quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Educação: Que tem falhado?



Portugal tem hoje uma participação no ensino superior próxima da média europeia e da OCDE. A não ser atingido o alvo de 40% da população residente de 30 a 34 anos com um diploma do ensino superior em 2020, a diferença é explicada pelo atraso na criação dos ciclos curtos (de TeSP, Técnico Superior Profissional) e pela emigração jovem que se mantém a um nível elevado. Ao nível secundário, a situação é diferente, o atraso é manifesto e esse problema mantém-se fora das preocupações políticas do momento. De facto, a via científico-humanística do secundário tem uma participação próxima e uma qualidade comparável à observada noutros países; já a via profissional é ainda muito desigual, não havendo qualquer avaliação externa do que se aprende e do sucesso dos diplomados por esta via. Ainda mais grave é a enorme faixa de perto de 30% da coorte que falha a obtenção de um diploma do secundário para prosseguimento de estudos ou entrada na vida ativa.
Figura 1. Fechada a rede escolar da Companhia de Jesus (1759) e com os 30 anos de guerra destruidora seguidos de uma Regeneração pouco interessada na educação, Portugal acumulou um enorme atraso na alfabetização da sua população. Nos países do centro e norte europeu, a alfabetização era quase universal nos finais do século XIX.

Num olhar retrospetivo, não podemos deixar de registar os grandes marcos históricos do nosso atraso económico, social e educacional. O século XIX foi de grande divergência económica e social em Portugal (e também em Espanha). A estratégia de terra queimada das guerras napoleónicas foi muito destrutiva e a independência do Brasil (e da América espanhola) exigiu uma reorganização da economia que foi muito dolorosa e, no essencial, falhou. O atraso da alfabetização foi-se acentuando em toda a Europa do sul, de Portugal a Espanha, sul de Itália, Balcãs e Grécia. Em Portugal, a expulsão da Companhia de Jesus em 1759 levou consigo quase toda a organização educativa. O Marquês de Pombal não foi capaz de reorganizar a educação básica como aconteceu, p. ex., em França depois da Revolução. Mais tarde, situação política só veio a estabilizar depois da vitória liberal em 1834, mas a educação não foi assumida como prioridade, tendo a Regeneração preferido os chamados “Melhoramentos Materiais”, na realidade a construção de linhas férreas e de algumas estradas. Sinal desta realidade é que só o testamento de um “brasileiro”, o Conde de Ferreira, veio a pontuar a paisagem portuguesa pela construção de 91 escolas primárias já em finais do século e que se mantiveram a sua relevância até aos nossos dias. A universalização do ensino primário (hoje, 1º ciclo do ensino básico) só foi conseguida pelo fim da década de 1950, um resultado já atingido em finais do século XIX na generalidade dos países do centro e norte da Europa. O grande marco de alargamento da escolaridade foi a reforma de Veiga Simão (1971-73) que, de um lado, alongou a escolaridade obrigatória para além dos 4 anos e do outro criou novas universidades fora das três cidades tradicionais. Na realidade, o ensino superior manteve o seu ritmo de crescimento de cerca de 6% ao ano ao longo de todo o século XX. Mas o marco final da recuperação foi conseguido nos 15 anos finais (já com a forte ajuda comunitária) quando se deu uma verdadeira explosão com a transferência de quase todos os jovens que terminam o secundário (via científico-humanística) para licenciaturas do ensino superior. Pelo caminho, tinha sido estabilizada uma rede de institutos politécnicos que fora pensada por Veiga Simão, mas só começou a chegar ao território com a ajuda do Banco Mundial na sequência das primeiras quase roturas de pagamentos (1977-1983).
Figura 2. O número de estudantes inscritos no ensino superior estagnou a partir de 2000, com especial impacto no setor privado que tinha crescido aquando da explosão da procura entre 1985 e 1995.

O número de estudantes do ensino superior estagnou a partir do virar do século em consequência da queda demográfica e da estabilização da percentagem da coorte que completa a via científico-humanística do secundário. Mantendo-se as condições atuais, este número terá uma quebra acentuada nos próximos anos, à medida que se faz sentir o impacto da quebra da natalidade que passou de 120 000 nascimentos há 18 anos para cerca de 85 000 nos anos mais recentes. A estabilização da rede de ensino superior à dimensão atual exige que a taxa de participação jovem subisse dos cerca de 40% atuais para perto de 60%. Como não esperam que a via científico-humanística consiga este resultado (apesar de vir a subir lentamente a sua capacidade de atração de mais jovens), muitos vêm na via profissional a tábua de salvação para a estabilidade das suas instituições. Para apreciar esta perspetiva de evolução convém olhar ao que está a ocorrer noutros países com quem gostamos de nos comparar. Para isso, teremos de responder a questões sobre a natureza do ensino secundário e do ensino superior que desejamos ter no futuro previsível.
A chave do crescimento da participação e do sucesso no ensino secundário e no ensino superior tem sido, em todos os países, a sua diversificação. São oferecidas diversas vias com objetivo e ambição académica muito diferentes, permitindo-se ao aluno a escolha, enquanto se oferece apoio para as transições quando haja expectativa de sucesso. Portugal tem falhado porque insistiu por demasiado tempo numa via (quase) única de ensino secundário e titubeou na estabilização do sistema binário. Só em 2014 foram introduzidos os ciclos curtos profissionalizantes, os cursos de TeSP. A recuperação do abandono precoce só foi possível neste século quando se deu mais força à via profissional e podemos estar de novo a atrasar-nos na ponta final desta aproximação da Europa por termos desistido dos formatos mais vocacionais e até do ensino dual. Temos hoje de esconder que perto de 30% dos nossos jovens de 18 anos ainda saem do seu percurso educativo obrigatório sem um diploma que lhes abra a porta para o prosseguimento de estudos ou para a entrada no mundo do trabalho.
Outros países seguiram uma política de estabilidade que surpreende. Na Califórnia, foi estabelecido em 1960 que 12,5% dos jovens diplomados pelo ensino secundário deveriam poder entrar na California State University, a sua rede de universidades de investigação e que 27,5% adicionais deveriam ter lugar na State University of California, a rede de universidades estaduais de baixa intensidade de investigação. Sessenta anos depois, estas cotas indicativas mantêm-se na lei e na prática. Todos os outros diplomados podem optar por um curso de 2 anos num dos Community Colleges espalhados por todo o estado e um número crescente destes tem sido incentivado a escolher um percurso de preparação para transferência para uma das universidades. Em Espanha e França, o objetivo de 40% de diplomados (de 30 a 34 anos em 2020) não está em dúvida, mas mais de 20% da coorte entra e diploma-se num curso de ensino superior de 2 anos em instituições diferentes das universidades. Ainda em França, as instituições de ensino superior de elite fazem uma seleção muito apertada dos candidatos depois de um curso preparatório de 2 anos (pós-secundário) lecionados em liceus. Pouco mais de 40% da coorte termina o secundário pela via académica que dá uma razoável garantia de sucesso no ensino superior. Os diplomados por outra via (profissional ou tecnológica) podem aceder livremente a uma universidade, mas têm ali um enorme insucesso, com mais de 80% a abandonar.
O prémio salarial dos licenciados é ainda muito elevado em Portugal, maior do que na generalidade dos países da OCDE, embora haja sinais fortes de que esta situação se estará a alterar rapidamente para os mais jovens. Se a administração pública mantém estruturas de carreira bastante rígidas, a maioria dos diplomados têm hoje de optar pelo setor privado onde as escalas salariais são mais flexíveis e as diferenças entre os níveis educativos menores e, certamente, não garantidas. Embora frustrante para quem escolhe um percurso educativo longo na expectativa de uma diferenciação salarial elevada, esta nova realidade aproxima-nos de outros países onde a massificação educativa foi anterior e as diferenças salariais são menores. Pelo menos, estão menos correlacionadas com a extensão do percurso educativo.
Com a chamada reforma de Bolonha, Portugal optou por degradar o tradicional título de Licenciado (até então atribuído depois de 4 a 6 anos de estudos) atribuindo-o aos novos diplomados de 1º ciclo de 3 anos. A razão política desta escolha terá sido o desejo de prestigiar o novo ciclo inicial, abandonando a tradicional designação de Bacharel que tivera uma antiquíssima tradição na universidade portuguesa, mas fora depois usada para formações universitárias curtas de 3 anos. Mas a realidade do mercado não obedece aos piedosos desejos dos políticos e temos já hoje uma realidade em que o prémio salarial dos licenciados é baixíssimo e só os mestres são (ainda) comparáveis com os antigos licenciados, embora com sinais de fragilização.
Figura 3. Número de alunos a terminarem cada ciclo do ensino básico e secundário e de diplomados no ensino superior [Dados DGEEC, 2018]. Notem-se as flutuações consideráveis interanuais que resultam do tipo de exames e do reconhecimento de competências. Não sendo possível uma estimativa rigorosa da população da coorte interessada em cada nível educativo, os valores têm de ser tomados como indicativos.

O nosso ensino secundário terá de rapidamente criar condições para acolher e acompanhar todos os jovens até aos 18 anos. Outros países conseguiram-no! Isso vai obrigar a criar percursos mais diferenciados que dêem resposta aos muitos jovens que hoje abandonam. Teremos de aspirar a que todos terminem o seu percurso educativo com um diploma que lhes abra as portas do mercado de trabalho (ou de continuação de estudos). A aprendizagem profissional outrora feita informalmente tem de ser incorporada no percurso educativo, um passo que está a ser dado pelas nossas escolas, ainda que mais lentamente do que o desejável. Não será a culpa das escolas, mas a consequência de bloqueamentos políticos que atrasaram de decénios esta transformação. Acresce que o recurso a fundos comunitários (muito para além do razoável) tem permitido financiar confortavelmente algum do ensino profissional e a maioria dos estudantes empurrados para percursos alternativos fora do sistema público, nem sempre com uma qualidade proporcionada ao custo.
Porto, 3/dezembro/2018
Educação: Que tem falhado?
Apresentado na Universidade Portucalense (Porto), 28 de novembro de 2018
José Ferreira Gomes
Universidade do Porto
In: Revista Jurídica Portucalense, Nº 25, 2019, pág. 110-114, aceite para publicação em 4 de dezembro de 2018

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