Na leitura do Senhor Presidente do
CRUP (ver JN de 5 de novembro de 2019), as universidades propõem-se oferecer um maior esforço na atividade educativa, de
investigação, desenvolvimento e valorização económica, pedindo em troca um reforço de financiamento. Como desígnio
para esta legislatura, ele vê a consolidação
da democratização do acesso à escola pública trazendo ao centro da agenda
política o reforço dos apoios sociais aos
estudantes. Só algum otimismo conseguirá descortinar a promessa de melhor financiamento, mas uma leitura mais cuidada do programa de governo, talvez
nos permita ir mais longe.
O Programa do XXIº Governo que há
dias tomou posse tem 57 menções ao “ensino superior”, sendo 22 delas fora da
secção específica. Isto sugere a relevância transversal atribuída a este setor.
Compare-se com a Saúde que, pesando quase 10 vezes mais no OE, ocupa apenas 1,5
vezes (em espaço e número de menções) neste programa. Mas, apesar desta
extensão, não é mais fácil de ler o que nos propõe para este futuro próximo.
O grande desígnio é logo apontado:
Um dos principais objetivos de Portugal
para 2020 deve ser o de atingir 40% de diplomados de ensino superior na faixa
etária 30-34. Em 2013, eram ainda 29%, enquanto a média europeia atingia os
37%.
Estranha-se porque este é um objetivo
do passado, de um passado de mais de 10 anos. A nossa função de qualificação de
adultos tem pouco significado e os jovens admitidos no ensino superior neste próximo
quadriénio só aparecerão naquele indicador lá para 2035! O último valor
disponível para este indicador é, em Portugal, de 33,5%. Como demonstrou um
estudo da DGEEC, este indicador continua a sofrer bastante da emigração de
diplomados que se mantém elevada e a um nível semelhante para jovens diplomados
e para os não qualificados. Se considerarmos apenas os licenciados teremos, segundo
a OCDE[1], 35% de
licenciados na faixa dos 29 a 34 anos, um valor superior ao espanhol (31%), superior
ao francês (33%) e superior ao alemão (32%), mas inferior ao de outros parceiros
europeus. Na comparação com estes países o nosso atraso está nos diplomados
profissionais (nível 5, TeSP) com 13% em Espanha e 14% em França, mas isto não
é trabalho para a universidade.
Consideremos agora algumas das seis
linhas de atuação propostas no programa de governo.
(i)
Alargar
e democratizar o acesso ao ensino superior
·
avaliar
o regime de acesso ao ensino superior e promover um debate público
Assume-se uma linguagem muito
prudente que traduzirá a incapacidade de se definir uma orientação política neste
tema sensível. Deve notar-se que a percentagem dos jovens que completa o
secundário pela via “regular” e a percentagem destes que transitam para o
ensino superior está alinhada com a realidade de outros países. O atraso
mantém-se nas vias profissionais no secundário e, depois, na continuação destes
no superior. Por outro lado, a qualidade académica das formações profissionais
é incerta e sempre bastante distante da que tem sido mantida na via “regular”,
o que explica os alertas lançados pelo presidente da A3ES sobre o tipo de
estudantes que têm sido admitidos em licenciatura em algumas instituições.
(ii)
Reativar
um pacto de confiança no ensino superior
·
Estimular
um quadro de financiamento estável a longo prazo, com base em objetivos e com
definição plurianual, envolvendo financiamentos-base, projetos de modernização
pedagógica, projetos de reforço de equipamentos e infraestrutura;
·
Assegurar
uma avaliação adequada do regime jurídico das instituições de ensino superior
Repete-se a promessa de sempre de um
financiamento base estável com a velha ideia, muitas vezes prometida, mas nunca
concretizada, de contratos-programa com metas especiais. Não se fala no necessário
aumento de financiamento global das instituições de ensino superior. Não se
fala na revisão da escala salarial dos docentes de modo a reduzir o enorme
distanciamento que se foi criando para as carreiras judiciais (e militares) que
estiveram equiparadas nos idos de 1979! Em relação ao RJIES, não se promete
mais que uma avaliação adequada!
Não é claro que as quatro linhas
seguintes se traduzam em ações concretas, embora se refiram a problemas muito
reais.
(iii)
Criar
condições para a renovação de docentes e especialistas nas instituições
de Ensino Superior
·
O
Governo defende o lançamento de um novo programa de apoio à atração e renovação
contínua de docentes e de especialistas para as instituições de ensino superior
(iv)
Melhoria
dos níveis de sucesso
educativo no ensino superior
(v)
Reforçar
os instrumentos de internacionalização das instituições de ensino superior
(vi) Criar
programas de apoio a estágios curriculares para estudantes do ensino superior,
com corresponsabilização institucional na empregabilidade sustentável e
duradoura dos mais jovens
·
Apoiar
a institucionalização e sistematização de estágios ...;
·
Associar
os estágios curriculares a mecanismos de apoio à empregabilidade dos
licenciados e graduados;
·
Incentivar
a colaboração entre universidades, institutos politécnicos e empresas e outros
empregadores, de modo a aprofundar a ligação territorial das instituições do
ensino superior e a facilitar a transição entre a academia e a inserção
profissional.
Em relação aos problemas atuais de
emprego (e tipo de emprego) dos diplomados, não parece haver ideias muito
seguras quanto a uma estratégia para atenuar a emigração e os seus efeitos
sobre a pretendida qualificação dos portugueses (residentes). Note-se que a
mobilidade, em particular no espaço europeu, é desejável e o seu crescimento irreprimível.
O nosso problema é o défice gerado por esta mobilidade intraeuropeia. Em
Espanha, reconhece-se[2] que o
ritmo de qualificação de jovens excede em muito a capacidade de a economia os
absorver com a consequente taxa elevada de sobrequalificação, isto apesar da
grande maioria das empresas continuar a apontar dificuldades de recrutamento. A
taxa de desemprego entre os jovens espanhóis (25-29 anos) com qualificação
superior continua muito elevada (14,9%), bastante acima da média europeia. Em
Portugal não temos a coragem para ver a realidade e reagir de acordo com as
nossas necessidades.
Não podemos andar distraídos do que
vai acontecendo na Europa. Na Inglaterra, um grande estudo oficial muito
recente apontava a necessidade de dar maior atenção regulamentar e financeira à
formação profissional pós-secundária e o governo (de Teresa May) deu resposta
imediata com a criação de um novo tipo de instituições, os Institutos de tecnologia
ou Institutes of Technology. Nesta última
semana, passou no parlamento alemão, o Bundestag, uma lei reorganizando o
ensino profissional alemão com a criação de novos diplomas, o “bachalerato
profissional” e o “mestrado profissional”, uma inovação muito criticada pelo
conselho de reitores alemão. E note-se que este conselho de reitores reune já
universidades e “politécnicos”. A preocupação política alemã volta-se agora
para os percursos profissionais (de ensino dual) num esforço para os tornar
mais atrativos, mais atrativos do que as licenciaturas (e mestrados)
tradicionais de universidades e politécnicos. [Recorde-se o dito acima,
Portugal tem mais licenciados jovens que a Alemanha!] E, na Alemanha, o alarme
soou por haver um pouco mais de jovens a seguir para licenciatura e
universidades e “politécnicos” do que para a formação dual pós-secundária.
As universidades têm frequentemente
dificuldade em falar de emprego por entenderem que a sua função é apenas a da
criação e transmissão do conhecimento. Caberia aos estudantes avaliar os seus
interesses e decidir o percurso educativo que melhor se lhes ajusta. Várias
razões poderão ser aduzidas para rejeitar esta visão. Por um lado, a assimetria
de informação entre o jovem estudante e as instituições de ensino superior
dificulta ou impede a sua decisão fundamentada. Por outro, ao atingirmos uma
época de acesso massificado (superior a 50% da coorte) temos de nos preocupar
com o impacto social das opções oferecidas aos jovens. Respeitando a sua
liberdade de escolha, o Estado deve sentir-se obrigado a oferecer opções e
informação relevante que diminua o risco de frustração que hoje atinge muitos
jovens graduados entre nós e também em muitos outros países. O problema
agrava-se quando a qualidade da educação fica aquém das expectativas ou das
promessas. Aqui, qualidade tem de ser
entendida como o ajuste do percurso e programa educativo proposto aos objetivos
dos jovens e das famílias. E um percurso de vida feliz, incluindo um “bom
emprego”, são certamente objetivos sempre presentes, ainda que nem sempre
explicitados aquando da escolha de percurso pós-secundário.
Covilhã, e UBI, 6 de novembro de 2019 In: Observador, 08 de novembro de 2019
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