quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Os saldos das universidades


A existência de saldos de gerência de algumas instituições de ensino superior públicas tem sido criticada porque o dinheiro poderia ter sido usado em novos contratos de pessoal ou na melhoria das condições de trabalho. O Ministério das Finanças não compreende que instituições de ensino superior autónomas devam ter saldos que possam usar livremente como fundo de maneio ou reserva para os dias de chuva. A fraqueza política do Ministro da tutela retira-lhe capacidade para honrar os seus compromissos, embora isso não pareça ser suficiente para que daí tire as necessárias consequências.
O regime jurídico das instituições de ensino superior de 2007 veio reforçar a autonomia financeira e, no caso daquelas que assumem o estatuto de Fundação, uma autonomia patrimonial até aí desconhecida. Toda a autonomia de gestão implica riscos e é de louvar que, em dez anos de vigência, não sejam conhecidos casos de manifesta imprudência ou simples má gestão. Em plena festa socrática, corria-se o risco de que lhes fosse aberta a porta ao endividamento como forma de esconder mais dívida pública, mas isso pode ser evitado e nunca foi reivindicado por reitores e presidentes. Que agora sejam criticados pela gestão prudente, é não só injusto como um forte incentivo ao descalabro que sempre esteve ausente da gestão do ensino superior.
Embora a educação em Portugal seja relativamente cara (em relação ao PIB), o ensino superior manteve sempre uma elevada eficiência com custos inferiores aos dos nossos parceiros europeus ou da OCDE e todos os sinais apontam para que seja também mais eficaz quando avaliado pela qualidade média dos seus graduados. É verdade que o corpo docente envelheceu por termos tido um rápido crescimento (e recrutamento) na década de 1985-1995 com uma súbita estabilização a partir de 2000. Mas começa a ocorrer uma onda de reformas que promete um forte rejuvenescimento com reforço da qualidade, isto se não forem cometidos muitos erros na contratação de investigadores.
É sabido que as nossas empresas recorrem excessivamente a capital bancário para o seu fundo de maneio e até para capital que é reconhecidamente insuficiente. Nas universidades e institutos politécnicos, a autonomia foi concedida pelo Estado sem a atribuição de um fundo de capital, pelo que é absolutamente necessário que progressivamente sejam constituídas reservas para o maneio corrente de projetos e para atenuar os choques financeiros que, mais tarde ou mais cedo, vão ocorrer. A maior autonomia financeira e patrimonial deveria estar dependente da capacidade para, no médio e longo prazo, as instituições serem capazes de manter este fundo e estimular parceiros privados a que o reforcem pela comprovada boa gestão e objetivos sociais.
Nem todas as instituições têm conseguido saldos positivos o que se deve, na maioria dos casos, à quebra do valor real das dotações de orçamento de estado desde o início do século e das quebras da procura estudantil que sofreram em algumas regiões. O Ministério das Finanças é incapaz de analisar estas circunstâncias, podendo olhar apenas para dados agregados da execução orçamental no sistema da Direção Geral do Orçamento que nada esclarecem sobre a boa gestão e tudo mascaram. O Ministério da tutela não quer cumprir a lei de financiamento (por “fórmula”), talvez porque a arbitrariedade da concessão de reforços lhe dê uma aparente força política para a gestão de silêncios cúmplices. O Tribunal de Contas não fez ainda uma avaliação global da qualidade da gestão económica do ensino superior.
Vivemos assim num regime em que as instituições que cumprem o seu dever de gestão prudente são criticadas enquanto que, no outro extremo, aquelas que não se preocupam em resistir às sempre existentes pressões internas para aumento de despesa (seja ela útil ou de utilidade duvidosa) são premiadas com um discreto reforço orçamental no fim do ano. Todos os reitores de universidades e todos os presidentes de politécnicos são assim fortemente incentivados a aumentar rapidamente a despesa na certeza de que serão mais populares no seio das suas corporações internas, deixarão de ler críticas no espaço público. E terão sempre garantido o apoio das Finanças. É este o sistema perverso que está a ser alimentado por uma falta de política clara de financiamento (como é exigido por lei!) com a necessária discriminação positiva para aquelas que não podem deixar de funcionar com custos unitários mais elevados mas num espaço de saudável concorrência para melhorarem a qualidade da educação oferecida aos estudantes e dos serviços de investigação e inovação transferidos para a sociedade.
José Ferreira Gomes
Professor da Universidade do Porto;
ex-secretário de Estado do Ensino Superior no XIX e XX governos
In: Jornal Público, 17 de janeiro de 2018

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