Estamos em tempo de pandemia viral e qualquer outro tema é remetido para as páginas secundárias. Muitas decisões são tomadas na expectativa de que o escrutínio esteja confinado. A nossa educação básica, secundária e superior tem sido vítima desta oportunidade. Não morreu do vírus (que os professores combateram com o denodo possível) mas tem sangrado com os tratamentos sempre bem-intencionados. O contágio viral atinge toda a gente, mas escolhe os mais frágeis para vítima. Também na educação, os tratamentos benévolos atingem todos, mas são os jovens mais frágeis que vão carregar as piores sequelas.
Foco-me apenas em alguns exemplos do facilitismo que, a título de proteção dos mais frágeis, lhes vai de facto barrar as expectativas de promoção social. As estatísticas podem melhorar, mas serão esses a carregar a frustração de não verem o seu mérito e o seu trabalho recompensado mais tarde. As sociedades modernas usam a certificação educativa como título de acesso a muitas profissões e aos consequentes benefícios sociais, culturais e sanitários, mas as velhas redes familiares e sociais mantêm um peso significativo. Todas as medidas que desvalorizem a certificação educativa deixam as ligações sociais como fator primeiro. Quando faltem as boas relações e a oportunidade de uma boa “cunha”, resta a frustração do subemprego ou da emigração. O Público tem relatado casos exemplares desta realidade. Estamos pior que no ancien régime, porque agora são criadas fortes expectativas que vão ser frustradas. Assinalemos os efeitos do facilitismo de programas e de exames (ou falta deles) no ensino básico e secundário e, no superior, o reforço das carreiras docentes endogâmicas, dispensando a mobilidade e a competição.
No ensino básico e secundário, este descalabro começou em 2016 e atingiu o auge a coberto da pandemia. Programas muito encurtados, exames facilitados ou eliminados e, contudo, progredimos agora mais lentamente do que nos anos anteriores na redução do abandono escolar precoce. Em relação ao ensino secundário, estas medidas referem-se à via científico-humanística porque das vias profissionalizantes não se fala nem se procura consolidar um trabalho iniciado há escassos 20 anos com grande esforço dos professores (que tiveram de se adaptar a uma nova população escolar), mas com a quase ausência de orientações e de avaliação dos resultados.
O acesso ao ensino superior é um pastel de vias bastante opacas que só são corrigidas quando algum escândalo chega às primeiras páginas e quando são atingidos os candidatos com voz mais forte, normalmente em busca da medicina. Para o público, o acesso faz-se por um Concurso Nacional que foi sendo afinado progressivamente ao longo de décadas, mas sem nunca conseguir ter exames aferidos para comparação interanual. As outras vias são apenas conhecidas dos grupos interessados e nunca avaliadas. As instituições de ensino superior são formalmente responsáveis pelo acesso, mas há muito desistiram de ter voz depois de conhecerem a dificuldade do processo nos idos de 1990. O sistema merecia uma limpeza. Em lugar disso, têm sido abertas novas vias para satisfazer grupos de interesse ou “grandes desígnios”, mesmo que o resultado provável seja muito diferente. A inovação mais recente foi a anunciada abertura de 500 vagas (em 2022, subindo para mil em 2023 e duas mil em 2025) para alunos de escolas TEIP (Territórios Educativos de Intervenção Prioritária) com a justificação de assim aumentar a participação no ensino superior de jovens oriundos de ambientes desfavorecidos e de grupos étnicos minoritários. Entramos no terreno escorregadio das discriminações positivas e esta não vai ser menos controversa do que outras testadas em alguns países. O desígnio assumido é muito nobre, mas é também o mais fácil. Em alternativa teria de se trabalhar um pouco mais com esses alunos em TEIP. Infelizmente, a proposta surge depois de estudos que poem em dúvida os ganhos no desempenho destes alunos em comparação com os de outras escolas e sabendo-se por um relatório da OCDE que perto de 20% destes alunos são oriundos da metade mais favorecida da nossa sociedade. Naturalmente, serão estes os principais beneficiários da nova via criando-se uma nova injustiça quando se clama por maior justiça.
Com menores efeitos imediatos, mas um erro mais clamoroso são as alterações aos estatutos das carreiras docentes do ensino superior para as tornar mais endogâmicas. Durante cinquenta anos lastimamos o imobilismo e a consequente endogamia dos nossos professores. Todos concordavam com a mediocridade assim protegida, mas explicava-se pelos fortes laços familiares que ainda se mantinham e pela dificuldade de mudar de residência muitas vezes adquirida com empréstimos a longo prazo. Em lugar de induzir uma maior mobilidade, pelo menos em algumas fases da carreira, o Governo abre agora a porta a que um jovem entre para a licenciatura numa instituição e dali saia cinquenta anos depois reformado como professor catedrático sem nunca se confrontar com outra cultura e sem partilhar o que ali aprendeu com outras pessoas noutras instituições. De facto, a maioria dos doutorandos mantêm-se no local e até com o mesmo professor com quem terminaram o mestrado. Em pós-doutoramento, é aliciante manter-se no mesmo grupo para ser ali mais produtivo, ainda que menos inovador. Entrado na roleta dos contratos de investigador, a proteção de um docente-investigador sénior é a melhor garantia de sucesso, muitas vezes o orientador de doutoramento. Se já mostrou a sua dedicação à casa, porque não deverá ser preferido num concurso dito internacional para professor auxiliar quando a sorte chegar e um lugar for aberto no local onde nasceu para o conhecimento. Depois disso, fica agora aberta a via rápida para exercer os seus direitos a promoção por antiguidade ou quase. E a reforma chegará em breve.
Uma bazuca, das verdadeiras, teria efeitos mais rápidos e mais visíveis, mas estas intervenções furtivas serão talvez mais eficazes a aumentar a enorme frustração dos nossos jovens diplomados destinados à cauda desta nossa Europa.
José Ferreira Gomes, Reitor da Universidade da Maia
Publicado no jornal Público em 5 de agosto de 2021
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