A imprensa[1] tem dado eco à inovação proposta pelo governo para uma nova via verde de acesso a licenciaturas: Anuncia-se que “o acesso ao superior já não implica exames”! Seria injusto, dizem, exigir aos alunos da via profissional exames de disciplinas que eles não tiveram. Como estes alunos optaram por um caminho que lhes dá acesso imediato à vida ativa, mas não lhes dá os conhecimentos básicos necessários para o ensino superior, opta-se por lhes oferecer um percurso alternativo onde esse desconhecimento será escondido: um concurso local que torna esta realidade invisível.
O critério de acesso deve ser a avaliação do
potencial do candidato para ter sucesso no curso a que se propõe. A utilização
dos resultados de uma via académica do secundário é a base da decisão em quase
todos os países europeus. As classificações obtidas são uma medida imperfeita
do potencial, mas não há melhor. Nos Estados Unidos, onde não há um currículo
nacional único, a alternativa usada na admissão ao ensino superior é um teste
geral (menos dependente de conhecimentos curriculares concretos) a que milhões
de jovens se submetem anualmente. Uma avaliação local, caso a caso, é feita em
muitas universidades como complemento àquele filtro inicial, mas com críticas
frequentes de favorecimento a determinados candidatos ou grupos de candidatos.
Exames de entrada específicos para os cursos mais competitivos também se
tornaram mais comuns nos últimos anos.
O outro grande argumento é o atraso na taxa de
qualificação dos portugueses residentes na faixa dos 30 a 34 anos, mas
esconde-se que este atraso está a ser deprimido pela emigração dos graduados e
os números apresentados não dizem a verdade toda. O Senhor Primeiro Ministro
dizia há dias que não queria que todos os portugueses fossem doutores ou
engenheiros, mas não é esta a política do seu governo. Pelos últimos números (2018,
provisório), Portugal[2]
terá 33,1% dos jovens de 30 a 34 anos com uma licenciatura. (Não há ainda
diplomados de ciclos curtos elegíveis para esta contagem nos 30 a 34 anos.)
Comparemos com os nossos vizinhos: Em Espanha[3]
a taxa de diplomados é de 41,9%, mas apenas 28% com uma licenciatura. Os outros
14% saem com um diploma profissional superior equivalente ao nosso TeSP,
Técnico Superior Profissional. Em França[4],
45,5% têm um diploma, mas apenas 32% saem do sistema educativo com
licenciatura, enquanto que 13% obtêm o equivalente a um TeSP. E note-se que,
quer em Espanha quer em França, a transição do ciclo curto para a licenciatura
é possível, mas pouco frequente e difícil, muito mais difícil do que em
Portugal.
A preocupação política nestes países é atenuar a
frustração dos jovens licenciados que estão desempregados, subempregados ou só
encontram emprego em área distante da sua formação. Como estes cursos mais curtos
têm melhor empregabilidade do que muitas licenciaturas, a política oficial é
aumentar a frequência destes ciclos curtos. Assim foi definido há dias pelo
Presidente Macron na sua conferência de imprensa[5]
de conclusão do debate nacional de resposta à crise dos coletes amarelos. Também
o ministro inglês do ensino superior explicava recentemente a elevada taxa de
subemprego de licenciados com a dificuldade de a economia criar suficientes
empregos de alta qualificação nos últimos dez anos. E definiu[6]
já a localização de 12 Institutos de Tecnologia com a oposição a criticar pela
insuficiência da proposta. Esta nova rede de instituições fora já anunciada em
2016 com o objetivo de oferecer formação até ao nível 5, equivalente aos TeSP.
Nos últimos 10 anos, Portugal teve a maior
quebra da OCDE[7] no
prémio salarial dos licenciados. Num recente estudo inglês[8]
financiado pelo governo, mostrou-se que a obtenção de um curso em certas áreas e
em certas universidades inglesas tem um efeito negativo no salário médio dos
jovens de 29 anos. Apesar de ainda ter um efeito positivo muito significativo
no rendimento, na saúde e noutros aspetos da vida das pessoas, observa-se em
muitos países uma tendência mais igualitária com diminuição do prémio salarial.
Sem a emigração de diplomados que continua muito
elevada, já estaríamos a atingir o objetivo dos 40% de licenciados em 2020. O
Governo adota agora a medida errada. Em lugar de incentivar a frequência dos
cursos TeSP onde temos um enorme atraso, vai alimentar o facilitismo no acesso
a licenciaturas para as quais estes alunos não estão preparados. Há já hoje sinais
preocupantes de qualidade em licenciaturas onde a maioria dos estudantes não
entra pelo concurso nacional de acesso com os padrões de exigência a terem de
se adaptar à realidade dos candidatos aceites. A situação vai piorar com uma baixa
do reconhecimento dos graus académicos no mercado de trabalho, prejudicando os
socialmente mais frágeis. Para os outros, a rede social acabará por abrir as
portas certas, bloqueando a ascensão social dos que dizem estar a defender.
A frequência de cursos TeSP tem crescido a bom
ritmo para se tornar a opção de 10% da coorte jovem a breve prazo,
aproximando-nos dos nossos parceiros e satisfazendo as necessidades de quadros
intermédios bem reconhecida na nossa economia. A alternativa proposta pelo
governo é esvaziar os cursos de TeSP para alimentar licenciaturas de má
qualidade e imprestáveis no mercado de emprego.
Uma versão abreviada foi publicada no Jornal Público em 9 de maio de 2019
[1] https://www.jn.pt/nacional/interior/acesso-ao-superior-para-alunos-do-profissional-nao-implica-exames--10826586.html,
consultado em abril de 2019.
[2] Pordata,
transcrevendo dados (2018, provisórios) da União Europeia, Diplomados do ensino
superior, incluindo graduados e diplomados de ciclo curto na faixa de 30 a 34
anos: Portugal 33,1%; Espanha 41,9%, França 45,5%. https://ec.europa.eu/education/sites/education/files/document-library-docs/volume-1-2018-education-and-training-monitor-country-analysis.pdf,
consultado em abril de 2019.
[4] Les diplomes des sortans
du système éducatif français em 2015: 13% Bac+2 et 32% Bac +3, 5, 8 = 45% um
diplome. https://www.education.gouv.fr/cid57111/l-education-nationale-en-chiffres.html; https://www.letudiant.fr/educpros/actualite/de-plus-en-plus-de-diplomes-de-l-enseignement-superieur.html,
consultado em abril de 2019.
[5] Presidente Macron, Conferência de Imprensa, 25 de abril de 2019.
[6] BBC News, 10 de abril de 2019, 'Institutes of Technology' to boost
skills training, https://www.bbc.com/news/education-47866292,
consultado em abril de 2019.
[7] OECD
Employment Outlook 2019, figura 3.13, https://www.oecd-ilibrary.org/docserver/9ee00155-en.pdf?expires=1556708756&id=id&accname=oid029566&checksum=03A8D150F6CD6EDDF1F2219A1089379D,
consultado em abril de 2019.
[8] Institute of Fiscal
Studies, The impact of undergraduate degrees on early-career earnings, https://www.ifs.org.uk/publications/13731, consultado
em abril de 2019.