segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Efemérides de 2006


Uma carta escrita em 23 de novembro de 2006 apresenta preocupações que ainda hoje são prementes. (1) Uma pressão orçamental sobre as instituições de ensino superior que as mantém dóceis mas incapazes de cumprir a sua missão; (2) um "novo" sistema de avaliação e acreditação que dá sinais de insuficiência; (3) avaliações de processos que ignoram o desempenho real das instituições (e dos seus investigadores) que, como sucedâneo, olham para rankings que nada significam; (4) uma reforma de Bolonha cujos erros são hoje evidentes; (5) uma rede institucional com missões pouco claras; (6) uma governança onde o RJIES não veio dar a desejável agilidade e eficácia; (7) carreiras docentes cada vez mais pesadas e ineficazes; (8) um sistema científico em perda de financiamento e sem objetivos nem uma avaliação digna. 
Doze anos depois, vale a pena recordar a visão de então.


Uma carta particular desse dia 23 de novembro de 2006:
Caro João

"Não temo que o aquecimento global submirja todas as instituições do ensino superior com a subida das águas do mar." JMG citado no Público, 23.Nov.06.

Sejamos sérios, o Zé Mariano merece um aplauso!
1.    Financiamento. A táctica funciona. Em linguagem militar é uma operação de softning of enemy forces. Que sucesso! O chefe do estado-maior tem um discurso algo inconsistente, mas de apoio aos resultados. Os generais são bastante discretos. Sabem que o assassínio selectivo é hoje bem tolerado pela comunidade internacional, que foi condenado durante muitos séculos depois da invenção dos tribunais, mas que essa fase já foi ultrapassada. De facto, esta é a única explicação possível para a projectada quebra de financiamento de um sistema que tem todos os problemas menos o do custo. Mas as resistências para corrigir qualquer desses problemas seriam altas sem esta preparação prévia.
2. Avaliação e Acreditação. A situação era insustentável! Tínhamos um sistema razoável de avaliação para a melhoria, mas faltaram as políticas públicas de acompanhamento dessa melhoria. Em alternativa, sucessivos governos pediam ao sistema a prestação de contas, um resultado incompatível com o desenho inicial. Havia que mudar e a criação de uma agência de avaliação e acreditação é provavelmente a melhor solução. Mas isto não desculpa o inconcebível tratamento dado ao CNAVES que fizera bem o que lhe fora pedido.
3.    Avaliação de processos ou de resultados? Tudo indica que o novo modelo siga o hábito europeu de avaliar mais os processos do que os resultados das aprendizagens, um modelo aceitável em sistemas homogéneos. Portugal tem o sistema mais heterogéneo de toda a Europa ocidental e precisa de outras componentes de avaliação. Na América Latina ganhou aceitação a componente de avaliação das aprendizagens dos graduados e os Estados Unidos estão a caminho de o fazer de forma generalizada (ao nível dos colleges). Deveríamos introduzir esta componente e construí-la progressivamente (para ser também alargada ao ensino secundário e ao acesso ao superior).
4.  Bolonha. Todos estamos de acordo que a introdução da legislação e a sua aplicação nas instituições teve muito de atabalhoado e denotou ignorância quanto ao que está em jogo. As reformas feitas na maioria dos nossos parceiros foram bastante prudentes. A Itália cometeu erros graves e está a tentar corrigi-los. Suspeito que os erros portugueses sejam mais graves por terem um impacto mais profundo, mas menos visível no imediato. A desvalorização da licenciatura e a invenção do mestrado integrado envenenou o sistema. O grande desafio dos próximos anos é a empregabilidade dos novos licenciados e o falhanço será total se não houver políticas públicas de apoio. A experiência francesa e os remédios propostos no recente relatório presidencial são disso um excelente exemplo. Uma outra questão é a de saber se a nossa solução será estável face á concorrência da nova solução espanhola (ainda em tramitação parlamentar). Esta solução espanhola é mais robusta e poderá vir a vingar nos países em que a transição para o superior se faz aos 18 anos.
5.    Rede de educação superior. Temos na educação superior o mesmo percentual que a Espanha e um pouco menos que a França. Tornado em sentido lato, a dimensão do sistema vai crescer ainda. O problema que se põe é o de reconversão de parte do actual e a expansão das novas formas que absorvam a procura pelos (muitos) alunos que vão começar a chegar ao terminal do secundário pelas vias mais vocacionais. Nos próximos anos vai duplicar o número de jovens que se mantém na escola aos 18 anos! Depois do amaciamento feito, as instituições estão preparadas para tudo, assim haja ideias claras do que se pretende delas.
6.  Autonomia/governação. Quase tudo foi dito já, mas a necessária mudança só será aceite em situação de crise generalizada. Estão criadas as condições para que apareça a liderança política e aqui está uma área onde poderemos ganhar um avanço em relação aos nossos vizinhos pois que o tema foi excluído da agenda política do actual governo espanhol.
7.   Carreira docente. Ternos um estatuto que foi excelente quando foi redigido em 1979! A maioria dos projectos que foram discutidos nos últimos vinte anos teria piorado a situação. O último que chegou a ser discutido e a ter o acordo passivo dos sindicatos era menos mau, mas, mais uma vez, o governo caiu... Será que agora chega ao fim? E que há coragem de melhorar? Para mim, o grande teste será a seriedade da Agregação! A situação actual é má, mas a sua abolição é pior.
8.    Ciência. Se lermos os jornais, está tudo bem. Se perguntarmos aos cientistas, eles dirão que ainda não sabem porque ainda esperam pelo dinheiro contratado para o ano passado ou para anos anteriores... Continua a política de fuga para a frente compensando a incapacidade de cumprir os compromissos passados com a assunção de novos compromissos. Não temos indicação de que este ciclo vicioso seja ultrapassado nem que as dívidas sejam alguma vez pagas pela receita usual na saúde. Dos compromissos com o MIT & similares não digo nada porque ao aplauso público daqueles que pensam vir a beneficiar não corresponde uma explicação privada. É certamente um excelente negócio para as universidades estrangeiras, um negócio inovador, único. Não o perdem e até podem ir falar com meninos da escola da Amadora para televisão mostrar. Tudo se compra! 
É tempo de concluir para afirmar que o terreno está fértil para as sementeiras de Inverno e que as propostas sopradas à OCDE poderão passar ao terreno na Primavera quando outra esperança vier aquecer os nossos ânimos. Continuo optimista e confiante de que este Inverno passará!

Um abraço,
JFG
23nov06

domingo, 16 de dezembro de 2018

Ética da Investigação







A liberdade de pensamento e acção é um princípio básico da actividade de investigação, mas é também uma fonte de enorme responsabilidade pessoal pelo que o investigador faz, como faz e para que faz. A liberdade é um instrumento para o seu sucesso e como tal é reconhecida na Carta Europeia dos Investigadores, adoptada pela Comissão Europeia em 2005:

Os investigadores devem realizar a sua investigação tendo como objectivo o bem da humanidade e a expansão das fronteiras do conhecimento científico, gozando simultaneamente da liberdade de pensamento e de expressão, bem como da liberdade para determinar os métodos adequados para a resolução dos problemas, ...
No entanto, os investigadores devem reconhecer as limitações a esta liberdade que poderão decorrer de circunstâncias específicas da investigação ou de restrições operacionais, por exemplo, questões de ordem orçamental ou infraestrutural ou, principalmente no sector industrial, questões de protecção dos direitos de propriedade intelectual.

Este artigo analisa alguns aspectos do comportamento ético dos investigadores, de todos os investigadores no seu processo de busca e disseminação do conhecimento. Indicadores internacionais apontam para uma desejável despesa de 3% em investigação, o que dá uma medida do impacto desta actividade na nossa sociedade e também uma medida da população activa envolvida. Sendo uma actividade competitiva por natureza, presta-se à manifestação do que de melhor têm os humanos, mas também do pior. Lado a lado, trabalham em investigação homens e mulheres que se dedicam inteiramente a levar mais longe o conhecimento e a compreensão de si próprios e do mundo que os rodeia.
A ciência moderna construiu progressivamente, desde o século XVI europeu, uma metodologia rigorosa de concepção de novos conceitos e processos, da sua demonstração e da disseminação dos resultados. Esta disseminação baseia-se na prévia validação por pares, um processo de filtragem altruísta (em geral confidencial e não paga) pelos melhores e mais experientes, mas também aberto ao que de pior é capaz um humano. Com efeito, desde que este processo começou com a apresentação de resultados em reuniões (e respectivas actas) das academias científicas do século XVII que se reconhecem dificuldades, mas é ainda o melhor processo de construir o progresso da aventura do conhecimento humano.
A investigação médica tem adicionalmente as suas regras de autocontenção, formalizadas após a Segunda Guerra Mundial à medida que foi sendo conhecido o sofrimento infringido a muitos prisioneiros em nome do aprofundamento do conhecimento médico. Estas preocupações foram alargadas a todos os tipos de investigação em que o sujeito é humano e, depois, também aos animais. Estes importantes temas serão excluídos do âmbito deste artigo. Também não se discutirão os eventuais limites que os cientistas poderão ou deverão autoimpor-se em áreas tão diferentes como a biomedicina ou o nuclear.
Os aspectos porventura mais relevantes para as considerações da ética na investigação são os de flagrante fraude científica, especialmente quando a aparente impunidade leva os autores ao delírio de proporem descobertas ou interpretações que depois se verifica serem completamente fabricadas. Mas este percurso só é possível porque uma longa série de pressupostos do processo de investigação falham e temos de admitir que estes pressupostos, ainda que consensuais, não são respeitados por muitos investigadores em muitas situações correntes. Só um elevado grau de desleixo permite que se chegue a casos de fraude gritante que envergonha toda a comunidade e não só os seus autores e outros directamente implicados. O processo de investigação depende da confiança mútua de uma enorme comunidade dispersa por todo o mundo e trabalhando em condições muito variáveis. A ninguém convém que as más práticas de alguns conduzam a opinião pública a perder a confiança e, assim, a retrair a disponibilização de fundos públicos de que vive uma boa parte desta comunidade. Daqui até à justificação do encobrimento dos pequenos casos vai um pequeno passo que pode permitir que o mal se continue a expandir.
Relembramos alguns casos de fraude em empresas startup tecnológicas como a Theranos[1]  que chegou a ser valorizada em 9 000 milhões de dólares pela promessa de lançar no mercado um dispositivo portátil para análise sanguínea, somando à fraude científica a fraude empresarial, as quais vieram a ser desmontadas pelo Wall Street Journal (2013). A grande fraude científica, como a do Prof. Diederik Stapel, da Universidade de Tilburg (Holanda), que adulterou dados em 55 artigos, tendo sido demitido e perdido o grau de doutor, é relativamente rara, se bem que possa ser o sinal da “pequena criminalidade” tolerada num ecossistema académico submetido a muitas pressões.

Numa noite de verão de 2011, um professor de 40 anos chamado Diederik Stapel saiu da sua elegante casa de tijolo na cidade holandesa de Tilburg para visitar um amigo próximo. Era quase meia-noite, mas o seu colega Marcel Zeelenberg tinha telefonado a Stapel a dizer que queria falar com ele sobre um assunto urgente. Conheciam-se desde o início dos anos 90, quando eram estudantes de doutoramento na Universidade de Amsterdão; agora eram ambos psicólogos na Universidade de Tilburg. Em 2010, Stapel chegou a diretor da Escola de Ciências Sociais e Comportamentais da universidade e Zeelenberg chefe do departamento de psicologia social. Stapel e sua esposa, Marcelle, tinham apoiado Zeelenberg num divórcio difícil alguns anos antes. Enquanto se dirigia para casa de Zeelenberg, Stapel imaginou que o seu colega teria problemas com sua nova namorada.
Zeelenberg, um homem robusto de cabeça rapada, conduziu Stapel para a sala de estar. "O que se passa?", perguntou Stapel, sentando-se num sofá. Dois estudantes de pós-graduação tinham feito uma acusação, explicou Zeelenberg. Os seus olhos começaram a encher-se de lágrimas. "Eles suspeitam que terás cometido fraude na investigação."
Stapel era uma estrela académica na Holanda e no estrangeiro, autor de vários estudos conceituados sobre atitudes e comportamentos humanos. Naquela primavera, publicou um estudo amplamente divulgado na Science sobre uma experiência feita na estação de Utrecht, mostrando que um ambiente repleto de lixo tendia a induzir tendências racistas nas pessoas. E poucos dias antes, recebera mais atenção da imprensa por um estudo indicando que comer carne tornava as pessoas egoístas e menos sociais.
“Os meus inimigos estão a reagir às mudanças que fiz como diretor”, respondeu Stapel. Quando Zeelenberg o desafiou com detalhes específicos - para explicar porque certos factos e números que ele relatou em diferentes estudos pareciam ser idênticos -, Stapel prometeu ser mais cuidadoso no futuro. Enquanto Zeelenberg o pressionava, Stapel ficava cada vez mais agitado. Finalmente, Zeelenberg disse: "Tenho de te perguntar se estás a falsificar dados." "Não, isso é ridículo", respondeu Stapel. "Claro que não."
[…] No final de novembro, as universidades revelaram o seu relatório final numa conferência de imprensa conjunta: Stapel havia cometido fraude em pelo menos 55 de seus trabalhos, bem como em 10 teses de doutoramento escritas por alunos seus.
[A mente de um vigarista, The New York Times Magazine, 26 de abril de 2013]

A enorme liberdade individual do investigador e, mais geralmente, a autonomia do académico nas suas funções de educador e de investigador criam oportunidades de má-prática difíceis de regulamentar em detalhe, mas que não dispensam as organizações de acompanhar e sancionar eficazmente quando detetem práticas eticamente inaceitáveis. Serão sempre inevitáveis alguns desvios individuais nesta busca de compromisso entre a liberdade e a autonomia técnica individual e o respeito pelo outro, seja ele objecto da investigação ou parceiro ou colaborador directo. E o equilíbrio socialmente aceite não será permanente. Se, no passado, a menor dimensão do sistema de investigação e o maior afastamento e incompreensão da sua prática e da metodologia de trabalho lhe permitiam uma enorme autonomia (mesmo se houvesse rumores de desvios reprováveis), a opinião pública é hoje muito mais exigente e o impacto social atinge uma escala desconhecida da geração anterior. Interessa, pois, ter consciência dos problemas no sentido de sensibilizar os investigadores para as suas obrigações e as instituições para a necessidade de manterem sistemas de acompanhamento e intervenção quando necessário.

1. O processo de investigação científica

A investigação científica é o processo de descoberta dos factos e de compreensão dos fenómenos que ocorrem à nossa volta, contribuindo para a resolução de problemas na medida em que melhora a compreensão do mundo.
O processo de investigação científica foi desenvolvido a partir do século XVI. A publicação dos trabalhos pelas academias, depois de escrutinados por um dos seus membros, foi um passo determinante para o que é hoje a prática corrente da revisão pelos pares (peer review). Estes trabalhos, apresentados inicialmente como actas das reuniões das academias, surgem depois como publicações regulares, sendo hoje consideradas como precursoras e mais antigas revistas científicas. É o caso dos Comptes Rendus da Académie des Sciences[2] (Paris) e das Philosophical Transactions da Royal Socienty[3] (Londres) que considera estar em publicação regular desde 1655. Mantém-se o desiderato enunciado no editorial de Henry Oldenburg dedicado à Royal Society na sua primeira publicação: O Grande Deus dar-te-á força para o nobre desiderato da dispersão do verdadeiro esplendor de Suas obras gloriosas, e as felizes invenções do homem cumpridor em todo o mundo, para o benefício geral da humanidade. Não foi diferente a história de outras academias, desde a fundação da Accademia dei Lincei em 1603, em Roma.
As academias europeias do século XVII nascem como assembleias de discussão das descobertas dos seus membros e as publicações passam assim a ter uma prévia revisão por pares. De acta de uma reunião, passa a colectânea de artigos apresentados ou simplesmente enviados para publicação, isto é, aceites por um dos membros que lhe dá o seu selo de aprovação. A avaliação por pares começa assim por um entendimento entre cavalheiros, com todas as virtudes e os defeitos de uma tal sociedade bem retratada por Carl Djerassi e Roald Hoffman em Oxigénio[4].
A massificação do processo de publicação criou novos problemas sem resolver os originais. As tentações de nepotismo mantêm-se, agora protegidas pelo anonimato do enorme grupo de potenciais avaliadores. O ritmo de publicação aumentou imenso criando dificuldades crescentes com a disponibilidade de avaliadores desinteressados e de alta valia científica.
Nos últimos decénios, a pressão sobre os investigadores para publicarem regularmente um grande número de artigos (ou outros produtos de investigação) cresceu imenso. Várias causas contribuem para esta nova realidade. Por um lado, o aumento do financiamento público da investigação científica no após Segunda Guerra Mundial foi enorme em consequência do reconhecimento dos contributos fundamentais dos investigadores universitários para o esforço de guerra, em especial no Reino Unido e nos Estado Unidos (do lado dos vencedores). Este maior impacto nas contas públicas implicou um maior escrutínio político e também da opinião pública, levando à necessidade de os investigadores explicarem ao público leigo a relevância do seu trabalho e o contributo dos seus resultados para o bem-estar da sociedade. A progressiva penetração da Nova Gestão Pública iniciada no Reino Unido a partir do último quartil do século passado conduziu também a que os estados procurassem medir o sucesso da sua despesa em investigação, o que chegou tarde a Portugal, ainda mais preocupado com a dissimulação de aparências do que com a busca de melhor desempenho essencial. Essa postura oficial de governos e lideranças institucionais não impediu que a pressão do “publish or perish” (“publicar ou perecer”) tenha afectado fortemente a prática diária dos nossos laboratórios. Temos sinais de que há publicações repetidas em plágio do alheio ou em autoplágio, nomes de autores que não deram contributo significativo, mas em que a estratégia de grupo se sobrepõe ao estímulo do trabalho individual e a boa prática internacional de política editorial tem dificuldade em penetrar em alguns meios que se pretendem já de sucesso.
Convencionalmente, o processo de investigação científica implica (i) a identificação de um objectivo, (ii) a formulação de hipóteses de solução ou explicação; (iii) a definição de um plano de acção; (iv) a execução do plano de acção e recolha de dados; (v) a análise dos resultados e validação da hipótese e, finalmente, (vi) a publicação das conclusões por um canal em que o relatório seja submetido a uma prévia avaliação por pares. A pretensão de que todo este processo decorra de forma linear e sem a influência de opiniões, sentimentos ou preconceitos é um ideal difícil de concretizar. Em geral um aluno de investigação começa por estudar a literatura de enquadramento de um certo problema ou área de trabalho para se vir a fixar num problema já abordado e procurar replicar a cadeia de experiências e de análise de dados já publicada. É nesta tentativa de replicação que vão surgir as ideias inovadoras quanto ao método ou aos caminhos alternativos para chegar ao mesmo resultado. Mais importante ainda é que é neste processo que o aluno poderá encontrar pistas para a formulação de outras hipóteses que lhe abram o caminho a trabalho inédito e a novas descobertas. Nesta fase o papel do orientador é crucial, não só para propor um problema ou uma área de trabalho promissor (que o estudante inexperiente terá dificuldade em identificar) como também para colocar as perguntas certas para abrir novos caminhos de indagação.
Raramente o processo de investigação e de criação ou inovação segue este modelo linear, resultando este mais de uma racionalização a posteriori. Em contrapartida, a pressão para mostrar os resultados na forma de uma publicação rápida e frequentemente repetida leva a que o processo seja focado mais na construção de uma ou várias publicações desenhadas (e até escritas) a priori ficando para o fim a simples recolha de alguns números que lhe deem sustento formal.

2. O percurso educativo como escola de hábitos

A investigação em ambiente académico é a última fase de um processo educativo longo que começa no infantário, onde também deve começar a sensibilidade para estes problemas. Terão os educadores e os pais a sensibilidade suficiente para compreenderem que o pedido de um trabalho de casa sobre as pirâmides do Egipto vai resultar no plágio ou, pelo menos, na transcrição não referenciada de imagens e frases recolhidas da internet sem preocupação de direitos de autor? Não há tanto plágio no básico e no secundário porque são menos frequentes os trabalhos escritos requeridos dos alunos e avaliados pelos professores. Testes e exames mal controlados por quem tem a obrigação de garantir a equidade existem e sempre existiram em todo o mundo, sendo particularmente bem tolerados entre nós. A raridade dos casos detectados e sancionados não é certamente medida da frequência de comportamentos incorrectos de alunos e de professores (que deviam ser) vigilantes. O panorama do ensino superior nesta matéria não será melhor se a raridade dos casos conhecidos puder servir de guia. Recorro a ilustrações estrangeiras, sendo que a falta de visibilidade nacional destes casos poderá denunciar as piores razões:
...descobriu que, num ano, cerca de 100 dos seus cerca de 700 estudantes no curso [de ciência dos computadores] tinham violado as normas de colaboração e cópia de código.
 [Randy H. Katz, University of California, Berkeley, NY Times, 1 de junho de 2017]

Mais de 60 dos estudantes inscritos no semestre de inverno de 2016 no curso CS50 foram chamados ao conselho de honra/.../ numa onda de fraude que levou o conselho ao limite... Este conjunto de casos representa cerca de 10% dos 636 estudantes que frequentaram este famoso curso de introdução à ciência dos computadores.
 [The Harvard Crimson, 25 de maio de 2017]

Não basta esperar que algum beneficiário deste laxismo atinja uma posição de visibilidade política para garantir a autorregulação das instituições. Estes “acidentes” académicos têm ocorrido em muitos países e não deixam uma boa imagem pública da academia. Se em Portugal os casos públicos são de uso e provável abuso dos meandros da letra da lei, a chanceler alemã Angela Merkel já perdeu dois ministros por plágio de teses de doutoramento.
O problema é mais generalizado[5] mas não convém, nem às instituições, nem aos envolvidos, que a situação seja conhecida. Por isso, resta a divulgação pública por contra-interessados em concursos públicos ou de figuras mediáticas. Em vários países europeus, o escrutínio do currículo académico apresentado por aqueles que assumem lugares políticos de primeiro plano é já uma rotina para os media.
Embora todos estejam de acordo com a ideia de que os resultados devem depender do esforço individual e que todas as práticas que quebrem a equidade entre os alunos são condenáveis, a pressão social vai frequentemente no sentido inverso. A repulsa pela delação conduz rapidamente à conivência com más práticas conhecidas e depois toleradas. O bom colega é aquele que “ajuda” o outro, ainda que para seu prejuízo a longo prazo e implicando a falsificação do sistema de ensino e certificação. Num estudo recente resultante de um projeto financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT)[6], dois terços dos estudantes inquiridos dizem deixar os colegas copiar e mais de 50% dizem copiar, enquanto que a predisposição para denunciar colegas que copiem é praticamente inexistente. Se a maioria copia e deixa copiar e apenas 5% dizem ter sido detectados, então o crime compensa. Acresce que o castigo máximo, e muito raramente aplicado, é o da anulação da prova, um resultado equivalente à reprovação. O resultado do castigo é igual à consequência da ausência de infracção, a reprovação por não saber responder ao exame... Não há dados sobre a perspectiva dos docentes a quem compete fazer cumprir as boas práticas de avaliação, mas este posicionamento dos estudantes só é possível com um grave e reiterado laxismo ou mesmo incumprimento do dever de zelo dos docentes[7].
O hábito de pedir trabalho original aos estudantes está ainda mal firmado na cultura académica portuguesa e as dissertações (finais) de mestrado (pós-Bolonha) têm em geral objectivos muito limitados. Mesmo assim, há indicações generalizadas de casos de plágio grosseiro e não é difícil encontrar na internet a oferta de “Trabalho original (isento de plágio) e exclusivo”. Começa a generalizar-se o uso de programas de verificação do eventual plágio, embora nos casos grosseiros, uma simples busca textual no Google permita detectar o trabalho não original.
É importante a maior sensibilização dos professores de todos os níveis educativos para estes problemas, o que só deverá resultar de uma maior pressão social. De facto, a admissão destas falhas quebra a confiança do público em docentes e instituições. Tal como se verifica na fraude em empresas, é normalmente considerado preferível a discreta acomodação para limitar os danos. Mas a credibilidade do sistema e o valor social dos diplomas acabam por se perder, desvalorizando o sistema e prejudicando, muito especialmente, os mais frágeis. A seriedade do sistema educativo, com o seu sistema tradicional de diplomas, é mais importante para aqueles menos dotados socialmente pelas suas origens e ligações familiares. Para os outros, a rede de ligações sociais é frequentemente suficiente para abrir as portas a percursos profissionais mais confortáveis.

3. Área de investigação: escolha do problema, sua relevância social e viabilidade técnica

No âmbito universitário, o contrato do docente/investigador supõe, em geral, uma grande liberdade de acção quanto à área de investigação e aos métodos a implementar. Mesmo quando a contratação é justificada pela relevância da área de trabalho do candidato para a estratégia da instituição, a liberdade mantém-se. Esta realidade justifica-se pelo facto de os resultados da investigação poderem ser vistos como um subproduto da função educativa da universidade no desenvolvimento de doutoramentos e pós-doutoramentos. Neste quadro, as opções do docente/investigador são mais influenciadas pelas agências de financiamento do que pela universidade. A situação é em geral diferente em institutos públicos de investigação vocacionados para áreas bem definidas da economia (actual ou esperada no futuro). Aí não é raro ocorrerem grandes restruturações desenhadas para refocar a actividade nos objectivos definidos num novo plano estratégico. Em instituições privadas, o financiador tem geralmente ideia clara dos objectivos e pretende garantir o alinhamento do esforço de todas as equipas com esse objectivo último. A liberdade individual é então limitada, cabendo ao investigador demonstrar que o seu trabalho está directamente (ou indirectamente) contribuindo para o sucesso da estratégia da instituição.
A responsabilidade ética individual cresce na medida em que os termos contratuais lhe deem maior liberdade. Cada vez mais, esta liberdade poderá ser usada para prosseguir um interesse pessoal de (i) construir um currículo considerado mais relevante pelos pares ou (ii) atingir resultados com provável valor comercial e com um expectável retorno pessoal. Estes mecanismos podem excluir importantes problemas cuja resolução não dê um provável retorno financeiro. Uma área bem conhecida de falha dos mecanismos comerciais de estímulo à investigação é o das doenças características dos países mais pobres em que tem havido iniciativas de fundações que sentiram ser sua obrigação contribuir para o bem da humanidade criando estímulos onde o mercado tem falhado. Neste quadro, o espaço de opção individual é muito grande pela maior facilidade de um académico identificar uma oportunidade e assumir o risco de investir pessoalmente na sua prossecução. Para além da responsabilidade pela adesão pessoal a uma linha de pesquisa, não devemos esquecer a possibilidade de renunciar em participar num esforço se tiver reservas éticas em relação à eventual aplicação dos resultados esperados.

4. Vida em grupo de investigação

Um académico, enquanto responsável por um grupo de investigação, tem grande autonomia no funcionamento da sua unidade, ainda que inserida numa grande instituição. Mesmo quando as regras burocráticas são pesadas (e há algum tipo de queixas em todos os países, independentemente da cultura organizacional) e disciplinadoras, há sempre um enorme espaço de decisão pessoal quanto aos financiamentos a procurar e às linhas de investigação a desenhar e propor a financiamento, ou quanto aos estudantes de doutoramento a aceitar ou aos investigadores seniores a contratar. Destas decisões depende não só o sucesso do próprio investigador responsável, mas a vida profissional (e até pessoal e familiar) de muitas outras pessoas.
A complexidade das relações interpessoais num grupo de investigação exige a compreensão da posição de cada indivíduo e das suas obrigações na visão clara da sua função educativa de transmissão de conhecimento e de experiência:

- Relações horizontais (entre investigadores num mesmo nível)
- Autonomia individual
- Cooperação, entreajuda entre pares
- Respeito mútuo num espaço de competição
- Relações verticais (entre investigadores em diferentes níveis)
- Obrigações do investigador sénior perante os membros do seu grupo
- Obrigações do investigador júnior perante os seus pares e o seu sénior

4.1. Obrigações do investigador sénior

Um académico investigador sénior de uma universidade não pode nunca perder de vista a sua função de educador e a (enorme) liberdade de operação que lhe é concedida como instrumento para um melhor desempenho da sua função de educador. O aluno de doutoramento é um educando cujo futuro depende do orientador, sem com isto menosprezar a responsabilidade individual do mais jovem pelo seu trabalho e sucesso. No trabalho conjunto orientador-orientando, busca-se o sucesso do educando, tendo de se ver o sucesso do educador como resultado subsidiário. Nunca se pode assumir que o estudante existe para assegurar o sucesso do orientador qual escravo que existe (existia, desejaríamos crer) exclusivamente em ordem ao êxito material ou moral do seu senhor.
Idealmente, o sucesso do grupo traduz-se em sucesso individual de todos os seus membros, o que, por sua vez, se traduz numa maior valorização dos currículos individuais. O responsável procura escolher os melhores alunos e colaboradores, aqueles que lhe parecem mais promissores para atingir os seus objectivos. Os alunos e pós-docs procuram ser aceites pelos orientadores cujo trabalho lhes parece mais interessante e alinhado com os seus interesses pessoais e lhes poderão facilitar uma melhor etapa curricular. Neste funcionamento ideal, haverá sempre tensões saudáveis de acerto entre todas as partes no respeito dos conhecidos objectivos de cada uma e da justa decisão de quem tem essa obrigação. O responsável será igualmente exigente perante todos os seus colaboradores e respeitará a devida atribuição dos contributos de cada um deles. Haverá alunos mais ambiciosos, mais competentes e inovadores. Haverá orientadores mais ambiciosos e exigentes, o que deverá ser aceite como resultado da saudável variabilidade das pessoas. Haverá que corrigir escolhas erradas para que o sistema se aproxime do emparelhamento óptimo em termos de resultados globais. Mas não haverá espaço para nepotismo na selecção dos alunos e colaboradores nem será protegido um colaborador que falhe as suas obrigações. A lógica do sistema é que o orientador e o estudante tenham toda a liberdade para encontrar o parceiro certo na expectativa de melhor desempenho e melhores resultados para ambos. Uma situação muito diferente da contratação de pessoal permanente ou com contratos de mais longo prazo em que o impacto positivo e a responsabilidade financeira da escolha recai sobre a instituição, por isso existindo mecanismos burocráticos de partilha de responsabilidade pela decisão.
Enquanto responsável pelo grupo e perito informado dos contributos individuais de cada um dos membros juniores, o investigador sénior actua muitas vezes como juiz para dirimir conflitos entre os investigadores juniores. Quem é o autor principal de uma ideia ou de um desenvolvimento que envolveu vários membros do grupo? Quem deve assinar e por que ordem devem ser colocados os autores de um artigo? Quem deve actuar como coautor de uma patente que resulta de colaborações muitas vezes difusas dentro do grupo? Como qualquer gestor de recursos humanos, o investigador sénior deve ser justo e tem de ser visto como justo na sua relação com todos os membros do grupo, na criação de oportunidades, no apoio à resolução de problemas, nas compensações oferecidas. Um dos problemas mais frequentes é o da autoria ou coautoria das publicações e cabe normalmente ao investigador sénior ter definido uma política de grupo e arbitrar as dúvidas supervenientes. Não pode ser excluída a possibilidade de publicações sem o nome do investigador sénior, quando ele de facto não tenha dado um contributo intelectual relevante. Parece excessivo considerar que o simples facto de ter disponibilizado o financiamento da bolsa (ou contrato) e do espaço e instrumentos básicos de trabalho justifiquem a assunção da autoria dos trabalhos resultantes. O investigador júnior não é um assalariado do sénior. É-o quando muito da universidade ou da instituição de investigação cuja ligação deve ser reconhecida através de “agradecimento” ou do simples endereço.
A troca de ideias e a absorção de conhecimento desde sempre ocorreram através da mobilidade dos académicos, especialmente na fase formativa. O investigador sénior tem de ter a noção de que é parte deste processo e que tem de respeitar o interesse dos colaboradores juniores na sua busca de experiência e de uma via própria de afirmação científica pessoal. Um investigador júnior que pretenda transferir-se para outro grupo nunca pode ser visto como estando a atraiçoar a expectativa do seu patrono sénior. Estamos numa relação educativa que é assimétrica por natureza tendo o mais júnior o direito de procurar construir um percurso individual diferenciador e tendo para isso o direito ao apoio altruísta dos seus seniores. A decisão de um investigador júnior pode ser prejudicial ao projecto que o seu orientador tinha (trabalhosamente) concebido; mas ele tem sempre o direito a arriscar uma alternativa. Não está vinculado por um laço de servidão aos interesses do seu colaborador sénior. Para este, uma decisão incómoda deste tipo deve ser perspectivada como um acidente de percurso: faz parte do risco que ele deve sempre considerar como próprio da sua actividade.

4.2. Obrigações do investigador júnior

O investigador júnior, aluno de doutoramento ou pós-doc, tem de assumir a sua responsabilidade pessoal pela escolha e pelo desenvolvimento do seu projecto, dando uma colaboração leal ao seu orientador e contribuindo para o bom ambiente de trabalho e para a cooperação entre todos os membros do grupo. A distinção entre trabalho próprio exclusivo e trabalho conjunto nem sempre é fácil de estabelecer. O processo de investigação envolve uma teia de colaborações com níveis de proximidade muito variáveis e também um despique competitivo sempre presente e por vezes muito duro. Em geral, o investigador júnior insere-se numa linha de investigação pré-existente e beneficia do trabalho anterior e dos meios materiais e da estratégia de investigação já estabelecidos. Espera-se que contribua para reforçar esta cultura de trabalho e para a consolidação dos meios disponíveis para o trabalho actual e futuro do grupo. Beneficia inicialmente da dinâmica pré-existente e tem obrigação de contribuir para o reforço desta dinâmica para benefício de todos os membros presentes e futuros desse grupo. Beneficia das condições de trabalho que encontra já estabelecidas e contribuirá para que melhores condições de trabalho possam ser oferecidas a outros educandos. O êxito de todos os membros do grupo depende muito do bom ambiente de trabalho e da criatividade das interações entre todos. Esse ambiente é a verdadeira escola em que todos crescem e que alimenta o êxito de cada membro. Todos devem sentir a obrigação de contribuir e, ao fazê-lo, estão a crescer também como investigadores e futuros responsáveis por equipas de investigação ou de trabalho com objectivos de outro tipo. A educação é sempre um processo socializado.
A formação avançada em ambiente ou na prática de investigação é ainda mais claramente um processo social. Envolve a análise dos resultados já obtidos para construir nessas bases ou para reconstruir novas bases. Nada é definitivo. Pode discutir-se o que é verdadeiramente um contributo novo e o que é um pequeno avanço sobre o já conhecido; mas o dia-a-dia do investigador decorre a enfrentar o desafio pessoal de compreender os resultados reportados por outros e os seus próprios resultados de observação. Há sempre um elemento de relação com outros, com aquilo que formalmente já apresentaram ao público ou com o conhecimento tácito que passa directamente entre as pessoas imersas numa determinada prática. Todos os investigadores, e muito especialmente os mais juniores, beneficiam destes mecanismos de aprendizagem e têm também obrigação de contribuir para que a cadeia de aprendizagem mantenha a sua vitalidade. Esta componente de solidariedade para com a comunidade, especialmente para com os mais próximos, não diminui o direito a assumir a autoria ou coautoria da inovação significativa para que tenha contribuído.
Em ciência, a identificação do problema é geralmente mais relevante do que a sua solução. Para a relação entre colaboradores sénior e júnior é típico que o orientador comece por guiar o aluno de doutoramento até ao problema que lhe cabe resolver ou esclarecer aprofundadamente. Mais tarde, será de esperar que o próprio aluno encontre o seu problema dentro da área de trabalho para que foi guiado pelo orientador. Em qualquer caso, o aluno deve reconhecer o mérito compartilhado do seu contributo, mesmo que o orientador não tenha precisado de fazer mais do que o encaminhar para o problema. Muitas vezes, o grupo especializa-se num conjunto de técnicas (laboratoriais, computacionais, etc.) e procura depois os problemas onde essas técnicas podem ser aplicadas. Uma vez publicada, a técnica deixa de ser “propriedade” de um investigador ou grupo de investigação. A publicação deve implicar que qualquer outro investigador devidamente habilitado possa reproduzir o trabalho publicado. A possibilidade de reprodução dos trabalhos científicos está na base da ciência moderna e toda a publicação deverá ser avaliada nesta perspectiva. A utilização de uma técnica por outrem é sinal de reconhecimento do seu mérito e deve ser apreciada positivamente e nunca vista como “furto” de segredo. O aluno que tenha contribuído para o desenvolvimento de uma técnica inovadora tem o direito de reportar o seu contributo mas o seu direito termina aí. Se outrem se apropria da ideia e dos testes efectuados para o reportar sem o reconhecimento do verdadeiro autor está a cometer um crime. Mas se o autor pretende manter os seus resultados publicados sob reserva, impedindo por qualquer meio a sua reprodução por outrem, está também a faltar a uma regra básica:  uma publicação incompleta não tem o mérito efectivo de publicação por exigir de outrem a redescoberta dos “segredos” retidos.

4.3. Publicação (o autor, o avaliador, o editor)

A publicação com avaliação prévia por pares desempenha hoje um papel central no sistema científico mundial. Tal como já indicado, o início deste processo é normalmente associado às academias fundadas no século XVII, especialmente à Royal Society (Londres) e a publicação, a partir de 1665, das suas Philosophical Transactions (esta primazia é por vezes contestada pelo Journal des Sçavants que começou a ser publicado uns meses antes, mas não manteve a publicação regular desde então.) Outras academias europeias seguiram o exemplo. A função dos membros das academias na recepção e aceitação de manuscritos de autores externos mantém-se em muitas revistas onde há um conjunto de editores que podem receber e decidir da sorte do artigo submetido. Mas o processo atingiu hoje uma dimensão extraordinária com a duplicação em cada 9 anos do número de artigos publicados desde a Segunda Guerra Mundial e é dominado por algumas poucas empresas comerciais muito rentáveis. Especialmente nestes últimos 70 anos de crescimento rápido, o modelo de publicação com avaliação por pares estabilizou nas áreas científicas e foi mais recentemente adoptado pelas ciências sociais e pelas humanidades.
O editor de uma revista tem hoje um enorme poder em relação ao que se publica. Do ponto de vista do autor, a alternativa é recorrer a outra revista.  As boas práticas de edição e publicação são consensuais; mas são demasiado frequentes as queixas de falhas deontológicas graves. A pressão comercial é certamente um factor fortíssimo que nunca será esquecido pelo editor. A falta de qualquer esforço de regulação externa por parte da comunidade científica deixa o espaço livre para a discreta omissão de deveres básicos na escolha de avaliadores, na justificação da decisão de aceitação ou rejeição e no tratamento de problemas de integridade científica. O processo de avaliação por pares e publicação não tem vivido bem com o enorme crescimento do número de artigos e a proliferação do número de revistas científicas. O número de investigadores cresceu muito e o número de países que investem em investigação aumentou; a pressão sobre os investigadores para que publiquem não para de crescer; todo o sistema torna-se mais massificado e anónimo.
Um sistema desenhado para o bom convívio de cavalheiros não criou ainda os mecanismos de controlo eficazes para esta fase massificada. Os avaliadores não vêm a justificação moral nem material para dedicarem o tempo necessário a uma boa avaliação; a seleção de avaliadores é frequentemente deficiente não sendo raro que artigos para revisão cheguem a simples alunos de doutoramento. Os editores são pressionados para aumentar os lucros, assegurando que a revista cresce em volume e em prestígio, evitando o conhecimento público de todas as deficiências que ocorram. Os editores de sociedades científicas estarão um pouco mais livres e sujeitos mesmo a pressão interna para manter a qualidade, mas a frequente dependência da sociedade dos lucros da edição modera certamente as aspirações a serem diferentes.  Os esforços da comunidade para exercer algum controlo sobre as revistas, por exemplo na recolha de artigos retirados a posteriori (retratados) tem ainda efeito muito limitado.
O sistema actual de publicação é caro, pede muito trabalho gratuito (ou pago pelos estados que têm a seu cargo os salários da maioria dos investigadores) e os autores são obrigados a ceder a propriedade dos artigos às empresas que depois lhes vão vender o acesso a essa informação. O contributo das empresas é o de organizarem o sistema de avaliação e arquivo, mas sempre numa perspectiva do seu interesse imediato e directo. São, as mais importantes, empresas cotadas na bolsa. Mas não há ainda boas alternativas à publicação como a conhecemos apesar dos elevados custos pagos por fundos públicos para a publicação e, depois, para o tratamento dessa informação em bases de referência. A posição dominante de algumas poucas empresas no mercado não facilita o esforço no sentido de encontrar outro modelo, seja na vertente de publicação aberta, seja na avaliação pós-publicação.


5. Em jeito de conclusão

Os sinais que vão surgindo, mesmo entre nós, apontam para a necessidade de uma maior consciência pública da necessidade de regular a actividade de investigação e exigir de todos os parceiros uma maior vigilância para o cumprimento dos princípios éticos em que a metodologia de investigação científica se baseia. A Comissão Europeia[8] tem dado fortes sinais dessa preocupação com a revisão recente do código de conduta para a integridade da investigação científica[9] e o incentivo para que todos os países desenvolvam o seu próprio código de conduta.
Um recente relatório de consenso entre as academias nacionais de ciência, de engenharia e de medicina dos Estados Unidos[10] conclui pela necessidade de reforçar as políticas e os mecanismos de garantia de que as alegações de má-prática são investigadas. Algumas recomendações deste relatório vão mais longe ao aconselhar o reforço das melhores práticas já seguidas. Em relação à autoria de publicações, defende-se a clarificação de quem deve ser considerado autor e para a necessidade de indicar um ou mais autores como responsáveis pelo conjunto do trabalho e havendo sempre a descrição de qual foi o contributo de cada autor. A afirmação de que as agências financiadoras e os editores de livros e revistas devem assegurar que os resultados podem ser reproduzidos por outros investigadores sugere a deficiência da prática actual, infelizmente, bastante generalizada. Mas estes problemas só podem ser identificados por outros cientistas, muitas vezes colaboradores dos infratores, criando problemas delicados de investigação, mas exigindo sempre garantias de protecção dos denunciantes. Estes problemas estão já em discussão académica entre nós[11] mas precisam de uma atenção mais sistemática e empenhada da parte das instituições académicas e das agências financiadoras.
A disciplina das revistas internacionais exige uma acção regulamentar também internacional que garanta que as preocupações éticas com a prática de publicação e com a integridade da investigação estão razoavelmente garantidas. O esforço de muitos países e também da União Europeia para garantir a publicação aberta tem por objectivo a maior disseminação dos resultados, mas também a diminuição dos elevados custos de acesso à bibliografia. Associado a este esforço, poderia introduzir-se uma agenda de boas práticas editoriais que induzissem um maior cuidado das editoras para a integridade e a reprodutibilidade dos resultados reportados. Todos os parceiros e especialmente as agências financiadoras e as instituições universitárias e de investigação têm obrigação de velar pela integridade da investigação financiada e executada. Para isso têm de ser bem conhecidos os mecanismos de denúncia e investigação de situações de alegada má conduta. A organização corporativa tradicional das universidades e a assimetria de poder dos investigadores implicam um cuidado especial para proteger os denunciantes, mas também evitar as denúncias triviais ou abusivas.

Versão de: José Ferreira Gomes, Ética da investigação científica, PP. 343-367, Ética Aplicada: Investigação Científica, Coord. Maria do Céu Patrão Neves e Maria da Graça Carvalho, Vol. 12, ISBN: 978-972-44-2136-0, Edições 70, Lisboa, 2018.


Referências e leituras recomendadas






[1] New York Times, Editorial, 15 de março de 2018, https://www.nytimes.com/2018/03/15/opinion/theranos-elizabeth-holmes-fraud.html, consultado em 11 de junho de 2018.
[2] « L’Académie des sciences, une institution hors du temps », Le Monde,‎ 30 octobre 2015
[3] The Royal Society, https://royalsociety.org/about-us/history/, visto em 4 de julho de 2018.
[4] Oxigénio, Uma peça em dois atos e 20 cenas, Djerassi, C., Hoffmann, R., Editora da Universidade do Porto, 2005, ISBN: 9789728025427.
[5] A Universidade de Coimbra deteta 60 casos de plágio, Jornal Sol, 26 de Maio de 2015, https://sol.sapo.pt/artigo/393558/universidade-de-coimbra-detecta-60-casos-de-plagio em julho de 2018.
[6] Almeida, F., Seixas, A., Gama, P., Peixoto, P., “A fraude académica no ensino superior em Portugal: Um estudo sobre a ética dos alunos portugueses”, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, ISBN: 978-98926-1069-6, DOI: http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1070-2
[7] Por volta de 2005, foi relatado na imprensa o caso de um estudante português que fazia Erasmus em Helsínquia. O vigilante de um exame folheou o dicionário que o estudante pousara sobre a mesa e encontrou uma série de notas sobre o tema do exame. Logo lhe disse para ir à secretaria do Departamento no fim da prova. Em pouco tempo, teve a decisão. A prova era anulada e devia abandonar de imediato aquele intercâmbio Erasmus. A universidade portuguesa foi de imediato informada da situação e notificada de que não seriam aceites mais estudantes.
Do lado português, a surpresa foi completa pelo excesso da pena face a uma prática que nem sequer teria sido consumada. Que o processo sumaríssimo não teria tido sequer contraditório. Que qualquer docente português numa situação similar teria atuado com maior compreensão e humanidade.
Mais grave, a experiência portuguesa é que o castigo não seria provavelmente confirmado em recurso judicial em Portugal onde os direitos e as garantias do estudante descarrilariam o caso, podendo mesmo chegar à penalização da universidade por danos materiais e morais.
[8] Moedas, C., “Ciência, Inovação e Sociedade”, In: Ética Aplicada. Novas Tecnologias, coordenado por Patrão Neves, M. e Carvalho, M. da G., Edições 70, Lisboa 2018, ISBN:978-972-44-2131-5.
[9] The European Code of Conduct for European Researc Integrity, Ver. Ed. ALLEA – All EuropeanAcademies, Berlin, 2017, ISBN: 978-3-00-055767-5, https://ec.europa.eu/research/participants/data/ref/h2020/other/hi/h2020-ethics_code-of-conduct_en.pdf, consultado em Julho de 2018.
[10] Fostering Integrity in Research, National Academies Press, Washington (2017), ISBN:13: 978-0-309-39125-2.
[11] Oliveira, L.A., Ética em Investigação Científica, Lidel, Lisboa (2013), ISBN: 978-972-757-942-6.