A presente legislatura apresenta enormes desafios ao governo, um governo em
maioria relativa tendo sempre de negociar votos. Um parlamento muito dividido e
com três grandes bancadas em competição por uma oportunidade de ganharem
com uma próxima eleição. Medidas estruturantes correm sempre o risco de serem
adulteradas pela competição para a satisfação de fações do eleitorado numa visão
de curto prazo. Dificilmente serão ultrapassadas as lógicas da popularidade
imediata. Nesta situação, o governo está obrigado a uma gestão furtiva da
realidade.
Depois da rotura financeira de 2011, passaram-se 13 anos de surpreendente
sabedoria financeira, mesmo do lado parlamentar normalmente mais avesso a
essa prudência. Essa fase parece ter terminado com o excedente orçamental de
2023, algo que já não se via desde os tempos do outro senhor, no pré-25 de abril. A
euforia daí resultante abriu novas expectativas a todos os grupos sociais
dependentes do estado. Ligando esta realidade à quebra do investimento público
nos últimos anos, dificilmente será agora contida a competição das várias
corporações, sempre invocando a melhoria de um estado social que chegou à
rotura, especialmente visível na saúde e na educação. Acresce que as condições
de segurança externa entraram numa época de incerteza como não se via nos
últimos 80 anos.
Governar sem maioria parlamentar e numa conjuntura financeira muito estreita só
será viável se a opinião pública compreender bem a realidade e a necessidade de
medidas que, a prazo, produzirão um crescimento económico que virá a permitir
então satisfazer as expectativas presentes. De facto, os bons resultados financeiros
dos últimos anos só foram possíveis com impostos indiretos que substituíram os
diretos e levando o investimento público a mínimos de sempre. Tudo isto num
modo bem discreto que só se sente mais tarde. Mais recentemente o estado
beneficiou das receitas “imprevistas” do pico de inflação que tocou a todos,
deixando no seu rasto todas as justas reivindicações de reposição das posições
anteriores. Estes artifícios esgotaram-se e o sucesso deste governo depende de
encontrar um novo caminho que mantenha os eleitores adormecidos e os
parlamentares imobilizados. Uma receita quase impossível.
Os desafios enfrentados na educação que se pretende universal até aos 18 anos
são muito pesados. (i) Conseguir oferecer a todos um lugar em creche e pré-escola;
(ii) melhorar a diversidade de percurso escolar de modo a satisfazer todos os
alunos; (iii) discretamente, ajustar o percurso dos alunos de modo a recuperar as
aprendizagens que se perderam nos últimos anos, segundo todos os estudos
internacionais; (iv) melhorar a vida profissional dos professores de modo a que se
foquem nos seus alunos e menos na burocracia escolar e no ativismo na rua; (v)
repensar a transferência de competências para os municípios para assegurar a
autonomia da gestão escolar sem que se agrave a dependência partidária. Tudo isto
a conseguir discretamente sem a promessa de resultados imediatos que são
impossíveis.
A configuração do governo procurou a ligação do ensino superior ao secundário,
algo que sempre desagrada aos reitores e aos líderes do aparelho científico que
sentem perder alguma influência. O sinal é que se pretende estimular a passagem
do secundário ao superior com toda a necessária diversidade de percursos.
Depois, a presença da Inovação significará a necessidade de melhorar o retorno
económico da despesa pública com a investigação. Fica fora desta integração a
formação profissional pré e pós-18 anos, mantendo-se os conflitos surdos com o
setor educativo. A integração desta interface fica adiada, ainda que a premência
desta ligação já se manifeste nas estratégias políticas de outros países europeus.
1. As condicionantes políticas
2. As condicionantes financeiras
3. As prioridades na Educação, 3-18 anos
4. As prioridades na Educação, pós 18 anos
5. As prioridades na Ciência
6. As prioridades na Inovação
1. As condicionantes políticas
Passamos há pouco de um Parlamento com uma maioria absoluta de apoio ao
governo para um Parlamento muito balcanizado, com forte competição entre os
dois grandes partidos da oposição e os seis partidos mais pequenos e quase
irrelevantes na contagem dos votos a terem de fazer todos os dias prova de vida
para não passarem à irrelevância definitiva. Recordemos o episódio de maio de
2019, da ameaça de demissão do então primeiro-ministro se fosse aprovada no
parlamento a recuperação do tempo de serviço dos professores. Essa crise foi
evitada pelo recuo do (então) único grande partido da oposição que receou ir para
eleições com a vitimização do governo pela “irresponsabilidade financeira” da
oposição. A rotura financeira de 2011 estava ainda muito viva na memória dos
eleitores. Esta memória poderá não ser hoje suficiente para impedir a formação de
“maiorias negativas” entre os dois grandes partidos da oposição. E a famosa linha
vermelha que pretenderá isolar o terceiro maior partido corre sempre o risco de ser
insuficiente para evitar o contágio se as sondagens derem alento a quem consiga
usar o poder dos seus votos.
2. As condicionantes financeiras
Pesa ainda a enorme dívida pública e privada que foi acumulada no último meio
século e, especialmente, com a resposta à crise financeira de 2008, uma resposta
dita keynesiana e pretensamente recomendada pela Comissão Europeia. O
superavit conseguido para as contas públicas em 2023, o primeiro depois de 1974,
criou uma euforia despesista bem consolidada na campanha eleitoral de 2024 em
que todas a reivindicações reprimidas no último decénio afloraram e obtiveram
acolhimento dos partidos em competição eleitoral. Vinga hoje a convicção de que
pode ser corrigida a contenção salarial do último decénio. No ensino básico e
secundário, a comparação internacional (em fração do PIB per capita) mostra que
os professores do ensino básico e secundário estão relativamente mal pagos no
início da carreira, mas acima da norma nos escalões finais. Por isso a disputa se faz
nesse terreno para garantir que quase todos cheguem ao topo para se reformarem
nessa posição mais confortável. E, para estes professores mais velhos, a escola de
hoje não tem grande semelhança à escola socialmente mais seletiva em que
entraram há 30 ou 40 anos. Mesmo no ensino superior, onde não há ainda sinais de
reivindicações salariais, os vencimentos perderam cerca de 50% do seu valor, se
vistos pela paridade conseguida em 1979 com o judiciário. Em boa verdade, a
docência no ensino superior cresceu desde então dez vezes, de 1800 para 18000
professores, enquanto o número de juízes também cresceu muito, mas é hoje de
(apenas) 1800. Grosseiramente, os vencimentos dos docentes acompanharam a
subida geral dos preços, enquanto os vencimentos dos juízes acompanharam o
enriquecimento real do país (com um PIB per capita a duplicar, se medido a preços
constantes).
Nas instituições estatais, o custo por estudante do ensino superior mantém-se
razoavelmente alinhado com os nossos parceiros da OCDE com produto per capita
semelhante. Já o custo para a educação não superior é um pouco mais alto. Este
quadro mostra a dificuldade que os próximos governos vão ter para fazer alguma
recuperação salarial de docentes (e investigadores) e para melhorar os sempre
escassos orçamentos das universidades estatais. O mesmo se pode dizer da
despesa pública com a investigação que hoje é quase totalmente canalisada para
as instituições de ensino superior.
3. As prioridades na Educação, 3-18 anos
São bem conhecidos os problemas que têm sido apontados neste setor educativo,
a qualidade das aprendizagens, a falta de docentes e a universalização da oferta de
atendimento das crianças em creche e em pré-escolar. A pacificação da
corporação docente poderá ser um pré-requisito para a resolução dos outros
problemas, mas a sua resolução é ainda mais complexa.
A falta de professores é o problema mais óbvio e que, infelizmente, sendo
totalmente previsível, não foi tratado em antecipação. Há muito que, para um jovem
de 18 anos, a opção por uma vida profissional no ensino é colocada como último
recurso. Ao contrário de outros países europeus, esta carreira profissional não é
mais mal remunerada nem implica maiores riscos do que as alternativas. Mas a
imagem pública dos professores não poderia ser pior. As notícias diárias são de
permanente conflitualidade e de testemunhos públicos de péssimas condições de
trabalho. Nenhuma outra profissão cultiva uma tal imagem pública e, contudo,
facilmente poderemos identificar alternativas mais duras, inseguras e mal
remuneradas. Nos próximos anos, não será possível ultrapassar esta imagem
pública porque se trata de uma autoimagem muito sentida por uma maioria de
professores, mas também pelo aparecimento de líderes sindicais que hoje
disputam entre si a liderança de cadernos reivindicativos longos e complexos.
A falta de professores foi agravada pela política de organização escolar de turmas
mais pequenas, mesmo sabendo-se que isso contribui pouco para a melhoria das
aprendizagens. Numa época de baixa demográfica, há uma oportunidade para
diminuir o número de turmas, atenuando o efeito da escassez de graduados na
formação de professores. Pelos últimos resultados estatísticos disponíveis, o rácio
aluno por professor global no ensino público baixou de 10,9 (em 2014/15) para 8,6
em 2021/22. Deve-se notar-se que a média deste rácio na União Europeia está
próxima dos 14 e que no Reino Unido e nos Países Baixos chega 18 ou 19. A simples
baixa do rácio em Portugal criou uma necessidade da ordem de grandeza dos 28000
professores. Sabendo-se da dificuldade de renovação geracional de muitos
professores, não há nenhuma razão para criar esta carência adicional. Isto era
verdade, mesmo que não tivéssemos alunos sem professor ao longo de muitos
meses, o que provoca o pânico nas famílias que se vêm obrigadas a procurar
escolas privadas.
No ensino básico e secundário, a grande prioridade imediata deveria ser a
recuperação da qualidade das aprendizagens que todas as avaliações
internacionais mostram estar em perda. Tudo indica que as reversões e as
“inovações” dos últimos 8 anos causaram danos que têm de ser recuperados.
Agora, terá de se encontrar o caminho da recuperação com a mínima alteração
regulamentar de programas e processos de avaliação externa (exames). A
recuperação do impacto da pandemia em alguns grupos será já demasiado tardia,
mas há necessidades permanentes de reforço do acompanhamento dos alunos
com maiores dificuldades e será mais eficaz trabalhar com turmas maiores
canalizando os recursos humanos dispensados para acorrer a esta carência.
A recuperação da paz laboral é mais difícil. O pedido de “recuperação do tempo
perdido” pelos professores durante a intervenção da Troika é compreensível, mas o
seu custo em salários e, ainda mais, em reformas a cargo da Caixa Geral de
Aposentações, tem claramente assustado os últimos governos. E a concessão
desta pretensão irá também reforçar os pedidos de outras categorias profissionais,
começando pela saúde e pela defesa e segurança.
4. As prioridades na Educação, pós 18 anos
No pós-18 anos só o ensino superior está sob a tutela do MECI, embora a fronteira
entre o ensino superior e algum tipo de formação profissional se tenha esbatido nos
últimos anos. Tem sido notada a injustiça social de canalizar mais financiamento
público para os jovens que optam pelo ensino superior do que para aqueles que
optam pela entrada imediata no mercado de trabalho. E uma política de imigração
terá de atender também às necessidades de educação e de formação profissional
dos imigrantes que na maioria são relativamente jovens.
Na transição para a educação superior, estão abertas três opções, um curso TeSP
(técnico superior profissional), uma licenciatura politécnica ou uma licenciatura
universitária (inserida num mestrado integrado em alguns poucos casos). A
diferenciação entre as licenciaturas universitárias e as politécnicas é pouco
percebida por estudantes e empregadores, ainda que haja grandes diferenças
porque diferentes são os candidatos que as escolhem. Os cursos TeSP deveriam
ser vistos como uma via de entrada mais rápida no mercado de trabalho, mas são
geralmente tratados como uma via adicional de acesso a licenciatura para
candidatos que não atingiram o padrão escolar exigido.
A universidade do ancien régime era uma escola de formação de profissionais
(Direito Canónico e Civil, Teologia, Medicina, ...). Na transição decorrente da
Revolução Francesa, afirmaram-se duas vias. Na Alemanha, Humboldt protagoniza
a construção da universidade de investigação que lhe dará a liderança científica e
industrial até à 2ª Guerra e é também adotada nas grandes universidades
americanas que tomam a liderança depois da Guerra. Na França, Napoleão está
mais preocupado com os profissionais necessários à guerra e ao progresso
material e as Grandes Écoles de engenharia mantêm até hoje um enorme prestígio
social e impõem uma fortíssima seleção académica no acesso. Portugal seguiu,
também nesta área, a cultura francesa, mas com um discurso intelectual de
universidade – Torre de Marfim onde se cultivaria o conhecimento,
independentemente da sua utilidade e da sorte dos graduados. Este discurso não
se coaduna com a realidade, especialmente depois de adotarmos a chamada
universalização do acesso ao ensino superior com mais de 50% da coorte jovem.
Há geralmente acordo quanto à necessidade de oferecer um ensino superior muito
diversificado, mas a realidade regulamentar aponta no sentido inverso. O grande
desígnio desta legislatura deveria ser a criação de incentivos à diferenciação real
dos percursos educativos e de uma maior transparência para que as famílias e os
empregadores compreendam os objetivos e a utilidade profissional desses
percursos educativos. Sim, o país precisa de uma forte estrutura científica, mas não
pode esquecer o encaminhamento profissional da maioria dos estudantes do
ensino superior.
A grande preocupação dos responsáveis das instituições estatais é a garantia de
uma dotação orçamental crescente que permita a absorção de um número
crescente de investigadores e as proteja da ameaça de uma queda demográfica a
breve prazo. As instituições fora da corda litoral Braga – Setúbal já sentem a queda
demográfica há duas décadas e aspiram a ter dotações garantidas e que os
estudantes internacionais que consigam atrair para uma primeira inscrição sejam
considerados para financiamento estatal. As queixas dos atrasos na obtenção de
vistos para estudo são recorrentes e provavelmente difíceis de corrigir enquanto
não houver uma política de imigração clara. De facto, muitos destes estudantes
parece estarem mais interessados num visto do que num grau académico.
Há 30 anos que se discute a adoção de uma fórmula de financiamento das
instituições estatais e há sempre acordo quanto à necessidade de considerar o
número de estudantes e alguns fatores de qualidade, mas o objetivo não tem sido
fácil de concretizar. Muito recentemente, em 13 de março de 2024, houve o anúncio
de uma nova fórmula que terá sido testada antes da sua publicação. A
disponibilidade para aumentar as dotações de algumas universidades e de alguns
institutos politécnicos terá satisfeito algumas ambições mais imediatas, mas não
resolveu os problemas de base. Não é seguro que esta nova fórmula tenha mais
sucesso do que a fórmula anterior de 2006 que nunca pode ser plenamente
aplicada (nem seriamente considerada para efeitos da gestão interna das
instituições). Algumas dúvidas mantêm-se em aberto. Deverão considerar-se todos
os estudantes inscritos, independentemente da nacionalidade, residência ou
frequência efetiva? O fator de custo por aluno deve corresponder à média estimada
para todas as instituições ou deve atender às diferenças de dimensão do corpo
estudantil ou à natureza do corpo docente (com professores em dedicação
exclusiva ou em tempo integral/parcial)? Que fatores de qualidade devem ser
considerados, como devem ser medidos e, posteriormente, auditados? Devem
apoiar-se as mais débeis para a sua melhoria ou premiar as mais bem-sucedidas?
Ao falar de prioridades deste MECI, não se podem omitir as melhorias legislativas
que foram pensadas recentemente. Com um parlamento muito mais dividido, é
prudente analisar bem o que pode ser assumido como objetivo atual e o que deve
ser deixado para mais tarde. As carreiras docentes do setor estatal precisam de
uma simplificação, mas é uma área que move muitos interesses e muitas
oportunidades de protagonismo parlamentar. Talvez a primeira decisão seja sobre
a manutenção de duas carreiras separadas para a docência e a investigação ou
uma carreira única, mais flexível, que permita o ajuste às duas funções sempre
muito intrincadas dentro do ensino superior. Poderá ser mais fácil encarar as
instituições privadas, onde todos reconhecem a necessidade de um quadro geral
de carreira académica que dê alguma dignidade e transparência às categorias
docentes.
O RJIES, Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, prometia uma
avaliação ao fim de cinco anos, um desiderato impossível porque nessa altura não
se podia conhecer ainda o resultado da sua aplicação. Hoje conhecem-se muitos
entorses que ele alimentou, mas, pela recente discussão pública, pelo que foi dito
e escrito e pelo que nunca foi aflorado, não parece que o tema seja menos
controverso e que haja ambiente político para o considerar. Um dos temas mais
discutidos é o sistema de eleição dos reitores (e presidentes). Para este feito, o
Conselho Geral transformou-se num colégio de grandes eleitores. Nos países onde
existe um Conselho Geral como órgão de topo do governo de uma universidade, a
grande maioria dos seus membros é escolhida por agentes externos, tendo assim
uma verdadeira independência para exercer o seu mandato na interpretação
pessoal do que será o interesse público, dentro da lei que é criada pelo órgão
político competente. Não é esta a nossa experiência, nem poderia ser com
membros eleitos pelas corporações internas que depois cooptam os membros
externos de modo a não alterar o equilíbrio dos interesses internos. O CRUP e
muitos intervenientes na discussão pública do ano passado favorecem uma
eleição do reitor por um órgão interno ou com maior peso das corporações internas,
deixando ao Conselho Geral outras funções consideradas menos relevantes. O
risco de partidarização destas eleições aumentará muito para além dos sinais já
existentes de listas de cor partidária razoavelmente visível. É esta a experiência
espanhola de eleição do reitor pelo universo das corporações internas com
ponderações pré-definidas. Tudo recomenda que a grande revisão do RJIES não
seja tomada como prioridade imediata.
5. As prioridades na Ciência
Desde a adesão à CEE, depois União Europeia, Portugal soube utilizar os fundos
disponibilizados para expandir o sistema nacional de ciência e tecnologia (SNCT).
Uma medida comum do sucesso de um sistema académico de investigação é o
número de artigos publicados e este indicador é encorajador. No último decénio,
ultrapassamos não só os nossos parceiros do sul da Europa, Grécia, Itália,
Espanha, mas também alguns países fortemente industrializados como a França e
a Alemanha. Esta realidade merece a nossa auto-congratulação, mas também uma
reflexão sobre a utilidade da estratégia que vem sendo seguida.
O nosso sistema científico do ensino superior é dos maiores da Europa em número
de investigadores por milhão de habitantes, embora o financiamento não tenha
crescido ao mesmo ritmo e a precariedade de muitos alimente a dependência dos
professores mais velhos e iniba a busca de caminhos de maior risco e inovação.
Com este longo treino em dependência, não é de esperar que estejam preparados
para assumir o risco quando finalmente (alguns) ganharem a autonomia com o
provimento num lugar de carreira. Pode recear-se que, para alguns, a segurança
finalmente assegurada seja mais o conforto de uma reta final desimpedida para
uma reforma mais confortável.
Na formação doutoral, poderemos ter prolongado por demasiado tempo a
estratégia de crescimento de uma base académica, atrasando uma política de
efetiva entrada de doutorados no tecido empresarial. Neste quadro o sucesso em
alguns indicadores pode esconder que outros países já ultrapassaram esta fase
para exigir outro tipo de resultados. Com um SNCT demasiado voltado para dentro
da academia, é legítimo recear pela sua sustentabilidade por várias razões.
(i) Nos últimos anos as condições de trabalho dos investigadores pioraram
devido ao crescimento do sistema científico em número de
investigadores e da criação de novas camadas institucionais sem um
aumento da despesa pública (apesar de as finanças públicas terem
atravessado um período de relativo desafogo).
(ii) A sociedade virá a pedir um maior retorno económico do investimento
feito na ciência ao longo de muitos anos, com o risco de que os fundos,
sempre escassos, sejam desviados para áreas do estado social.
(iii) A enorme incerteza quanto ao futuro da Europa em termos de segurança
ou de um simples alargamento porá em risco o grande volume de fundos
disponibilizados a Portugal nos últimos anos, criando uma situação a
que o orçamento de estado terá dificuldade em responder.
O SNCT está baseado nas unidades de investigação ligadas às universidades
estatais e, agora, também aos institutos politécnicos e universidades privadas.
Estas unidades são quase totalmente independentes das hierarquias
institucionais. Manteve-se por quase 30 anos um conflito latente entre os
responsáveis políticos nacionais e os reitores por estes resistirem à contratação de
todos os doutorados sem garantias de que o financiamento viesse a considerar algo
mais do que os números de estudantes de graduação. Este modelo baseado em
unidades de investigação autónomas foi criado no início da década de 1990, numa
altura em que poucos reitores tinham um percurso científico digno de nota e a
investigação estava longe das suas preocupações. Mantém-se, apesar de hoje
todos os reitores de universidades estatais e privadas e também os presidentes de
institutos politécnicos estarem plenamente cientes da necessidade de as suas
instituições mostrarem um bom desempenho científica. Acresce que este divórcio
entre a gestão do ensino e da investigação enfraquece a motivação para a
contratação dos docentes e investigadores mais promissores e para criar as
melhores condições de trabalho aos docentes e investigadores mais produtivos e
internacionalmente competitivos.
Todo o edifício que foi muito útil no século passado, precisava de uma fortíssima
intervenção de reconstrução, mas com todos os cuidados para preservar todas as
suas funcionalidades e não criar descontinuidades. Também o processo de
avaliação tem problemas graves, tendo mais as caraterísticas de um concurso de
beleza (no conceito dos economistas) do que dar um bom ponto de partida para
decisões de financiamento. Isto é muito mais grave hoje porque tem
consequências automáticas na acreditação de cursos e de instituições. Se as
pressões políticas do financiamento eram já insuportáveis, as pressões
institucionais pelo receio das consequências na acreditação tornam a finalização
do processo simplesmente ingerível. Esta crítica e antevisão pessimista não
implicam que o processo de avaliação em curso deva ser interrompido. Terá de ser
mantido, enquanto o seu desfecho é avaliado pelas suas consequências na
viabilidade financeira das unidades (e laboratórios associados e todas as outras
instituições que foram sendo criadas) e nas acreditações futuras. E estes próximos
anos deverão permitir, com a comunidade, repensar o redesenho do SNCT.
6. As prioridades na Inovação
A experiência inicial da década de 1990 de desenvolvimento dual de um sistema
científico académico e um sistema de inovação ou apoio tecnológico ao tecido
industrial foi bem-sucedido. Os centros tecnológicos tiveram destinos bem
diferentes, mas os bem-sucedidos deram ao país um excelente retorno ao
investimento total. Com algum atraso, entramos depois na onda de apoio a startups
baseadas no pessoal académico e em jovens graduados. É um caminho
necessário que terá de ser avaliado a seu tempo. Entre nós como noutros países, a
tutela da inovação tem oscilado entre a educação (e a educação superior) e a
economia. A tutela mista da ANI, Agência Nacional de Inovação, não se tem
mostrado uma boa solução. Raramente, se consegue um bom alinhamento de
objetivos e de financiamento.
A ANI tem o estatuto de sociedade anónima, tendo como sócios a FCT pelo lado da
educação e o IAPMEI pelo lado da Economia. Dois institutos públicos criam uma
sociedade anónima para fugir ao controlo das Finanças, com o risco de uma menor
transparência. Provavelmente, nenhum dos acionistas assume o objeto de
intervenção da ANI como seu. Na realidade, temos dois ministros a dar instruções
por entrepostas pessoas, sendo preciso um grande esforço para conseguir
coerência e responsabilização política. Em alternativa, teremos uma ANI livre para
definir os seus objetivos e conseguir uma dotação orçamental que lhe permita
realizar a missão assumida.
O MECI irá provavelmente desenvolver uma política de inovação própria para
influenciar as estratégias de investigação das instituições de ensino superior e das
suas periferias. Podemos esperar que tenha êxito no reforço de uma perspetiva de
prémio para os académicos que consigam aliar o reconhecimento do êxito no
impacto académico internacional com o sucesso no impacto económico e social
dos seus resultados académicos de maior nota. Mas isto exige uma ênfase
diferente do processo de avaliação da ciência que se faz em todo o sistema de
ensino superior, talvez se aproximando do que foi introduzido pelos ingleses com
algum sucesso e também com um módico de controvérsia.
Campus Universitário da Maia, 4 de junho de 2024
José Ferreira Gomes
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