Faz-se uma descrição esquemática da realidade
atual da educação e formação de jovens, a sua história e a comparação com
alguns países europeus. As conclusões vão no sentido de termos de dar maior
atenção às vias profissionais ou vocacionais do ensino secundário no sentido de
as ajustar às necessidades dos jovens e às realidades do nosso mercado de
emprego. O ajuste num quadro de universalização da educação até aos 18 anos é
especialmente urgente. O ensino pós-secundário e superior terá de ajustar-se a
esta nova realidade, clarificando a diversidade da sua oferta, quer para o tradicional
prosseguimento dos que tenham seguido a via “liceal”, quer para os que tenham
optado por uma via mais vocacional.
Post-18 (or ‘tertiary’) education in England
is a story of both care and neglect, depending on whether students are amongst
the 50 per cent of young people who participate in higher education (HE) or the
rest. The panel believes that this disparity simply has to be addressed. Doing
so is a matter of fairness and equity and is likely to bring considerable
social and economic benefits to individuals and the country at large. It
is our core message. [Augar’s Report, May 2019][1]
A mensagem central deste estudo encomendado pelo Governo inglês é muito
forte e vem atualizar um outro estudo publicado em 1963[2]
que norteou a expansão do ensino superior inglês e o enorme reforço das novas polytechnics. Estas vieram a ter o
estatuto de universidades em 1992, sendo agora conhecidas como new universities. Em 1962, estimava-se
que 7% da população jovem prosseguisse estudos para além do secundário. Hoje
rondará os 50%. A crítica feita neste novo estudo é que as universidades
estarão bem financiadas através de propinas de £9000 e, com a recente liberalização
do número de estudantes admitidos, terão um forte incentivo ao crescimento. Os
estudantes universitários terão apoios públicos generosos através de
empréstimos garantidos pelo estado e outros apoios diretos. A situação será
muito diferente em todas as outras instituições de ensino pós-secundário, mal-organizado
e com instituições muito frágeis e mal financiadas. Os apoios aos estudantes
destas instituições serão também muito escassos. Este estudo considera esta
realidade injusta e propõe uma maior igualdade entre a educação universitária e
as outras formas de educação e formação pós-secundária.
Em Portugal, a situação é mais gravosa. A percentagem dos jovens que chegam
ao ensino superior é ligeiramente mais baixa, talvez uns 45%, mas as alternativas
são quase inexistentes. E temos ainda uma percentagem elevada que não conclui o
secundário, nem na via académica (formatada com vista à entrada numa
licenciatura universitária ou politécnica), nem nas alternativas de caráter
vocacional. A figura 1 mostra o desequilíbrio da nossa distribuição educacional
da população jovem em relação à média da União Europeia, sendo evidentes as
áreas que exigem maior esforço,
(a)
O enorme
atraso na atenuação de uma população jovem sem qualificações (ISCED 1-2). A
alfabetização em Portugal foi muito tardia e ainda é evidente que uma enorme
população jovem não qualificada poderá trazer-nos problemas sociais e atraso
económico por muitos anos;
(b) O atraso na formação profissional dos
jovens mantém-se de forma gritante e é necessário melhorar este indicador
(ISCED 3-4) e dar uma atenção renovada à qualidade desta formação profissional
e afinar os mecanismos de transição para a vida ativa.
(c)
A
pressão para aumentar a taxa de participação no ensino superior tem de ser
mantida.
Figura 1. Nível educacional da população de 25 a 29 anos
(2011). Deve notar-se que, em Espanha e em França o nível 5 (equivalente aos
cursos de TeSP em Portugal) representa mais de 10%. O ISCED é o descritivo do
nível educacional adotado pela OCDE, 1-2 abaixo do secundário, 3-4 secundário
académico e profissional, 5-8 ensino superior até ao doutoramento.
A urgência de atacar estes atrasos históricos do sistema educativo
português tornou-se mais premente com a introdução da permanência obrigatória
de todos os jovens na escola até aos 18 anos. O legislador considerou,
provavelmente, que esta seria a medida mais eficaz para atenuar o abandono
escolar precoce (em idade de ensino básico, até aos 15 anos) e a baixa taxa de
participação no ensino secundário. Numa observação mais cuidada, as
estatísticas mostravam já que a grande maioria dos jovens se mantinham no
sistema escolar até aos 18 anos e, por isso, o impacto quantitativo na
população escolar foi pequeno. O problema estava na elevada taxa de repetência
e consequente desmotivação de muitos jovens que acabavam por sair do sistema
escolar sem completarem o ensino secundário e até sem chegarem a completar o
ensino básico. De facto, em 2017[3],
Portugal tinha 37,7% dos homens de 25 a 34 anos sem o ensino secundário
completo, uma taxa muito distante da média da União Europeia (UE22), 16,9%. A
Espanha é o único país da EU em pior situação (39,4%) e o país seguinte é a
Itália com 28,7%. Para as mulheres, a percentagem de jovens sem o ensino
secundário completo é menor, mas na mesma relação comparativa de 23,37% em
Portugal para os 12,26% na UE22. É surpreendente que tenhamos uma despesa com a
educação básica e secundária acima da média da União Europeia (3,94% do PIB,
comparável com 3,3% para a UE22[4]),
perdendo ainda uma percentagem tão alta dos nossos jovens. Os nossos parceiros
mais próximos têm uma despesa mais baixa que a média, 3,07% para a Espanha e
3,01% para a Itália. Não deve haver dúvida de que temos de fazer um grande
esforço para recuperar este atraso. Estes jovens não qualificados terão uma
grande probabilidade de vir a ter dificuldades de inserção no mercado de
trabalho, podendo mesmo cair nalguma forma de marginalidade social. Enquanto no
passado, muitos jovens em idade escolar abandonavam para entrar precocemente no
mundo do trabalho, hoje são menos bem aceites e quando saem da escola aos 18
anos sem qualificações que lhe facilitem a transição terão dificuldades muito
severas. Do seu lado, terão mais dificuldade em ajustar as suas rotinas
pessoais e aceitar a disciplina de uma rotina diária de trabalho; para os
empregadores, estes serão a última opção e serão pouco flexíveis na aceitação
de alguma indisciplina inicial associada à transição para a vida adulta.
O nosso atraso educacional vem de muito longe e foi agravado pelo abandono
a que foi votado pela sociedade portuguesa ao longo de séculos. A rede escolar
Jesuíta cobria as sedes de distrito do continente, ilhas e ultramar. Com a sua
expulsão em 1759, as escolas fecharam e o país ficou sem qualquer alternativa
durante decénios. Seguiram-se as guerras napoleónicas, a abertura dos portos
(aos ingleses) e depois a independência do Brasil e a guerra civil, um período
muito destrutivo da base económica de que tivemos uma enorme dificuldade em
recuperar. Quando Passos Manuel cria a rede de liceus em 1836, diz que essa
medida “representa o primeiro protesto oficial contra a instrução secundária
exclusivamente clássica e formal”. O preâmbulo do decreto de 17 de novembro de
1836, aponta objetivos claramente contraditórios e irrealistas: “a) Dar aos
alunos uma educação nobre, própria de cavalheiros, formando-os moral e
intelectualmente; b) prepará-los para a vida prática, isto é, proporcionar-lhes
uma cultura completa e adaptada à nova sociedade industrial e científica e
orientá-los para o desempenho de funções produtivas, isto é, para as carreiras
técnicas; c) habilitá-los para frequentar as escolas superiores”. Não surpreende
que, num país que esteve quase 80 anos sem um sistema educativo minimamente
organizado, a criação de liceus nas sedes de distrito tenha tido enorme
dificuldade em sair do papel. Não havia professores preparados nem alunos a
procurarem a escola. Depois, pretendia-se abandonar a instrução ”exclusivamente
clássica e formal” e orientar os alunos para “carreiras técnicas”, uma opção
difícil de aplicar. A Regeneração deu prioridade aos “melhoramentos materiais”.
Apesar de Fontes Pereira de Melo ser responsável pela criação de escolas de artes
e ofícios, o seu desenvolvimento foi sempre muito modesto, não obstante terem
inspirado o aparecimento, anos mais tarde, do ensino técnico (industrial,
comercial e agrícola) que manteve uma linhagem viva até algumas escolas
politécnicas e universitárias atuais.
A República deu grande ênfase à educação, mas não pôde ir muito além da
retórica. O Estado Novo deu inicialmente prioridade absoluta ao reequilíbrio
das contas externas e foi depois muito lento a recuperar o atraso acumulado. A
alfabetização básica universal foi conseguida no fim da década de 1950, quando
muitos países europeus o tinham conseguido ainda no século XIX. A universidade
manteve um nível muito básico, crescendo sustentadamente a cerca de 6% ao ano
ao longo de quase todo o século XX, mas só na década de 1985-95 teve o
crescimento mais rápido que nos aproximou dos vizinhos mais imediatos. As
Escolas Técnicas tinham sido criadas como alternativa vocacional aos liceus de
orientação mais geral ou científico-humanística. Como era uso na época em
muitos países, a escolha entre as duas vias era feita pelos 10 anos e tinha um
forte marco social. Esta foi a razão para a sua extinção, primeiro com a
reforma de Veiga Simão, em 1973[5]
e, de forma mais efetiva, após o 25 de abril, em 1978[6],
com a denominada “licealização” ou unificação das diferentes vias de ensino. Porém,
esta alteração estrutural postergou durante muitos anos as vias mais
profissionalizantes, dificultando a formação de quadros intermédios e,
consequentemente, a satisfação de necessidades impostas pela modernização
tecnológica das empresas. Este constrangimento só começou a ser superado a
partir da década de 1990[7]
e, com maior impacto, já no início do século XXI. Este é o atraso que ainda nos
acompanha hoje. A falta de alternativas para os alunos desajustados da via
“liceal” levou a um enorme abandono precoce de que estamos agora a recuperar
tardiamente.
A consciência da necessidade de criar uma rede de formação profissional
chegou-nos com a entrada no então Mercado Comum Europeu; os meios foram
disponibilizados pelo Fundo Social Europeu. Terá sido o nosso atraso nesta área
que criou a oportunidade para muitos desvios e ainda hoje temos um sistema
muito balcanizado e pouco robusto. Formalmente, o Ministério da Educação é
responsável pela formação profissional dos jovens até aos 18 anos, ficando a
formação profissional dos maiores para o Ministério do Trabalho através do
Instituto de Emprego e Formação Profissional. Alguma concorrência malsã entre
as duas redes é agravada pela dificuldade de adaptação das escolas secundárias
(públicas) a este novo público e à sua nova função e pela atomização da oferta
privada num quadro competitivo pouco claro, subacompanhado, subavaliado, com um
financiamento assimétrico e muito dependente dos fundos europeus. Não existe um
sistema de avaliação externa independente dos resultados do processo de
educação e formação. Enquanto o percurso académico prioritariamente vocacionado
para a continuação de estudos é anualmente avaliado pelos exames nacionais de
12º ano, nada de equivalente existe para as outras vias de ensino secundário
nem para a formação profissional de adultos. Nem para as componentes de
conhecimentos básicos, nem para as aptidões profissionais. Há sinais de que
alguma formação profissional (de jovens e de adultos) é de excelente qualidade.
Há escolas com equipamentos muito acima do típico em países mais ricos e experientes
e há também escolas que aproveitam muito bem as suas parcerias com empresas
para iniciar os seus alunos em equipamentos que vão chegar ao mercado ou para
usarem equipamentos ainda recentes, mas já substituídos em algumas empresas.
Pelos dados mais recentes da OCDE[8],
Portugal teria uma taxa de finalização da via académica do ensino secundário
(46% da população da coorte) igual à média da União Europeia e uma taxa mais
baixa para a via vocacional (28%) quando comparada com a EU (35%). (Estes
números têm flutuações anuais que levam a pensar que os processos de recolha e
validação da OCDE não estarão ainda bem estabilizados.) Tudo indica que o
crescimento lento que se tem verificado na via mais académica, dita “regular”,
representa um esforço saudável das escolas e que terá de ser mantido. Já a via
profissional (ou, mais rigorosamente, as vias vocacionais) deverão crescer
rapidamente para reter no sistema educativo tendencialmente todos os jovens e
dar-lhes um diploma que lhes permita a transição para a vida ativa ou a
continuação de estudos. Com a escolarização obrigatória até aos 18 anos,
torna-se mais premente a diversificação dos percursos vocacionais para cobrirem
todas as áreas de atividade, o que está longe de ter sido conseguido. Há
trabalho urgente a fazer nas vias vocacionais para que cresça em número de
alunos, em qualidade e em diversidade da oferta.
O ensino superior parece ter uma oferta suficientemente diversificada para
satisfazer as necessidades deste público jovem que, terminado o ensino secundário,
pretenda ir mais longe no seu percurso educativo. O Concurso Nacional de Acesso
está desenhado para os que terminem o secundário pela via mais tradicional, a
científico-humanística, e dá acesso a cursos de Licenciatura. Para os cursos de
Técnico Superior Profissional (TeSP), a seleção de entrada é feita num concurso
local bem ajustado aos alunos que tenham terminado o secundário pela via
profissional. A entrada direta em Licenciatura através de concursos locais
(onde não são seguidos os padrões do ensino secundário científico-humanístico e
dos seus exames finais) é significativa em muitas instituições do ensino
superior e é preocupante: algumas licenciaturas alimentadas por este canal não
poderão cumprir os padrões académicos de cursos similares noutras instituições.
A percentagem da coorte jovem que termina o secundário pela via científico-humanística
e transita para uma licenciatura não é muito diferente da que acede ao ensino
superior tradicional noutros países europeus. Não se compreende a campanha que foi
desenvolvida nos últimos anos para abrir novos concursos locais para acesso
direto a Licenciatura de candidatos que não atingem os padrões mínimos atuais.
A exemplo dos nossos vizinhos mais diretos, é natural que a frequência de
cursos de TeSP continue a aumentar, à medida que se instale uma boa oferta no
Porto e em Lisboa, podendo continuar a crescer a dois dígitos como em anos recentes.
Tendo estes cursos uma grande proximidade ao mercado de trabalho da região,
seria desejável que a maioria dos diplomados pudesse entrar imediatamente na
vida ativa, como acontece em todos os países. Em Portugal, ainda se vive na
ilusão de que a licenciatura é a única carta de alforria que permite a ascensão
social. Esta ilusão pode estar a ser alimentada por instituições de ensino
superior que têm como primeiro objetivo aumentar o número de estudantes de
licenciatura, independentemente dos padrões académicos a que são forçadas para
isso. Este caminho levará certamente a um desequilíbrio grave na nossa
sociedade e a uma enorme frustração desses jovens que virão a ter dificuldade no
mercado de trabalho. O prémio salarial dos licenciados tem baixado em Portugal.
Não é caso único. Na Inglaterra, um estudo recente[9]
concluiu que alguns cursos universitários têm um impacto negativo no rendimento
salarial dos diplomados aos 29 anos de idade. No outro extremo da Europa, 72%
dos jovens russos (com idades 18 a 24 anos) acreditam[10]
que o ensino superior não é condição para uma vida bem sucedida, isto porque a economia
não está a gerar empregos qualificados bem remunerados. Note-se que na Rússia a
percentagem de licenciados (ou mestres) entre os jovens é semelhante à
portuguesa.
José Ferreira Gomes
Universidade do Porto
[1]
Review of Post-18 Education and Funding, Augar’s Report, May 2019, ISBN
978-1-5286-1322-4
[3] OECD,
Education at a Glance 2018, Fig. A1.1
[4]
OECD, Education at a Glance 2018, Fig.
C2.1
[5] Lei nº 5/73, de 25 de julho, Lei de Bases
do Sistema Educativo (Reforma Veiga Simão), em que se criam as escolas
secundárias unificadas pluricurriculares ou escolas secundárias polivalentes (subsecção 2ª, Base
IX, n.ºs 3 e 4)
[6] DL nº 80/78, de 27 de abril, em que todos
os estabelecimentos de ensino, após o ensino básico, passaram a ser designados
de escolas secundárias, e Despacho Normativo nº 40-A/78, de 22 de junho, em que
se extinguem os cursos técnicos.
[7] DL nº 26/89, de 21 de junho, criação das
escolas profissionais
[8]
OECD, Education at a Glance 2018, Fig. B3.3
[9] Chris Belfield,
Jack Britton,
Franz Buscha,
Lorraine Dearden,
Matt Dickson,
Laura van der Erve,
Luke Sibieta,
Anna Vignoles,
Ian Walker and
Yu Zhu, “The impact of
undergraduate degrees on early-career earnings”, Institute of Fiscal Studies,
London, 27 Nov 2018