A responsabilidade
pela aceitação de novos estudantes é, em geral, remetida para as instituições
de ensino superior. Apesar disso, em muitos países, existe um sistema
centralizado, nacional ou regional, que garante alguma transparência no
processo e facilita a candidatura dos estudantes a várias instituições.
Enquanto as vias mais vocacionais/profissionais de ensino superior tendem a ser
muito locais ou regionais, a via académica mais tradicional ambiciona a receber
os estudantes com melhor desempenho escolar e estes a ser aceites na
instituição de maior reconhecimento nacional ou internacional.
O acesso ao ensino
superior é um tema de permanente interesse em todos os
países pelo impacto que tem no futuro dos candidatos e na vida das
instituições. Em Portugal, tem merecido alguma atenção que foi recentemente
renovada pela discussão aberta por um relatório de avaliação encomendado pelo
Governo. A qualidade dos cursos e das instituições depende muito dos estudantes
que conseguem atrair, o que faz depender a discussão do modelo organizacional do ensino superior
do sistema de acesso. A atenção da opinião pública tem estado demasiado focada
no Concurso Nacional de Acesso (CNA) por ser
o canal “normal” de acesso dos alunos que terminam o secundário pela via mais
académica tradicional, a científico-humanística (CH), mas os outros canais de
acesso e de transferência ou mudança de curso são também importantes e têm
algumas vezes servido para frustrar as normas formais e mais transparentes do
CNA.
Do ponto de vista das
políticas nacionais de educação superior, o objetivo do sistema de acesso é
atingir a máxima satisfação da ambição de todos os cidadãos que tenham
condições para ter sucesso num percurso educativo superior, apoiando cada
candidato para um curso onde possa ser bem sucedido. Adicionalmente, deverá
considerar-se a evolução da economia e da sua necessidade de quadros
qualificados ou da sua capacidade de absorção de diplomados superiores. Do
ponto de vista de cada instituição de ensino superior, a política de admissão
de novos estudantes deve atender aos seus meios materiais e humanos para
definir o número máximo de candidatos a admitir, impondo-se sempre a condição
de que só sejam admitidos candidatos que se possa prever terem condições de
sucesso no percurso educativo a que se propõem. Quando o número de candidatos
admissíveis exceda o número de vagas, deverá seriar os candidatos de acordo com
o seu potencial previsível de sucesso no programa que se propõem seguir. As
melhores universidades de investigação são, em geral, muito seletivas para garantir
que recebem os intelectualmente mais aptos a participarem em programas de
grande ambição. Do ponto de vista do candidato à educação superior, ele
escolherá a instituição e o ciclo de estudos que melhor corresponda ao seu
plano de vida e de desenvolvimento profissional, dentro das eventuais
constrições financeiras. A informação de que dispõe enquanto candidato é sempre
muito limitada, quer no que respeita à natureza da instituição/ciclo de estudos
que melhor pode contribuir para o seu objetivo, quer à sua autoavaliação do
potencial próprio e da atividade ou atividades que poderá
vir a desempenhar no futuro fazendo, de alguma forma, uso da experiência
educativa a que se propõe. Apesar do esforço que instituições e reguladores
nacionais fazem para melhorar a informação disponibilizada aos candidatos, esta
assimetria de informação sempre limita a racionalidade da decisão do estudante
e leva as instituições a procurar fatores de diferenciação e de posicionamento
no “mercado” que todos têm de reconhecer são distantes do interesse direto do
candidato a um curso de graduação inicial. São disso exemplo a despesa das
universidades americanas com equipas profissionais nos desportos com maior
reconhecimento público ou a enorme despesa de algumas instituições privadas com
publicidade direta, vazia de conteúdo informativo relevante. Os rankings
nacionais e internacionais são usados pelas instituições para defenderem o seu
posicionamento embora todos conheçam as suas imensas limitações por se basearem
em informação de muito má qualidade e pouco comparável e numa perceção de
prestígio que se auto alimenta. Melhores são os sistemas de informação
nacionais que muitos países oferecem aos seus estudantes onde são usados
indicadores quantitativos validados. Os sistemas de avaliação oficial de cursos
e instituições não estão pensados para esta função mas apenas para proteger o
“consumidor” de ofertas educativas consideradas abaixo de um nível mínimo de
qualidade. Para muitos estudantes conta o desafio mais difícil. O curso/instituição
onde é mais difícil ser aceite é aquele a que vale a pena concorrer.
Mesmo países de grande
tradição de autonomia universitária têm sistemas nacionais de acesso por razões
práticas (evitando que cada candidato tenha de fazer várias candidaturas
independentes e com formatos diferentes) e para garantir a máxima transparência
em todo o processo, permitindo ao candidato a melhor compreensão das razões de
aceitação ou rejeição por cada instituição. Se isto é em geral verdade para os
sistemas universitários, tende a ser muito simplificado nas instituições de
ensino superior de objetivo mais vocacional onde a procura estudantil tende a
ser mais regional. O que poderá ser uma singularidade portuguesa é termos uma
mesma seriação utilizada para o acesso a dois sub-sistemas de ensino superior.
No caso do Reino Unido, a UCAS é uma instituição
independente que resultou da fusão das que existiam para a admissão a
universidades e a politécnicos antes da unificação de 1992. E até podemos ver
que a redução do número de candidatos admitidos a Oxford e Cambridge não
resultou nem provocou uma crise. No caso espanhol, um enquadramento nacional
único deixa algum espaço de autonomia a cada região autónoma que organiza o seu
próprio sistema de acesso às universidades que financia.
O canal de acesso mais
conhecido em Portugal é o Concurso Nacional de Acesso (CNA) que, com muitos
ajustes ao longo dos anos, mantém uma forte memória de um ensino secundário de
via única, a científico-humanística (CH), e de um único tipo de ensino
superior, o universitário. Pelo número de estudantes envolvidos, é uma peça
noticiosa de grande impacto aquando da divulgação dos resultados em princípios
de Setembro de cada ano. É dessas notícias que perdura uma imagem do sistema de
ensino superior estatal: algumas universidades com forte procura; muitos cursos
desertos ou quase desertos; muitos institutos politécnicos com tão poucos
estudantes que "deveriam ser extintos de imediato"! Esta é a mensagem
que passa para o público e poucos saberão que é falsa, que a maioria dos cursos
desertos irão receber muitos estudantes por outros canais de acesso.
Em aberto está a questão
de melhorar o sistema de acesso ao ensino superior, de afinar melhor o
compromisso entre os interesses em jogo, da sociedade, das instituições e dos
candidatos. Em comum, haverá acordo quanto à necessidade de melhorar o sucesso
académico, avaliando melhor o potencial dos estudantes para cada ciclo de
estudos a que se candidatam e de o fazer de uma forma transparente para que
todos os parceiros possam compreender os benefícios de fazer a escolha “certa”.
O nosso sistema de
acesso tem uma considerável complexidade, resultando de uma longa evolução
legislativa e regulamentar e de limitações práticas nem sempre expressas.
Embora legalmente a responsabilidade da seleção e aceitação dos estudantes
caiba às instituições de ensino superior, a sua influência no CNA limita-se a
dar alguma indicação sobre a forma de construir uma nota de candidatura e,
mesmo isso, teve novas limitações por um despacho ministerial de 2009 que impôs
a exigência de nota positiva nos exames de matemática e física para a maioria
dos cursos de ciências e engenharia.
O acesso ao curso de
primeira escolha aparece aos candidatos como prémio de bom desempenho nos
exames finais do secundário, exames exclusivamente focados na demonstração dos
conhecimentos adquiridos. Neste modelo, o percurso do aluno é focado no exame,
secundarizando tudo aquilo que não parece relevante para a obtenção da
classificação desejada. O ensino torna-se muito rígido e o treino das
questões-tipo dos exames é demasiado valorizado. Sendo o primeiro objetivo de
muitos alunos e dos pais a obtenção de uma classificação no exame, algumas
escolas privadas focam-se quase exclusivamente neste desiderato, secundarizando
todos os outras disciplinas e atividades que fazem parte da saudável
experiência educativa de um jovem. O prestígio da escola mede-se pelas notas
dos alunos que apresenta a exame e pelo número de admitidos a medicina ou
arquitetura. Tudo o resto é secundarizado. Mais de metade dos jovens não optam
pela via científico-humanística CH e nada sabemos sobre o trabalho feito pelas
escolas com estes jovens!
O
CNA foi desenhado para fazer a seleção dos candidatos aos cursos universitários
e tem sido razoavelmente consensual. Sendo um tema muito mediático pelo seu
impacto na vida de estudantes e famílias, alguns problemas têm vindo a
discussão pública:
- As classificações internas atribuídas pelas escolas são valorizadas por resultarem de uma avaliação feita ao longo do percurso estudantil por professores que conhecem bem o aluno, mas têm sido levantadas suspeitas de que há espaço para o favorecimento de alguns, o que parece demonstrado pela comparação estatística entre as classificações internas e as obtidas pelos mesmos alunos nos exames. Só recentemente foram divulgados pela DGEEC estudos que evidenciam estes comportamentos de algumas escolas e, esta simples divulgação, poderá estar a provocar a sua correção (ver comentárioaqui). A introdução de algum instrumento corretivo que no futuro penalize os candidatos oriundos de escolas estatisticamente mais folgadas nas classificações atribuídas poderá ser suficiente para corrigir esta anomalia por simples funcionamento do mercado, nunca chegando a ser efetivamente usado. As famílias teriam receio de que o seu educando viesse a ser penalizado por frequentar determinada escola. Infelizmente, casos de eventual favorecimento individual isolado são possíveis e não são detetáveis.
- A distribuição das classificações atribuídas em exame varia muito ao longo do tempo. A média das classificações pode variar mais de 2 valores (em 20). É atrativo pensar numa normalização das classificações, mas esta técnica viria a dar ao resultado um valor arbitrário e manipulável que, provavelmente, seria socialmente mal-aceite. Acresce que, no modelo atual, as provas de 1ª e de 2ª chamada acolhem um público estudantil muito diferente e dificilmente se poderia justificar dar o mesmo tratamento estatístico aos dois universos de alunos. Hoje, a classificação mínima de 10 em física e matemática é o limiar de aceitabilidade de candidatos à maioria dos cursos de engenharia. Algumas universidades já exigiram 12 de nota mínima como sinal da sua maior ambição, mas deixaram cair esta exigência logo que ela começava a ser relevante por quebra do número de candidatos. A normalização para média 12 como sugerido (no exemplo apresentado) representaria um grande relaxamento do padrão de exigência que tem sido normalmente seguido ao longo de muitos anos para os cursos de ciência e tecnologia. Tecnicamente, é atrativo pensar numa solução mas dificilmente será bem aceite e deixará de ser usada para relaxar os padrões de exigência. Poderemos acreditar que o IAVE consegue ainda melhorar a calibração interna dos testes aplicados?
- Todos os estudos internacionais mostram que o sucesso escolar no secundário é o melhor preditor do sucesso no ensino superior, embora muitos outros fatores do contexto tenham um impacto relevante. O maior capital económico e educativo das famílias está fortemente correlacionado com os resultados escolares e poderá ter um efeito adicional sobre o sucesso no superior[1]. Quando não existe um currículo nacional como acontece nos Estados Unidos da América, é impossível desenhar testes de conhecimentos e recorre-se a testes de competências. Os resultados não deixam de estar correlacionados com o estatuto social das famílias.
A ampliação do espetro
social dos candidatos ao ensino superior tem merecido muita atenção dos
responsáveis políticos em alguns países. Têm sido usados instrumentos de
financiamento das instituições de ensino superior para premiar a melhor
representação de certos grupos identificados como mais desfavorecidos em cada
país. Em alguns casos chega-se a mecanismos de simples discriminação positiva
no acesso com o risco de que muitos destes novos estudantes venham a ser
vítimas de insucesso e a sofrerem a correspondente penalização social. Noutros
casos, deixa-se às instituições a afinação de sistemas de acesso mais complexos
em que o desempenho escolar histórico é complementado com outros elementos de
modo a tendencialmente admitir um conjunto de candidatos que venham a
demonstrar maior representatividade social e homogeneidade quanto ao seu
potencial de sucesso. A Austrália é há bastantes anos um laboratório de
políticas de ensino superior onde o alargamento do acesso a grupos sociais
minoritários tem merecido muita atenção. Também no Reino Unido, a pressão
política e de financiamento é contrabalançada pela preocupação das instituições
de garantirem que vão receber os candidatos com melhor potencial para
responderem aos desafios que lhes são propostos. Para a Medicina, um teste
especial[2]tem ganho aceitação em universidades australianas,
inglesas, irlandesas e polacas. Cambridge desenvolveu um teste especial, o Thinking
Skills Assessment que hoje é usado por Cambridge, Oxford e o
University College London. Estes são alguns exemplos do esforço que está a ser
feito para complementar a informação relativa ao desempenho dos candidatos no
ensino secundário e para melhorar a representação dos grupos socialmente
desfavorecidos. Vários países têm experimentado o desenvolvimento de programas
curtos de reforço da preparação dos estudantes que terminam o secundário para
acederem ao superior. É, tradicionalmente, o caso de muitos cursos dos
Community Colleges americanos que oferecem a transferência para universidades
aos estudantes que escolham programas especiais desenhados para esse efeito. Na
Irlanda tem sido feito um grande esforço para a oferta cursos de preparação
para o ensino superior. Na tradição germânica, são definidos vários percursos
desde relativamente cedo e o acesso ao ensino superior é feito de forma
autónoma conforme se trate da via académica universitária, da via profissional
(politécnica ou, em inglês, em university of applied sciences) mas
há alguma flexibilidade na mudança de percurso.
Como ficou dito acima, a
ausência de um currículo nacional do ensino secundário levou a que nos Estados
Unidos da América a seleção de entrada no ensino superior se baseasse
universalmente num teste[3] não alinhado com os conteúdos do
secundário. A entrada nos cursos de pós graduação exige também um teste[4] que
procura avaliar o potencial dos candidatos para áreas de conhecimento muito
diversas.
Consideremos finalmente
as propostas feitas no (sumário executivo do) Relatório sobre a Avaliação do Acesso ao Ensino Superior de
outubro de 2016 preparado por um grupo de trabalho de alto nível coordenado
pelo Prof. João Guerreiro.
- Criação de uma via de acesso ao ensino superior para os diplomados em cursos secundários profissionalizantes. Embora devamos admitir que os alunos que optam por uma das vias vocacionais do ensino secundário têm a intenção de entrar de imediato no mercado de trabalho, é importante manter aberta a possibilidade de decidirem prolongar o seu percurso educativo, a exemplo do que acontece na generalidade dos países. Com o reforço e a clarificação das vias profissionalizantes do ensino superior, estão criadas condições para melhorar o alinhamento do percurso destes jovens na passagem do secundário para o superior. Isto pode ser feito sem desresponsabilizar o jovem pela construção do seu percurso educativo nem a escola pelo apoio que tem de dar aos seus alunos para poderem escolher (e terem sucesso) num de vários percursos futuros.
- A situação dos jovens que tenham optado por um curso artístico especializado é semelhante no sentido de eles terem optado por um percurso onde são reforçados saberes e competências que exigem um desenvolvimento precoce. No ensino superior, há licenciaturas de ensino politécnico e licenciaturas e mestrados integrados do universitário que estão bem alinhadas com esta formação prévia. Tem sido apontado o conflito potencial de se fazer a seriação baseada no CNA, favorecendo aparentemente os alunos que seguiram a via CH. Baseando-se o CNA nos exames da via CH do secundário, este tipo de conflito aparente manter-se-á sempre. Não é possível dizer se hoje os candidatos oriundos da via artística especializada estão a ser favorecidos ou prejudicados pelas regras de formação da nota de acesso. O mesmo se pode dizer dos alunos oriundos de um sistema de ensino secundário estrangeiro, especialmente das escolas estrangeiras em Portugal. Não há forma demonstravelmente justa de seriar alunos com percursos diferentes, com classificações obtidas em provas finais diferentes, com programas diferentes e com culturas de classificação diferente. Só a introdução de um novo tipo de prova pode atenuar o problema.
- O acesso aos TeSP. É prematuro discutir um concurso nacional de acesso a este novo tipo de ensino superior e podem aduzir-se bons argumentos para que a seleção e admissão de estudantes seja sempre feita localmente. A procura deste tipo de ensino superior é, na generalidade dos países, muito local ou regional porque a oferta está mais dispersa pelo território e os cursos oferecidos estão muito sintonizados com as necessidades e a especialização regional. A menos de um teste geral de competências para este tipo de ensino superior, o processo de avaliação e de seleção pode ser local e as dificuldades emergentes da candidatura de alguns estudantes a várias instituições de ensino superior não estão ainda provadas.
[1] Alguns
estudos publicados em Portugal referem-se a um
curso ou uma universidade e são em geral
limitados na amostra e na análise multifatorial de um problema complexo e ainda
mal compreendido.
[2] O GAMSAT, Graduate Medical School
Admissions Test, é usado em muitas universidades australianas e tem vindo a
ganhar aceitação na Europa, nomeadamente no Reino Unido, na Irlanda e na
Polónia.
[3] O SAT
foi introduzido em 1926 com a designação de Scholastic Aptitude Test e tem evoluído ao
longo dos anos. É da responsabilidade de uma instituição sem fins lucrativos, o
College Board.
[4] O GRE, Graduate Record Examination que tem
secções verbal, quantitativa, de escrita e experimental, esta com questões que
vão ser avaliadas para uso futuro. É administrado desde 1949 por Educational Testing Services.
Sem comentários:
Enviar um comentário