segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Todo o universo numa tabela de 118 elementos químicos

Ano Internacional da Tabela Periódica


A UNESCO e a IUPAC lançam a 29 de janeiro, em Paris a celebração dos 150 anos da Tabela Periódica dos elementos químicos. Portugal participa nesta celebração em Paris e todo o país se associa com eventos em 12 cidades, envolvendo vários milhares de jovens alunos do ensino básico e secundário que estarão na rua para apresentar tabelas periódicas humanas. No sesquicentenário da proposta original do químico russo Dmitri Mendeleiev, o braço de educação e cultura da Organização das Nações Unidas (UNESCO) e o organismo não governamental internacional de regulação da química (IUPAC) lançaram o Ano Internacional da Tabela Periódica. Em Portugal, a Sociedade Portuguesa de Química assumiu a responsabilidade de organizar esta celebração com um vasto programa que decorrerá ao longo do ano e pode ser consultado em www.aitp2019.pt.
A Tabela Periódica de Mendeleiev deu uma organização aos elementos químicos então conhecidos. É notável como um químico de São Petersburgo, natural de Tobolsk, na Sibéria, nos primórdios da química, pôde ter o rasgo de organizar os elementos conhecidos pela ordem crescente das suas massas atómicas, verificando a notável regularidade de várias propriedades e prevendo a existência de quatro novos elementos apenas pelas lacunas que encontrou na sua tabela. Assim se deram importantes passos no avanço da ciência. Começando por notar a regularidade de algumas observações, o cientista é levado a extrapolar, a prever comportamentos desconhecidos que ficam a aguardar confirmação experimental. Só a verificação da tese proposta leva à aceitação do modelo teórico e ao avanço definitivo para um novo nível de conhecimento. Assim aconteceu com Mendeleiev com a sua comunicação de 6 de março de 1869, em russo, e a publicação numa revista local pouco conhecida. Só a publicação de uma breve nota na revista alemã Zeitschrift für Chemie veio a dar visibilidade e mais tarde reconhecimento a esta proposta.
O Ano Internacional da Tabela Periódica declarado pelas Nações Unidas em 2019 surge na sequência do Ano Internacional da Química em 2011, do Ano Internacional da Cristalografia em 2014 e do Ano Internacional da Luz em 2015 é visto pelas instituições internacionais como um meio de chamar a atenção para as ciências exatas e para a sua enorme relevância na educação dos mais novos. A ideia de que é possível organizar numa tabela simples os 94 elementos existentes na terra e em todo o universo e ainda os outros 24 que já foram criados artificialmente e bem identificados.
A maioria dos átomos dos elementos é criada recorrentemente no interior das estrelas, mas na terra temos de nos contentar com o que recebemos da época primordial da sua formação. Um simples telemóvel contém mais de 30 elementos, alguns muito escassos e difíceis de obter. Se são conhecidos os conflitos militares desencadeados pela riqueza petrolífera, começa a haver ameaças de conflitos internacionais pelo acesso a elementos raros, mas cruciais para as tecnologias modernas.

Os alunos que estão na rua em 29 de janeiro associam-se às celebrações que estão a decorrer em todo o mundo, também para sensibilizar a sociedade para a importância de uma economia circular que use e re-aproveite os elementos químicos.


Todo o universo numa tabela de 118 elementos químicos, in Jornal Público, 29 de Janeiro de 2019
José Ferreira Gomes
Comissário Nacional
Ano Internacional da Tabela Periódica

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

As propinas vão acabar!


O Orçamento de Estado para 2019 estabelece uma redução das propinas pagas pelos estudantes do ensino superior (1º ciclo, mestrado de continuação e mestrado integrado) a partir de setembro de 2019. É uma boa notícia para os estudantes e, especialmente, para as famílias que pagavam um valor anual que, conforme as instituições variava entre 870€ e 1063,46€. Esta redução representa a oferta de um café diário a cada estudante. Para as instituições significa a perda de uma receita anual de cerca de 40 M€, de acordo com as receitas de propinas previstas nos orçamentos submetidos pelas universidade e institutos politécnicos ao Ministério das Finanças e aprovados pela Assembleia da República. A felicidade de muitos consegue-se assim com pouco dinheiro.
O Governo entusiasmou-se com a ideia e anuncia agora a intenção de prosseguir nesta linha até extinguir as propinas, provavelmente, para todos os estudantes e para todos os ciclos de estudos em data não especificada. Não se sabe se os internacionais também serão atingidos pela benesse. Se há razões para dar esta prenda aos nacionais, também é fácil construir um argumento racional para o fazer aos internacionais que se deslocaram até ao nosso país. No total, a perda de receita seria de “apenas” 339 M€ anuais. Não chega a 0,16% do PIB, uma quantia que não pesará muito no défice, se não for coberta por um pequeno aumento de impostos, talvez no IVA ou no ISP que, sendo pago direta ou indiretamente por todos os portugueses, não será muito sentido por ninguém. São uns míseros 33 € por cada português!

Receita de propinas orçamentadas pelas instituições de ensino superior para 2019



Porque terão então governos de várias cores políticas lutado para instituir uma lei de partilha de custos do ensino superior entre os estudantes e todos os portugueses? Porque estaríamos a pedir aos estudantes para pagarem cerca de 25% do custo da sua educação superior (esquecendo o investimento em edifícios escolares, cantinas, residências, etc)? De facto, só o pedíamos a 75% dos estudantes porque os outros beneficiavam de bolsa de ação social cobrindo pelo menos as propinas. Tem direito a este apoio um estudante filho único em que o pai e a mãe aufiram um salário de 861 € ou menos. Note-se que este valor é superior à mediana dos salários em Portugal. Uma família mediana tem direito a bolsa de estudos. Havendo ainda situações delicadas, porque terá o governo permitido que a despesa executada com bolsas de ação social tenha vindo a diminuir desde 2015?
É falso que tenhamos um grande atraso no acesso ao ensino superior. É verdade que temos emigração de diplomados pelo ensino superior. (Apesar da baixa do desemprego, temos uma taxa de emigração de diplomados análoga à taxa de emigração de não qualificados.) É falso que condição económica seja uma barreira estatisticamente significativa à entrada no ensino superior. Mas é verdade que as condições económicas determinam o insucesso/abandono do ensino secundário que é altíssimo. A percentagem de jovens que terminam o secundário pela via científico-humanística está alinhada com outros países, e continua a subir. A via profissional foi assumida muito tardiamente e está ainda muito longe do objetivo de diplomar metade da coorte jovem. Este é o nosso enorme atraso. Deixamos que perto de 30% dos nossos jovens terminem a escolaridade obrigatória sem um diploma que lhes permita continuar estudos ou entrar no mercado de trabalho. Com a escolaridade obrigatória até aos 18 anos, não podemos abandonar tantos jovens à futura marginalidade económica e, provavelmente, social.
Ao longo da vida deste governo diminuiu a despesa executada anualmente pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia; diminuiu a transferência para as instituições, não compensando totalmente os aumentos de encargos impostos por lei; diminuiu a despesa com Ação Social. Tudo isto aconteceu numa fase de expansão das economias europeias. Quando começam a ser visíveis os sinais de esgotamento desta fase expansionista, este mesmo Governo dá-se conta que pode aumentar a despesa com o ensino superior em mais de 30%, isentando de propinas os estudantes oriundos de agregados familiares com salários acima da mediana nacional. E faz isto, repito, sem que haja sinais de que haja abandono significativo no ensino superior por razões económicas. E dá estas benesses enquanto continua a ignorar a iniquidade social do nosso ensino secundário!


segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Políticas de acesso ao Ensino Superior


Resumo
O nosso maior atraso está hoje no insucesso/abandono no ensino secundário (cerca de 30%) e na (ignorada) iniquidade no acesso. A via científico-humanística abrange uma percentagem da coorte (mais de 40%) análoga à de outros países. A criação tardia dos cursos TeSP deprime o indicador de diplomados nos 30-34 anos que passará para mais de 45% quando o seu impacto chegar aos 30 anos. Até 2030, apesar da quebra demográfica, o acesso a licenciaturas via CNA sofrerá uma queda inferior a 5%, que será mais do que compensada pelo prosseguimento de diplomados TeSP.

O formato adotado para esta mesa redonda (Convenção CRUP, 07jan2018) não permite mais que o alinhamento telegráfico de algumas ideias que me parecem mais importantes sobre a situação atual e sobre o que deveriam ser as prioridades da política de acesso ao ensino superior.
1.     Equidade no acesso. Portugal tem um problema de equidade no acesso ao ensino superior, mas este é um tema fora das prioridades políticas e ausente das estratégias das instituições de ensino superior (IES). Todos os estudos mostram uma iniquidade no acesso, quer olhemos para a distribuição dos jovens matriculados no ensino superior, quer façamos a análise por instituição ou por área de educação e formação. Grupos sociais mais frágeis ficam claramente aquém do que poderia ser o seu desempenho (potencial) no ensino superior. Mesmo dentro de um quadro regulatório relativamente rígido, as IES poderiam trabalhar para melhorar a equidade social no acesso aos seus cursos. Tanto ou mais importante, seria o apoio aos estudantes admitidos para atenuar o insucesso e abandono dos mais vulneráveis. Deve ser objetivo do sistema de ensino superior levar cada jovem ao limite do seu potencial sem deixar ninguém para trás, nem um dos mais frágeis, nem um dos mais ambiciosos intelectualmente.
2.     Satisfação das necessidades sociais. Se quantitativamente nos aproximamos dos nossos pares europeus na participação no ensino superior, o crescimento recente parece denotar alguns desajustes entre áreas de educação e formação oferecidas ou preferidas pelos candidatos e a realidade do mercado de trabalho. O facto de a emigração jovem ser semelhante para todos os níveis educacionais pode ser sinal dessa realidade. Poderá ser necessário repensar a oferta tendo em vista a nossa realidade para evitar a frustração que parece já presente em alguns diplomados. Tenha-se atenção ao impacto salarial negativo do ensino superior em algumas instituições ou de algumas áreas educativas, segundo um recente estudo independente inglês.
  
Figura 1. Rendimento salarial aos 29 anos dos jovens ingleses que optaram pelo ensino superior.
Outro problema decorre da necessária coesão territorial onde o sistema de ensino superior tem de trabalhar no reforço dos estímulos para a mobilidade de jovens para as instituições situadas em regiões de baixa densidade populacional, uma política necessária e diferente do injusto e ineficaz simples corte numerus clausus em Lisboa e Porto.
3.     Objetivos quantitativos. É sabido que temos cerca de 40% dos nossos jovens de 20 anos no ensino superior. O objetivo de 40% de diplomados de 30 a 34 anos em 2020, tem sido um argumento principal para a mudança da regulamentação do acesso. Embora uma simples extrapolação deste indicador em anos recentes pareça levar-nos para muito perto do objetivo, o seu recálculo com algumas hipóteses sobre o impacto da emigração jovem veio dar fôlego ao alarme do governo e das IES, como se a estatística fosse mais importante do que a realidade social. Na verdade, as IES têm manifestado uma enorme preocupação com a dificuldade de manterem o ritmo de crescimento a que se habituaram em finais do século passado quando a recuperação do atraso histórico nos levou a um crescimento que chegou aos 14% ao ano. A maioria dos países da União Europeia e da OCDE já atingiram ou vão atingir em 2020 o objetivo de 40% (de diplomados na faixa de 30 a 34 anos) mas incluem já os diplomados por ciclos curtos que estão ainda ausentes em Portugal devido à tardia (2014) criação dos cursos de TeSP (Técnico Superior Profissional).
Figura 2 Diplomados de 30-34 anos (extrapolação para 2020)
4.     Oferta inicial de ensino superior. Um jovem que termine hoje o ensino secundário pode optar por uma de três vias de ensino superior: (i) um ciclo curto de 3 semestres com um 4º semestre obrigatório de estágio para o diploma de TeSP; (ii) uma licenciatura de 6 semestres desenhada para a entrada no mercado de trabalho numa área profissional bem definida ou; (iii) um mestrado integrado de 10 a 12 semestres ou uma licenciatura de 6 semestres desenhado para a continuação de estudos num mestrado de 4 semestres desenhado (em geral) tendo em vista uma área profissional reconhecida. O atraso claro do sistema português está nos ciclos curtos de TeSP que recebem mais de 20% dos estudantes de ensino superior em Espanha e França e bastante mais nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, alguns destes ciclos curtos são desenhados para a transferência de estudantes para cursos mais longos (de 4 anos nos Estados Unidos) mas na maioria dos países europeus esta transição é difícil e rara. Em vários países europeus, os ciclos curtos têm uma entrada mais competitiva do que muitas licenciaturas universitárias. Claramente, temos aqui uma fragilidade a ultrapassar.
5.     A realidade do ensino secundário. O abandono escolar precoce manteve-se muito alto em Portugal até recentemente, devido ao atraso na implementação das vias mais vocacionais. Ainda hoje, em grandes números, temos 45% da coorte (de 18 anos) a terminar a via académica (científico-humanística) e 22% a terminar a via profissional, com 30% de insucesso/abandono neste importante passo da transição para a vida adulta. A cota de jovens a passar pela via académica tem vindo a crescer lentamente. Na via profissional, o crescimento é mais firme, mas pode ser mais frágil por não haver nenhum indicador nacional comparativo da realidade dos resultados atingidos nas diferentes escolas em todo o país. Não é hoje aceitável na Europa que tantos jovens atinjam os 18 anos sem um instrumento para a continuação de estudos ou a entrada no mercado de trabalho, pelo que este problema deveria ser assumido como grande prioridade.

    
Figura 3 Proporção dos jovens que terminam a via académica do ensino secundário em Inglaterra e em Portugal.
6.     Projeção da realidade atual. A projeção da realidade atual para 2030 (antes de quaisquer alterações regulamentares) é sempre arriscada por ser impossível incluir todos os fatores sociais relevantes. Mesmo assim, é um exercício que vale a pena arriscar para avaliar a premência das inovações regulamentares.
a.     Acesso a curso de TeSP. Os ciclos curtos podem aceitar estudantes com qualquer diploma de ensino secundário, mas vão depender do crescimento da via profissional e estão desenhados para este percurso educativo. Cerca de 5% da coorte está a optar por esta via e é expectável que, a exemplo dos países vizinhos, esta percentagem cresça e que este crescimento seja reforçado pela afirmação da via profissional do ensino secundário. Se a via profissional passar dos 22% atuais para mais de 40% da coorte em 2030, poderia esperar-se que 10 a 15% da coorte opte por continuar o percurso num curso de TeSP.
b.     Acesso a licenciatura (e mestrado integrado). O acesso direto a licenciatura (e mestrado integrado) depende, no quadro atual, da conclusão da via científico-humanística já que apenas uma pequeníssima percentagem de jovens da via profissional conseguem mostrar um desempenho comparável nos exames nacionais requeridos no concurso nacional de acesso (CNA). Apesar de pequena, a taxa média de crescimento da percentagem da coorte em condições de se apresentar ao CNA promete um crescimento significativo ao fim de uma década. Adicionalmente, é de esperar que cerca de 20 a 30% dos diplomados TeSP venham a optar pela continuação de estudos numa licenciatura profissionalizante. A resultante destes dois canais de acesso a licenciatura promete manter o número de estudantes em licenciatura ao nível atual até 2030, apesar da grande quebra demográfica que é já conhecida.
Figura 4. Fração dos jovens entrando em cursos de licenciatura (extrapolação)
7.     Comparação internacional. Interessa ler as projeções acima no quadro da realidade em países que já fizeram este caminho de crescimento e afirmação social do ensino superior em toda a sua atual diversidade. O ensino secundário está hoje (quase) universalizado em muitos países, mas é grande a diversidade dos objetivos atingidos. Em Portugal, a diferença entre o nível académico da via científico-humanística e da profissional é enorme, embora esta não tenha ainda qualquer aferição externa à escola. Em França, pouco mais de 40% da coorte termina a via académica, dita geral, a única que leva a um elevado sucesso na universidade. Na Inglaterra a percentagem, dos jovens que terminam o secundário em condições de concorrer a um primeiro ciclo universitário não atinge sequer os 40%. Na Irlanda, praticamente todos os jovens fazem um exame terminal de matemática, mas apenas uns 20% se apresentam ao nível elevado, optando a maioria por um nível ordinário e uns 10 a 12% por um nível básico, muito básico mesmo.
a.     Estados Unidos, Califórnia. Foi estabelecido em 1960 que 40% dos jovens que terminassem o ensino secundário deveriam ter lugar em cursos de 4 anos na University of California (12,5%) ou na California State University (27,5%). Este objetivo mantém-se em vigor ainda hoje. O crescimento da participação no ensino superior tem sido feito pela entrada num Community College, num curso de 2 anos desenhado para transferência para uma das universidades.
Figura 5. Percurso educativo dos jovens na Califórnia.
b.     França. O sistema de entrada nas Grandes Écoles por concurso preparado com um duro e exigente curso de 2 anos em alguns Licées é um sistema único, mas muito seletivo e com uma fortíssima educação clássica. Se as Grandes Écoles são muito seletivas, as universidades estão abertas a qualquer detentor do diploma do secundário. O resultado não é bonito, mas não tem sido fácil melhorá-lo. Os cerca de 40% da coorte que completam o Baccalauréat Géneral seguem em geral para uma Grande École (depois do concurso no fim do curso preparatório de 2 anos) ou uma universidade com razoável garantia de sucesso. Para os outros tipos de Baccalauréat, a opção de uma licenciatura universitária é arriscada, com um insucesso e abandono de cerca de 80%. A alternativa de um ciclo curto seguido de uma eventual licenciatura profissional oferece melhor sorte. Note-se que os ciclos curtos de 2 anos, sejam associados a uma universidade (um Institut Universitaire de Technologie, IUT) ou a um liceu (o Brevet de Technicien Supérieur, BTS) têm um acesso muito competitivo e uma excelente empregabilidade.
8.     Seleção dos candidatos. Como em todos os países, a entrada em alguns cursos terá de ser seletiva e deve ser desenhada de modo a garantir o sucesso dos admitidos. O processo de seriação/seleção deve focar-se na identificação do potencial dos candidatos e ser transparente para que todos compreendam a decisão. Nos países com currículo secundário homogêneo, as suas provas finais (ou outra equivalente) são normalmente usadas. Nos países com currículos diversificados, recorre-se a testes menos dependentes dos conhecimentos específicos próprios de cada currículo. Para os cursos mais competitivos, os exames ou testes nacionais podem não ter a necessária elasticidade de avaliação e muitas instituições estão a usar testes próprios de competências. No primeiro grupo está o sistema de A-levels britânico e a selectividad espanhola. O melhor conhecido segundo caso é o dos Estados Unidos onde, a inexistência de um currículo nacional, e uma forte diferenciação das missões das universidades levou à universalização dos testes. (O teste SAT do College Board é usado anualmente por mais de 2 milhões de jovens, uma percentagem da coorte semelhante à que se apresenta em Portugal ao CNA.) Em todos os casos, a opção de via terminal do ensino secundário determina o espaço de escolha de entrada no ensino superior.
9.     Seriação em Portugal. O concurso nacional de acesso (CNA) é um resquício do tempo (não tão distante) em que ensino secundário significava “ensino liceal” totalmente homogéneo. Com a diversificação do ensino secundário e a possível flexibilidade curricular, pode ser necessário encontrar outra metodologia. Hoje a via de acesso pelo CNA é complementada por um sistema de concursos locais por onde são admitidos em licenciaturas cerca de 1/3 dos estudantes. São em geral as menos competitivas onde o teste deve avaliar apenas o potencial de sucesso do candidato e a seriação é menos importante. A admissão em cursos de TeSP está nesta segunda categoria.
a.     A plena transparência do acesso exigiria um sistema autónomo de avaliação do potencial dos candidatos a cada tipo de oferta inicial, cursos TeSP, licenciaturas profissionalizantes e licenciaturas para continuação de estudos. Uma autonomização do CNA em relação ao ensino secundário, retomando um processo já testado e abandonado, iria criar novas dificuldades no percurso dos alunos que iriam dar menos atenção aos mecanismos de aprovação final do secundário, para se focarem no novo CNA. Para os cursos mais competitivos, esta autonomização é urgente para evitar a quase aleatoriedade da seriação num intervalo demasiado estreito de classificações. Para a maioria dos cursos, esta inovação seria cara e arriscada, quer no processo, quer nos resultados.
b.     Para os alunos que frequentam sistemas estrangeiros de ensino secundário, existe um sistema de equivalência de classificações que é totalmente arbitrário e pode ser muito favorável e incentivador destes percursos alternativos. Um CNA menos dependente do currículo nacional poderia ultrapassar este problema, mas não é fácil. Pondo-se o problema sobretudo para a medicina, o mais simples e natural seria substituir ou complementar o CNA por um dos testes internacionais hoje disponíveis para este curso.
c.     Para os percursos especializados, especialmente o ensino artístico, o problema é de grau e não essencial porque o currículo nacional deve ser respeitado, embora os alunos sejam chamados a dar mais atenção a projetos específicos. O mais natural seria que os cursos alinhados com o percurso artístico adotassem um acesso dependente de exames do ensino secundário com uma componente adicional que premiasse as competências especiais destes alunos.
10.  Conclusão. Apesar da quebra demográfica, a procura de ensino superior deve manter-se nos próximos anos com um provável crescimento de cursos TeSP. Mantendo-se a procura direta de licenciaturas, teremos de dar atenção aos estudantes que pretendam migrar de cursos de TeSP (terminado ou não), reforçando a sua formação em áreas de maior fragilidade.
Figura 6 Número de estudantes do ensino superior (extrapolação)
O mecanismo de seriação de candidatos continuará a ser muito relevante em medicina e em alguns poucos outros cursos onde o processo ganharia com a introdução de testes específicos. Para mantermos a credibilidade e o prestígio social dos nossos diplomas e graus académicos, interessa reforçar a sua qualidade e garantir o rigor na avaliação do potencial dos candidatos. O CNA tem garantido elevados padrões que interessa manter, o que não impede o alargamento do acesso a outros públicos e o crescimento acompanhado da diversificação dos objetivos.

[Apresentado à Convenção do Ensino Superior, CRUP, 7 de janeiro de 2019]

Notas:
1.     Equidade no acesso. Ao contrário da maioria dos países europeus e norte-americanos, este é um problema ausente da nossa discussão pública, apesar de estar bem identificado.
2.     Satisfação das necessidades sociais. O serviço de educação superior existe para satisfazer uma necessidade social que tem de ser continuamente avaliada. Ainda que o ensino superior não possa ser desenhado para satisfazer exclusivamente a procura estudantil, por um lado, ou as necessidades do mercado de emprego (atual), pelo outro, os países têm dado uma atenção crescente à frustração criada nos jovens pelos desajustes existentes. Mariano Gago assinalou claramente esse problema na conferência proferida na OCDE, a 17 de setembro de 2012, bem fixado na visão do artista residente. Note-se que esta conferência foi proferida tendo ainda bem presente o impacto da chamada Primavera Árabe.
Figura 7. Mariano Gago em 17/dez/2012, conferência da OCDE sobre o Ensino Superior, Paris.
Um muito recente e polémico estudo inglês por uma instituição independente, o Institute of Fiscal Studies (https://www.ifs.org.uk/uploads/publications/comms/DFE_returnsHE_exec_summary.pdf), assinala que a frequência do ensino superior pode ter um impacto negativo no rendimento salarial dos jovens. Neste estudo, é considerado o universo dos jovens de 18 anos com um desempenho escolar que os qualifica para entrar na universidade e comparam o seu rendimento salarial 11 anos depois. Verificam que a opção pela entrada em certas universidades (e também a opção por algumas áreas de conhecimento) tem um impacto negativo no rendimento aos 29 anos.
Figura 8. Impacto salarial aos 29 anos da opção pelo ensino superior.
3.     Objetivos quantitativos. O objetivo de 40% de diplomados (30-34 anos) em 2020 tem sido usado em Portugal como razão principal para expandir o acesso ao ensino superior. Interessa notar que, já no quadro atual, não ficaremos longe desse objetivo e que até o ultrapassaríamos se considerássemos o efeito (ao nível atual de cerca de 5% da coorte) dos diplomados TeSP. Estes não são contabilizados porque a sua criação recente (2014) não permitirá ainda o seu impacto naquele indicador e os antigos CET não satisfaziam os requisitos do Eurostat e da OCDE.
Figura 9. Impacto dos diplomados TeSP (ao nível atual de 5% da coorte) no indicador de diplomados.
4.     Oferta inicial de ensino superior. Interessa clarificar a oferta inicial de ensino superior em função da duração nominal do percurso de 3 semestres e estágio (curso de TeSP), 6 semestres para uma licenciatura desenhada para entrada imediata no mercado de trabalho e 10 a 12 semestres para um mestrado integrado ou uma licenciatura desenhada para a continuação de estudos num mestrado. Em comparação com muitos países, o nosso atraso está nos TeSP que atingem 20 ou 30% dos estudantes de ensino superior em Espanha e França e representam 2/3 dos estudantes nos Estados Unidos. Entre nós, recebem cerca de 5% da coorte e (quase) não existe ainda oferta pública em Lisboa e no Porto.
5.     A realidade do ensino secundário. O nosso ensino secundário acumulou um atraso enorme no lançamento da via profissional, o que gera ainda hoje um insucesso/abandono próximo dos 30% da coorte. Até 50% da coorte farão um exame final de matemática (A, B ou MAC) o que deve ser comparado com a Irlanda onde 97% da coorte faz um exame de matemática aos 18 anos. Isto significa que quase toda a população se mantém no sistema educativo e que o seu desempenho é avaliado por testes nacionais. Em Inglaterra, cerca de 38% (https://www.hepi.ac.uk/wp-content/uploads/2018/03/HEPI-Demand-for-Higher-Education-to-2030-Report-105-FINAL.pdf) da coorte de 19 anos atingiu os padrões de acesso à universidade, inferior aos mais de 40% atingidos em Portugal. Em França, a via geral (académica) que dá uma expectativa de sucesso na universidade é atingida por 41,5% (http://www.education.gouv.fr/cid55597/resultats-definitifs-de-la-session-2017-du-baccalaureat-79-d-une-generation-est-titulaire-du-baccalaureat.html) da coorte. Em Espanha, apenas a via académica do secundário dá a preparação para o exame de entrada na universidade. Os alunos das vias profissionais do secundário são encaminhados para ciclos curtos (Técnico Superior ou Grado Superior de Formación Profesional, em Espanha) ou ciclos curtos seguidos de licences profissionelles (em França). Quando aberto o acesso a licenciaturas, o insucesso é demasiado alto, cerca de 80% em França. (É esta a razão para a atual política de reforma do acesso em França.)
6.     Projeção da realidade atual. Na extrapolação para 2030 da tendência do acesso registada no último decénio consideramos as seguintes hipóteses. Para os cursos TeSP, partimos da realidade atual e admitimos (i) um crescimento lento da opção pela via profissional para atingir cerca de 45% em 2030, enquanto a via científico-humanística mantém a tendência de crescimento lento da última década; (ii) que a percentagem dos detentores do diploma profissional que prosseguem para um curso TeSP progrida dos 20% atuais para cerca de 30% em 2030; (iii) que o sucesso final nos cursos de TeSP será de 2/3 da entrada e que 1/3 destes optem por continuar imediatamente o seu percurso educativo para uma licenciatura. Estas hipóteses parecem bastante conservadoras.
Figura 10. Extrapolação linear da percentagem da coorte que conclui o ensino secundário.
Com esta parametrização, obtém-se o resultado na Fig. 4, segundo a qual é previsível que o número de jovens acedendo a licenciatura nas universidades e institutos politécnicos portuguesas resista à queda demográfica da próxima década.
7.     Comparação internacional.
a.     Estados Unidos. As variações entre estados são grandes. O caso do estado da Califórnia é o mais estudado, especialmente o chamado Master Plano of Higher Education de 1960 (http://www.lib.berkeley.edu/uchistory/archives_exhibits/masterplan/MasterPlan1960.pdf) e as sua aplicação ao longo dos 60 anos seguintes. Na avaliação feita aquando da celebração dos 50 anos do plano, foi decidido manter as normas indicativas anteriores, mas incentivar o crescimento dos cursos de 2 anos (em Community Colleges) que preparam os estudantes para transferência para a California State University ou mesmo para a University of California. O número de transferidos tem crescido substancialmente. Note-se que apenas 12,5% dos diplomados pelo ensino secundário encontram lugar num curso de 4 anos em ambiente de investigação na University of California.
b.     França. Segundo os dados disponíveis mais recentes, (https://publication.enseignementsup-recherche.gouv.fr/eesr/8/EESR8_ES_11-les_etudiants_en_formation_dans_l_enseignement_superieur.php), cerca de 16% da coorte obtinha uma licenciatura e um mestrado a que devemos adicionar 4% com um diploma de engenheiro (por uma Grande École). O ciclo curto era completado por mais de 21% da coorte, sendo que 6% prosseguiam para a Licence professionelle. Note-se que esta licenciatura profissional foi criada para o prosseguimento de estudos dos diplomados com um ciclo curto, mantendo a diferenciação em relação à licenciatura universitária.

Figura 11. Número de diplomas de ensino superior atribuídos em Franç.
8.     Seleção dos candidatos. A discussão em Portugal tem-se centrado na (i) suposta necessidade de alinhar o CNA com a preparação dos estudantes que optaram pela via profissional do secundário e (ii) nos danos causados ao ensino secundário pela relevância dos exames finais que servem também no acesso ao superior. É importante relevar que estes são falsos problemas e as suas soluções simplistas podem prejudicar gravemente o sistema de ensino superior. (i) Os alunos que optam pela via profissional no 10º ano de escolaridade têm por objetivo a entrada no mercado de trabalho e a dupla certificação que obtêm no 12º tem esse fim. Não há provas finais de avaliação externa das aprendizagens destes alunos e, se alguns têm a sua qualidade demonstrada no mercado de trabalho, muitos outros estão num limbo que nunca teve uma verdadeira avaliação. Não tem de ser assim. Outros países fazem uma avaliação externa que permite avaliar as aprendizagens e o sucesso profissional dos diplomados. Em relação ao acesso au ensino superior, estes diplomados pela via profissional têm aberta a entrada em cursos TeSP por concurso local. A sua preparação em áreas básicas, desde a matemática ao português é, em geral, muito distante da conseguida pelos alunos da via científico-humanística. O seu acesso a licenciatura (sem um esforço adicional) só pode resultar num elevadíssimo e frustrante insucesso (como acontece em França) ou num abaixamento do nível das licenciaturas (como poderia estar a ocorrer entre nós em cursos de licenciatura maioritariamente alimentados por candidatos oriundos de CET). Haverá certamente alunos que optaram pela via profissional aos 15 anos e querem depois prosseguir estudos: poderão fazê-lo e cabe às escolas secundárias criar um ambiente de apoio que lhes permitia mudar de percurso. Aqueles que optem pela entrada num curso de TeSP, têm também a opção de prosseguir numa licenciatura, esperando-se uma avaliação rigorosa do seu potencial de sucesso no concurso local de entrada na licenciatura. (ii) Os supostos danos causados na vida escolar secundária pela pressão dos exames finais é inultrapassável e ocorre em todos os países. Se porventura o ensino superior criasse uma prova autónoma de seriação para o acesso, o problema agravar-se-ia porque os alunos dariam ainda menos atenção aos conteúdos do secundário para prepararem a prova de acesso.
9.     Seriação em Portugal. Temos de reconhecer que o CNA é um resquício do tempo não muito distante em que a grande maioria dos alunos que passavam além do ensino básico (9º ano) tinham a intenção de prosseguir estudos no ensino superior tradicional e a via académica (antiga liceal, agora denominada “regular” ou científico-humanística) era a única relevante. Temos também de reconhecer a seriedade dos exames finais do secundário que propõem um desafio considerável a muitos jovens. Já assinalámos que a percentagem da coorte de 18 anos que ultrapassa esta barreira é semelhante (ou superior) à que ultrapassa a barreira de exigência do acesso às licenciaturas noutros países. Não devemos perder esta comparabilidade de vista. Para o acesso a cursos mais competitivos (de que a medicina tem sido o paradigma), temos de reconhecer que os exames finais do secundário não têm o necessário potencial de discriminação entre os candidatos. O mesmo ocorre noutros países onde a seriação para acesso aos cursos mais competitivos começou a ser feita com testes especializados. (É o caso, entre muitos outros, do Biomedical Admission Test  de Cambridge https://www.undergraduate.study.cam.ac.uk/applying/admission-assessments que já foi adotado em muitas outras universidades.)
10.  Conclusão. A previsão de catástrofe imediata no acesso às universidades e, por isso, na sobrevivência das próprias instituições parece incorreta. Mas não se deixa de reconhecer a existência de problemas que merecem atenção. O condicionalismo e a seriação de acesso justificam-se para garantir a qualidade do ensino superior e o sucesso dos estudantes admitidos. Para esse fim, o teste de seriação deveria ser mais alinhado com a realidade da proposta do ensino superior. Na maioria dos países, o pragmatismo (ou a simplificação dos procedimentos) leva que o ensino superior considere os resultados do ensino secundário, pelo menos como ponto de partida. Muitos estudos têm mostrado um boa correlação entre este nível de entrada e o sucesso no superior, mas há falhas óbvias nos cursos que trabalham com um intervalo de classificações muito estreito. (Se admitirmos, que o desvio padrão da classificação de um aluno em exame é de 1 valor, não poderemos esperar que diferenças de classificação de entrada inferiores possam mostrar qualquer capacidade de discriminação.) A classificação interna (da escola, usando todo o percurso do aluno) poderia ser um melhor preditor, mas só poderia ser usada depois de uma normalização das classificações entre escolas e até entre professores, o que não é viável. Por esta razão, não é usada também noutros países. Se admitirmos que a flexibilidade curricular ou a dispersão de objetivos entre as diversas vias é relevante, então deveríamos criar um teste de seriação para a entrada em cada área de conhecimento, em cada tipo de ensino superior inicial. Talvez seja prematuro, mas há que pensar nesta alternativa para futuro.

[Notas de apoio à minha intervenção na Convenção do Ensino Superior, CRUP, 07jan2019, ISCTE-IUL (Lisboa)]