleo)
a subirem subitamente o preço de 4 para 12 US$/barril em reação à guerra
israelo-árabe do Yom Kippur; para Portugal, este impacto seria muito difícil de
acomodar e veio a acelerar e, depois, também a agravar as consequências
económicas da revolução de 1974. O fim da Guerra Colonial obrigaria a uma forte
reorientação da nossa economia, ainda agravada pela desmobilização de centenas
de milhar de jovens soldados e pelas nacionalizações de março de 1975. Logo em
1977, tivemos de pedir ajuda ao FMI (Fundo Monetário Internacional), mas foi o
segundo pedido, em 1983, que trouxe consequências mais gravosas e imediatas. No
entretanto, Portugal tinha pedido a adesão à CEE (Comunidade Económica
Europeia) em 1977 e assinara o acordo de pré-adesão em 1980, o que levava à
progressiva abertura das fronteiras aos produtos industriais inviabilizando a
frágil base industrial que crescera protegida por tarifas alfandegárias. Todos
estes choques no período curto de uma década levaram a uma grave crise,
particularmente sentida nas zonas mais industrializadas da península de Setúbal
e do Vale do Ave. Muitas empresas foram obrigadas a fechar sem que houvesse
condições para que novos setores de atividade surgissem em alternativa e oferecessem
emprego aos trabalhadores dispensados. O clima social e a nacionalização do
capital privado deixavam o Estado como único operador económico relevante, mas
este não tinha capacidade de iniciativa estratégica para oferecer uma saída da
crise. Se não havia capacidade de gestão estratégica, também não havia ainda
meios de apoio social aos mais atingidos pela crise. Toda a esperança era posta
na manutenção de antigos vínculos laborais com empresas que já não tinham
qualquer viabilidade. Tudo isto foi desembocar na generalização de salários em
atraso, uma situação que mantinha expectativas irrealizáveis e atrasava uma
necessária transformação. Passados 40 anos, é fácil teorizar todo este drama,
mas as pessoas que o viviam precisavam de apoio imediato e esse falhou. Não
podiam esperar uma década pela nova industrialização suportada por projetos
âncora como o da Autoeuropa. É aqui que D. Manuel se sentiu forçado a assumir a
voz daqueles que ninguém queria ouvir. E a sua voz foi incómoda, mas persistiu
e ficou até ao fim como voz respeitada e ouvida.
O capítulo
intitulado Um profeta entre profetas
descreve a passagem por Setúbal de duas grandes personalidades que
justificadamente marcaram o autor. D. Hélder da Câmara, Arcebispo de Olinda e
Recife, teve uma longa vida de intervenção social, ganhando visibilidade
internacional pela sua oposição ao regime militar brasileiro (1964-1985). Ele
próprio regista a explicação da sua postura controversa dizendo que quando dá de comer a um pobre, todos o
chamam de santo, mas quando pergunta porque é que os pobres não têm alimento,
então todos o chamam de comunista. Outro profeta que visitou o profeta de
Setúbal foi Madre Teresa de Calcutá. D. Manuel terá convidado Madre Teresa em
1976 e a primeira casa foi aberta em Setúbal em 1986. O perfil psicológico de
Madre Teresa é fixado na exigência que terá feito a D. Manuel em relação à
instalação das suas irmãs: Cuide de
arranjar uma casa em condições onde as irmãs possam realizar a sua missão. Se
não o fizer, fica a saber que já dei indicações às minhas irmãs para levarem os
pobres para sua casa. E D. Manuel lá teve de arranjar outra casa mais à
medida das necessidades das irmãs.
Estas tapas de aperitivo para a vossa leitura
do livro não podem deixar de incluir a saborosa referência à Festa de Troia, e como D. Manuel
não pode evitar ser recebido com foguetes e todo o povo concentrado no cais.
Mas para o nosso autor, vale mais o “milagre” de ter conseguido convencer
aqueles pescadores a lançarem as suas ofertas numa rede de pesca em lugar de as
pregarem no manto da Senhora como era a antiga tradição.
Ao autor, faltam palavras para descrever os
últimos dias em Setúbal traduzindo uma despedida difícil. Valem as palavras da
mensagem de despedida: É por amor de vós
que me afasto, e Deus sabe quanto me custa. Tudo tem o seu tempo e, em
consciência, julgo que o meu, em Setúbal, chegara ao fim. Foram 23 anos de
convívio muito intenso e o afastamento deixou marcas dolorosas ainda que a Maia
estivesse do outro lado do telefone e a linha sempre disponível. Haveria ainda
mais 19 anos de proximidade intermitente.
Com Santo
Agostinho,
Tentávamos imaginar na
tua presença, tu que és a verdade, qual seria a vida eterna dos santos, aquela
que “os olhos não
viram, os ouvidos não ouviram, e o coração do homem não percebeu”. Abriam-se os lábios do coração à corrente impetuosa
da tua fonte, fonte de vida que está em ti, para que, aspergidos por ela, nossa
inteligência pudesse meditar sobre tão grande realidade.[2]
São Pedaços de
Si que Eugénio Fonseca deixa neste seu livro. São também os pedaços compartilhados
com o santo ausente que nos permitem ver agora o que muitos olhos já viram, mas
que nos abre o coração para vermos muito mais. Percebemos agora como é no tempo que se faz a eternidade e
como esta eternidade não se perpetua
depois do tempo vivido, mas antes suprime o tempo enquanto ela mesma é
desligada do tempo. Estamos aqui reunidos seguros de ter D. Manuel presente
e atuante entre nós. Estamos aqui nesta comunhão de santos a viver o tempo
vivido e a celebrar a eternidade. Sei que todos vão ler este “testemunho de
duas vidas...” e assim mergulhar nesta eternidade gozosa.
Porto, 22 de fevereiro de 2020José Ferreira Gomes,
Presidente da Fundação Spes
Na apresentação do livro de Eugénio Fonseca "Testemunho de duas vidas compartilhadas", Paulinas Editora, Prior Velho, 2020, ISBN: 978-989-673-728-3
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