quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

“Queda do nível dos alunos em Matemática”

Serenem os leitores, este título não se refere a Portugal. Não existe e nunca existiu entre nós um sistema de aferição dos conhecimentos adquiridos pelos alunos que permita comparações interanuais fiáveis. O melhor que temos é o resultado de estudos internacionais como o PISA, o TIMSS ou o PIRLS e todos recordamos como foram recebidos com muitas reservas. A afirmação em título é do jornal Le Monde de 1 de outubro passado e refere-se ao relatório publicado pelo Ministério da Educação Nacional, da Juventude e dos Desportos: Cedre 2008-2014-2019 Mathématiques en fin de collège: des résultats en baisse. Um tal relatório seria atualmente impensável em Portugal e nem é necessária uma intervenção política porque todos os dirigentes da nossa administração pública (e alguns jornalistas) conhecem as consequências da eventual divulgação de uma notícia desagradável. Todos sabem que lugar ocupam e o que se espera que digam ou escrevam. Quase todos. Os franceses têm ainda muito que aprender.
Em França, a agência estatística do Ministério da Educação publica sem escândalo nem castigo esta Nota Informativa nº 20.34 de setembro de 2020 que se refere ao mais recente de uma série de estudos regulares dos resultados das aprendizagens dos alunos no termo do 1º ciclo (aos 11 anos) e do 2º ciclo (aos 15 anos). Depois de uma avaliação cuidadosamente aferida para ser comparável, a mensagem desta Nota Informativa é muito clara ao concluir que houve uma baixa entre 2008 e 2014 e que a situação se agravou em 2019. Note-se que o estudo inclui as escolas estatais e as privadas com contrato de financiamento estatal. (O ensino privado abrange mais de dois milhões de alunos, 20% do total, a maioria em cerca de 9000 escolas católicas, das quais 7300 têm contrato de financiamento. As escolas judias recebem cerca de 30000 alunos e as islâmicas cerca de 2000.) Os poucos exames nacionais que sobrevivem hoje em Portugal são organizados pelo IAVE, um instituto público que deveria ser independente e que tem dificuldade em elaborar provas comparáveis de ano para ano, sendo bem conhecidas as enormes variações que nunca foram explicadas nem interpretadas. Aceitam-se oscilações das médias superiores a 2 valores em anos sucessivos. E não me refiro ao ano corrente porque a pandemia tudo justifica, até notas totalmente desalinhadas para empurrar mais jovens para uma licenciatura, independentemente da sua preparação nas disciplinas nucleares. Infelizmente para a França, os estudos internacionais confirmam o mal detetado pelo estudo nacional, mas são estes estudos nacionais detalhados e a sua análise cuidada que permitem planear as reformas corretivas com que os franceses esperam mudar o rumo dos últimos anos. Em Portugal, a queda no TIMSS 2019 levou-nos para uma posição próxima da francesa, mas o Ministério da Educação entrou em estado de negação, o que confirma que as más notícias nunca serão aceites e que a política educativa não será reorientada para recuperarmos o caminho de melhoria dos últimos 20 anos. O governo dá sinal de querer reforçar ainda mais a queda da aprendizagem dos nossos alunos.
Em Portugal temos ainda 25% dos nossos jovens de 25 a 34 anos sem o ensino secundário (OCDE, Education at a Glance, 2020) e há uma corrente forte de oposição aos exames. Apenas metade dos alunos que concluem o ensino secundário o fazem pela via, dita (impropriamente) regular, com exames finais nacionais em algumas disciplinas. A outra metade obtém o diploma sem nenhuma prova nacional comparável que nos permita aferir os conhecimentos adquiridos e as capacidades desenvolvidas, mas ninguém se preocupa, talvez por ser a metade socialmente mais frágil. Não teria de ser assim. A Irlanda tem já 91% dos jovens de 25 a 34 anos com o ensino secundário e todos estes fizeram provas nacionais que permitem aferir o seu progresso escolar e o trabalho das escolas com os diversos segmentos de uma população escolar naturalmente heterogénea. Estaremos forçados a desistir de melhorar e até abertos a regredir, eliminando os poucos meios de demonstração do bom trabalho que se faz em muitas escolas e assim acabando com os incentivos a que todas melhorem?
Publicado no jornal Público em 17 de dezembro de 2020

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Somos academia

(A) Terá a crise COVID posto a nu algumas fragilidades do Ensino Superior?

  • O Ensino Superior portou-se muito bem, a experiência foi positiva.
  • No Básico e Secundário, a narrativa do sucesso é falaciosa. Temos aí problemas tremendos. Temos muito a repensar, também porque o problema é mais complicado.



(B) Como gere o conflito entre o homem da universidade e de membro do governo?
  • O país é pobre e tem empobrecido nos últimos decénios e por isso são compreensíveis as restrições ao financiamento e dificuldade de concorrer internacional. Não se compreende que as propinas tenham baixado nos anos mais recentes. Não se compreende que se dispense a receita das propinas. 
  • Nos Estados Unidos, as propinas são altas, mas cerca de 1/3 dessa receita é reciclada pela universidade na forma de bolsas para os alunos mais carenciados.
  • As Universidades têm feito um bom trabalho com o baixo financiamento que recebem.
  • Devemos distiguir entre Autonomia e Autarquia e a defesa da autonomia universitária ronda frequentemente a aspiração à autarquia. Na minha opinião, a universidade deve gozar de Autonomia porque esta torna a gestão mais eficiente e eficaz. Esta realidade foi constitucionalizada em Portugal e também na Espanha porque as nossas constituições foram feitas numa época em que todos os países europeus caminhavam para a autonomia das suas universidades pelas razões técnicas que apontei.

(C) Faz hoje sentido a existência de um sistema binário de ensino superior?
  • A ideia de termos dois sub-sistemas tinha as suas virtualidades.
  • Como é que a missão diferente que foi atribuída às instituições foi cumprida? Houve derivas dos dois lados e o estado não foi capaz de forçar o cumprimento da missão atribuída.
  • Todos defendemos mais autonomia com uma auditoria a posteriori, mas em Portugal nem se faz auditoria séria nem se penaliza quem não cumpre.
  • Hoje não estou certo de que haja vantagem em gerir como sistema binário.
  • Os estatutos de carreira docentes de 2009 deram a pancada final na morte do sistema, porque uma carreira quase única não é compatível com um sistema que se pretende binário.
  • O importante é que haja uma diferenciação forte e maior do que a atual nos cursos oferecidos À população.

(D) Será importante olhar para as famílias e para esta ação social?
  • Sim, seguramente. Se o financiamento do Ensino Superior é baixo, o apoio social é muito baixo.
  • A FAP tem historicamente capacidade para fazer melhores documentos que o CRUP.

Entrevista de Ana Rita Basto para o programa Somos Academia do Porto Canal (gravada a 27 de agosto de 2020) com Marcos Teixeira (Pres. FAP), António Sousa Pereira (Reitor UPorto) e eu próprio.







COMO VAMOS VIVER COM OS CORONAVÍRUS? E DAQUI A 10 ANOS?

 


Dizem-nos que nenhum especialista ficou surpreendido, que tudo isto estava nos livros. Mas a verdade é que também ninguém tinha uma resposta preparada. Com pequenas variações, todos os estados seguiram estratégias que, seis meses depois, não querem repetir. Explicam-nos que se aprendeu muito sobre este vírus, mas esta justificação é muito curta.

A humanidade não é capaz de se preparar para acontecimentos raros, sejam sanitários sejam telúricos ou climáticos. A explicação benigna é que é demasiado caro estar preparado para todas as eventualidades. A interpretação alternativa é que a política vive no curto prazo, quando não no curtíssimo prazo e, neste horizonte, não interessam as surpresas. Quando ocorram todos as aceitarão como imprevisíveis. Assim foi no caso presente.

Daqui a 10 anos, este drama terá passado e tenho que as sequelas estarão curadas. De novo, não estaremos preparados para o que venha a seguir. Mais do que a natureza, receio os homens (e as mulheres). Esta experiência parece-se demasiado com uma enorme manobra militar e muitos estarão a aprender como tirar daqui uma vantagem potencial. Sim, é assustador quão simples isto pode vir a transformar-se numa nova forma de guerra. Todos sabíamos que a guerra biológica estava nos arsenais de muitos, mas ninguém tinha feito um tal ensaio geral. Está e provou a sua eficácia.

Um Portugal de 10 milhões estava mal preparado e assustou-se com a ameaça de nos termos de haver sozinhos com o problema. Temos bastante a aprender e a melhorar na nossa organização social e política. Temos de ser mais competentes.


 em 11 de setembro de 2020

Escrito a pedido do Centro de CIência Viva de Estremoz

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

De corpo inteiro na Sé de Setúbal, interpela-nos!

Chega a notícia de que D. Manuel estará presente na Sé de Setúbal em estátua de corpo inteiro oferecida pelo município à diocese. De corpo inteiro e em exclusivo como D. Manuel Martins se assumiu como Bispo de Setúbal desde que ali chegou em 1975. Com entrada discreta e instalação modesta, rapidamente se assumiu como voz dos que não tinham voz num quadro de reconversão industrial (pelo fim da guerra de África) e de frustração de expectativas (pelo fim do Estado Novo). 

Que nos diria hoje D. Manuel quando enfrentamos a primeira crise sanitária global equivalente a um ataque de guerra biológica insidioso pela sua rápida dispersão e assustador pela sua persistência e perseverança de efeitos de baixo nível. De facto, o seu impacto é incomparavelmente menor do que noutras pragas registadas na história, seja a Peste Negra no século XIV europeu, seja a varíola (e outras ameaças levadas nas naus castelhanas e portuguesas) no século XVI americano. A paisagem social e económica europeia foi profundamente afetada e as civilizações ameríndias definitivamente obliteradas. Se, em comparação, temos agora um risco moderado, o seu impacto numa sociedade de serviços é ampliado de uma forma totalmente inédita. De facto, a resposta inicial da primavera europeia pareceu única e quase consensual. Passados seis meses, nenhum responsável político a assume como erro seu, mas não se atreve a repeti-la. 

Não devemos usar hoje uma boca ausente, mas podemos inspirar-nos no seu posicionamento de sempre, na sua linguagem simples e direta e alertando para os problemas de pessoas concretas que bem conhecia. A nossa voz não pode ignorar os mais frágeis que foram deixados à porta do centro de saúde onde procuravam alívio para as suas mazelas ou que foram isolados num lar onde nem familiares nem médicos puderam ou quiseram entrar; a perda de rendimento de muitos e a frustração daqueles que sonhavam iniciar uma vida autónoma e viram os seus planos adiados sine die. Promessas incumpridas e legítimas expectativas frustradas. O estado falha porque se retrai ou porque não estende o braço aos que precisam. O estado falha quando asfixia a iniciativa da sociedade civil ao querer ocupar todo o seu espaço e impõe condicionalismos que ele próprio não respeita. E falha clamorosamente na emergência em que se quer só, mas se mostra incapaz. E não há campanha publicitária que tape a nudez do rei.  

Os escândalos financeiros beneficiam uns poucos que por aí continuam à espera da próxima oportunidade. Prometem-se grandes empreendimentos que garantam o êxito fácil numa próxima eleição, mas poderão repetir erros passados e abandonar os descartáveis de sempre. Todos aplaudem as grandes intervenções salvíficas do estado, sem pensar que a conta lhes virá ter a casa na forma de mais um imposto ou da denegação de uma expectativa longamente sonhada. Queremos uma sociedade equilibrada pela solidariedade entre grupos sociais e entre gerações, mas não queremos ser enganados por um custo insuportável no longo prazo. Queremos liberdade de circulação das pessoas, mas não queremos ver mais jovens empurrados para um doloroso desenraizamento. Sonhemos com um futuro melhor, mas afastemos as quimeras que antecipam o desastre quase certo. Conhecemos demasiado bem como promessas grandiosas de um passado não muito distante inibem a capacidade de acorrer a necessidades básicas de hoje. E a vontade de repetir esse ciclo de mau agouro não está afastada definitivamente. D. Manuel não se pronunciaria sobre estes grandes desígnios políticos, mas não calaria a sua voz quando as consequências chegassem.  

José Ferreira Gomes 
Presidente da Fundação Spes  
23 de setembro de 2020

A resposta sanitária desta passada primavera poderá ter tido a intenção de “nos defender”, na narrativa portuguesa e continental, ou “defender o Serviço Nacional de Saúde”, na narrativa britânica. Falhou certamente na defesa dos mais imediatamente vulneráveis e escondeu os efeitos sociais e económicos que já eram bem previsíveis. A omnipresença e a omnipotência do Estado tudo iria resolver! Não foi bem assim. A omnipresença ainda não fora plenamente conseguida, felizmente. E, onde o estado já estava, soube discretamente retirar-se para se defender a si próprio e aos seus, deixando os outros à sua sorte.

Nesta crise, o todo poderoso estado decidiu arriscar um caminho novo que só a dimensão europeia plurinacional parece permitir, a emissão de moeda a uma escala nunca vista e com efeitos totalmente desconhecidos. No imediato, suprime o rendimento dos que viviam de investimentos de taxa variável e faz o devedor esquecer as suas responsabilidades. A prazo, espera-se que os emprestadores não cheguem a receber o seu dinheiro. Assim foi no passado, mas a bênção da inflação tarda a aparecer. Que os grandes ganhadores sejam os investidores e, antes deles, os jogadores na bolsa é um efeito colateral que ninguém quer ver.  

A crise económica não demorou a chegar, ainda que de forma muito diferenciada. Os funcionários estatais foram totalmente protegidos, uns poucos setores da economia cresceram, mas a maioria foi afetada negativamente e os relacionados com serviços pessoais e, especialmente, a restauração e o turismo sofreram uma queda brusca e violenta. O desemprego, algum temporário sob a capa do lay-off, cresceu e atingiu muito os mais jovens. São estes que vão sofrer mais e por mais tempo. Muitos, ainda expectantes, vão ver concretizados os piores receios. 

Texto completo da reflexão                                                                                                                  publicada no terceiro aniversário do falecimento de D. Manuel Martins, em 24 de setembro de 2020,
em https://partilharebom.wixsite.com/testemunhos.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A falácia do sucesso nas candidaturas ao Ensino Superior

Como lhe compete, o Ministro Manuel Heitor congratula-se com o aumento do número de estudantes a chegarem ao ensino superior neste ano de COVID. Depois, envereda por uma narrativa muito criativa de justificações que vão desde o reconhecimento pelos jovens dos méritos de estudar até ao efeito do desemprego. Esta nuvem de fumo tenta encobrir a razão principal, o facilitismo dos exames do secundário. A pressão já visível nos últimos anos para que os padrões tradicionais fossem abandonados, aproveitou as condições especiais deste ano para ultrapassar tudo e dar prémio a todos. Infelizmente, um prémio para todos é o mesmo que deixar de premiar quem merece e é esse o estado a que chegamos. Promete-se uma entrada no Ensino Superior equivalente a 90% da geração de 18 anos. Seria motivo de congratulação se o ensino secundário tivesse conseguido entusiasmar 90% dos alunos e se a nossa economia estivesse em condições de absorver 90% dos jovens em atividades associadas com um diploma de Ensino Superior. Infelizmente, nenhuma destas hipóteses é verdadeira e estamos a criar falsas expectativas numa geração que vai culpar-nos daqui a poucos anos pela enorme frustração que inelutavelmente vai sofrer. Estamos a incubar um aumento dramático da já elevada emigração qualificada jovem e a criar fortes desequilíbrios na sociedade. Vamos mostrar a esta geração que afinal não valeu a pena estudar e que melhor fariam ter-se inscrito e trabalhado no partido certo para subir na vida!

“Teachers gave implausibly high predicted grades” era o título de um jornal inglês na semana passada. Em Inglaterra, o problema chega às primeiras páginas. Na ausência dos tradicionais exames finais, o acesso às boas universidades depende este ano das notas internas e os professores não se fizeram rogados, ofereceram notas muito acima do normal. O Governo ainda tentou corrigir a anomalia através de um processo de renormalização, mas cedo desistiu transferindo para as universidades o difícil trabalho de seleção daqueles que poderão acompanhar o nível de exigência dos cursos em que pretendem inscrever-se. Nas boas universidades, o número de entradas não subirá muito pelo que apenas os melhores lá chegarão. Só que o processo de seleção é mais difícil pela ausência de uma boa demonstração das suas competências atingidas e do seu potencial previsível. Em Portugal, não só foi dado maior peso às notas internas (apesar da recorrente queixa das enormes desigualdades entre escolas, mesmo entre escolas estatais) como foram criadas regras especiais para garantir que todos tinham boas notas nos exames, apesar das falhas na sua preparação. E, finalmente, o Ministro Manuel Heitor, pode regozijar-se com os resultados: 90 000 jovens chegarão ao ensino superior. Não, não teremos ainda 90% da geração a entrar imediatamente no Superior: Andávamos pelos 40% e damos um passo seguro para forçar a promessa dos 60%. E isto seria muito bom se fosse o resultado de um processo sério de reforço da qualidade do Secundário e se o Superior fosse já capaz de absorver estes jovens em linhas de educação e formação suficientemente diversas e ajustadas às realidades da nossa sociedade. Mas nada foi feito neste sentido. Não se conhece um único impulso da política educativa para preparar os jovens para um ambiente de trabalho mais diverso e mais exigente. Não se conhece um único impulso para que as linhas de educação e formação no Secundário e no Superior sejam mais diversas sem deixar de ser exigentes.

A função do sistema educativo deveria ser a de apoiar todos os jovens a progredirem no sentido de atingirem o seu potencial e os preparar para a realização dos seus sonhos de vida num ambiente de crescente incerteza. É um caminho difícil, mas é crucial no mundo de hoje e ainda mais num pequeno país há demasiado tempo estagnado nesta margem atlântica de uma Europa em perda de influência. Não é com facilitismo que vamos lá. A aparente recompensa imediata virá a ter um sabor demasiado amargo para a geração enganada e aumentar os desequilíbrios sociais que forçam as migrações traumáticas.

Depois de 5 anos de políticas de facilitismo enganador, o próprio autor aparece agora a dissimular as razões do seu sucesso. Não, a subida do número de candidatos ao Concurso Nacional de Acesso para o máximo de sempre (em percentagem da coorte) não resulta principalmente do reconhecimento do valor do estudo nem do desemprego que espera estes jovens. É a simples consequência das ordens dadas ao IAVE (o instituto “independente” que elabora os exames e estabelece as normas de correção) para que “todos fiquemos bem”. Mas todos já sabemos que o slogan é enganoso: Estes jovens estão a ser enganados e muitos ficarão mal.

O efeito desta política de facilitismo é, a prazo, a desvalorização dos diplomas e a valorização das redes familiares e sociais (e políticas) de apoio. Baixa o peso do diploma e sobe o valor da “cunha”. A promoção social pelo estudo é prejudicada, reforçando-se a garantia de sucesso aos mais bem ligados pela rede de “apoio informal”. Num país desigual, estamos a reforçar as condições para a transmissão desta desigualdade para as gerações futuras.

In: Público, 27 de agosto de 2020, p.9

Veja também: Acesso ao Ensino Superior em 2020

domingo, 5 de julho de 2020

A Química festeja a juventude

Nos 150 anos de celebração da Tabela Periódica, temos um belo edifício onde alojar os 118 elementos conhecidos, 94 deles naturais (ainda que apenas em vestígio nalguns casos) e 24 totalmente artificiais e de vida muito efémera. Tabela fechada! Outros surgirão para quebrar a beleza da Tabela atual. Para a Química, alguns dos atuais já parecem inatingíveis ou, talvez, inúteis, mas o inútil poderá vir encontrar utilidade. Assim tem acontecido repetidamente na história da ciência.
Valeu a pena celebrar a odisseia desta construção. Celebramos o passado com os olhos postos no futuro e na juventude que se propõe encontrar e desafiar novos problemas. Se no Congresso de Karlsruhe (1860) Portugal teve apenas um representante, hoje temos representação nos espaços mais recônditos da Química e podemos esperar uma afirmação ainda mais forte no futuro próximo. É por este futuro que trabalhámos em 2019. É esta Química jovem que hoje construímos e celebramos.
Não terminara ainda o Ano Internacional da Tabela Periódica e já surgia uma ameaça que se limitava a usar uns 4 elementos para, em poucas semanas, fechar em casa mais de um terço da humanidade e parar a economia de forma só imaginada em pesadelos ficcionados. Para que servem afinal todos os outros 114 que celebramos? Não estaremos a regressar aos quatro elementos da antiguidade, dispensando toda a outra Química, mesmo a dos 94 que foram sendo encontrados na natureza, antes e depois de Mendeleiev?
Vivemos um exercício de guerra biológica (originada intencionalmente ou não) para que manifestamente nenhuma potência militar ou pacifista estava preparada. O exercício vai certamente aprofundar a reflexão sobre o posicionamento estratégico dos blocos políticos e comerciais em que a humanidade se organiza. Poderemos vir a assistir a uma marcha atrás na desindustrialização da Europa e, consequentemente, a uma revalorização da Química nesta velha Europa.
Mantemos a Química temporariamente em teletrabalho, mas mantemos a esperança firme de que possamos regressar a breve prazo aos nossos laboratórios para reencontrar lá toda a Química que amamos. Saindo do confinamento, vai-nos ser permitido abraçar os amores antigos, sem desperdiçar toda a reflexão destas semanas ou meses.
A besta que nos ataca poderá usar apenas 4 elementos, mas socorre-se traiçoeiramente de outros para fazer o seu caminho. Marca encontro sinistro dentro das nossas células e aproveita-se desse acolhimento inocente para pôr a maquinaria do hospedeiro ao seu serviço. Encontra ali os outros elementos essenciais aos processos biológicos que lhe permitem andar por aí. Do lado da Ciência, estamos em todo o mundo a lançar mão de todos os recursos e de todos os elementos para atenuar o impacto, combatendo-o dentro de cada célula, mas também no exterior. Uma simples lavagem com água e sabão, ou outro detergente que a Química foi sintetizando ao longo do último século, permite “matar” o vírus ao destruir a sua vestimenta externa. Enquanto não dispomos de uma terapia adequada nem beneficiamos de algum mecanismo de imunização, vivemos com a receita simples de que lavar-se e ficar recolhido é a melhor solução para oferecer tempo aos que se mantêm ativos nos seus laboratórios e nos hão de salvar. Assim esperamos! Ou que a besta desista...
Este retiro de 2020 permite-nos avaliar melhor e mais profundamente os prazeres dos bons velhos tempos. Como invejamos o 2019, quando podíamos sair e saudar os amigos efusivamente, de longe e de perto, velhos e novos. Que saudades do 29 de janeiro cheio de notícias de jovens a celebrar a Química nas nossas praças e avenidas, a apresentar ao público as suas Tabelas Periódicas humanas. Ninguém sabia de uma imensa metrópole chamada Wuhan onde se podiam comprar algumas carnes estranhas num mercado movimentado. Que belo o dia 12 de fevereiro com as mulheres investigadoras químicas de todo o mundo a discutir os seus sucessos sem se perguntarem pela chegada do vírus à Europa nem se forçarem ainda em teletrabalho. Que melhor celebração da primavera senão a plantação de uma floresta em memória dos elementos da Tabela Periódica sem querer saber da chegada do vírus a Portugal e das últimas medidas de isolamento. Só as árvores ficaram isoladas no alto da serra ou no pátio da escola à espera de alguma água que as mantivesse vivas e do sol que as faria crescer. Em abril, celebrámos os metais com música e alegria certa, em espaço aberto ou em sala confinada, mas sem receio de expressar esperança no futuro livre de constrições. E o 2019 continuou alegre e celebrativo na confiança. Celebramos o sol e o mar para logo de seguida celebrar a chegada dos novos elementos, sempre jovens e acalentando os seus sonhos adolescentes.  Levamos a Química ao teatro com total adesão de grandes e pequenos à Tabela Periódica. Reunimos em Grande Encontro, fechamos com a exposição da iniciativa artística de alunos, professores e investigadores.
A Sociedade Portuguesa de Química tomou a iniciativa e apoiou, mas a Química em Portugal tomou a iniciativa nas suas mãos, assumiu a festa como sua e encheu salas de aula e laboratórios, envolveu jovens alunos e investigadores seniores. Todos fizeram a sua festa! Todos merecem uma palavra de parabéns e de certeza quanto ao futuro.