Chega a notícia de que D. Manuel estará presente na Sé de Setúbal em estátua de corpo inteiro oferecida pelo município à diocese. De corpo inteiro e em exclusivo como D. Manuel Martins se assumiu como Bispo de Setúbal desde que ali chegou em 1975. Com entrada discreta e instalação modesta, rapidamente se assumiu como voz dos que não tinham voz num quadro de reconversão industrial (pelo fim da guerra de África) e de frustração de expectativas (pelo fim do Estado Novo).
Que nos diria hoje D. Manuel quando enfrentamos a primeira crise sanitária global equivalente a um ataque de guerra biológica insidioso pela sua rápida dispersão e assustador pela sua persistência e perseverança de efeitos de baixo nível. De facto, o seu impacto é incomparavelmente menor do que noutras pragas registadas na história, seja a Peste Negra no século XIV europeu, seja a varíola (e outras ameaças levadas nas naus castelhanas e portuguesas) no século XVI americano. A paisagem social e económica europeia foi profundamente afetada e as civilizações ameríndias definitivamente obliteradas. Se, em comparação, temos agora um risco moderado, o seu impacto numa sociedade de serviços é ampliado de uma forma totalmente inédita. De facto, a resposta inicial da primavera europeia pareceu única e quase consensual. Passados seis meses, nenhum responsável político a assume como erro seu, mas não se atreve a repeti-la.
Não devemos usar hoje uma boca ausente, mas podemos inspirar-nos no seu posicionamento de sempre, na sua linguagem simples e direta e alertando para os problemas de pessoas concretas que bem conhecia. A nossa voz não pode ignorar os mais frágeis que foram deixados à porta do centro de saúde onde procuravam alívio para as suas mazelas ou que foram isolados num lar onde nem familiares nem médicos puderam ou quiseram entrar; a perda de rendimento de muitos e a frustração daqueles que sonhavam iniciar uma vida autónoma e viram os seus planos adiados sine die. Promessas incumpridas e legítimas expectativas frustradas. O estado falha porque se retrai ou porque não estende o braço aos que precisam. O estado falha quando asfixia a iniciativa da sociedade civil ao querer ocupar todo o seu espaço e impõe condicionalismos que ele próprio não respeita. E falha clamorosamente na emergência em que se quer só, mas se mostra incapaz. E não há campanha publicitária que tape a nudez do rei.
Os escândalos financeiros beneficiam uns poucos que por aí continuam à espera da próxima oportunidade. Prometem-se grandes empreendimentos que garantam o êxito fácil numa próxima eleição, mas poderão repetir erros passados e abandonar os descartáveis de sempre. Todos aplaudem as grandes intervenções salvíficas do estado, sem pensar que a conta lhes virá ter a casa na forma de mais um imposto ou da denegação de uma expectativa longamente sonhada. Queremos uma sociedade equilibrada pela solidariedade entre grupos sociais e entre gerações, mas não queremos ser enganados por um custo insuportável no longo prazo. Queremos liberdade de circulação das pessoas, mas não queremos ver mais jovens empurrados para um doloroso desenraizamento. Sonhemos com um futuro melhor, mas afastemos as quimeras que antecipam o desastre quase certo. Conhecemos demasiado bem como promessas grandiosas de um passado não muito distante inibem a capacidade de acorrer a necessidades básicas de hoje. E a vontade de repetir esse ciclo de mau agouro não está afastada definitivamente. D. Manuel não se pronunciaria sobre estes grandes desígnios políticos, mas não calaria a sua voz quando as consequências chegassem.
Presidente da Fundação Spes
23 de setembro de 2020
A resposta sanitária desta passada primavera poderá ter tido a intenção de “nos defender”, na narrativa portuguesa e continental, ou “defender o Serviço Nacional de Saúde”, na narrativa britânica. Falhou certamente na defesa dos mais imediatamente vulneráveis e escondeu os efeitos sociais e económicos que já eram bem previsíveis. A omnipresença e a omnipotência do Estado tudo iria resolver! Não foi bem assim. A omnipresença ainda não fora plenamente conseguida, felizmente. E, onde o estado já estava, soube discretamente retirar-se para se defender a si próprio e aos seus, deixando os outros à sua sorte.
Nesta crise, o todo poderoso estado decidiu arriscar um caminho novo que só a dimensão europeia plurinacional parece permitir, a emissão de moeda a uma escala nunca vista e com efeitos totalmente desconhecidos. No imediato, suprime o rendimento dos que viviam de investimentos de taxa variável e faz o devedor esquecer as suas responsabilidades. A prazo, espera-se que os emprestadores não cheguem a receber o seu dinheiro. Assim foi no passado, mas a bênção da inflação tarda a aparecer. Que os grandes ganhadores sejam os investidores e, antes deles, os jogadores na bolsa é um efeito colateral que ninguém quer ver.
A crise económica não demorou a chegar, ainda que de forma muito diferenciada. Os funcionários estatais foram totalmente protegidos, uns poucos setores da economia cresceram, mas a maioria foi afetada negativamente e os relacionados com serviços pessoais e, especialmente, a restauração e o turismo sofreram uma queda brusca e violenta. O desemprego, algum temporário sob a capa do lay-off, cresceu e atingiu muito os mais jovens. São estes que vão sofrer mais e por mais tempo. Muitos, ainda expectantes, vão ver concretizados os piores receios.
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