Não conseguirei evitar pôr neste cargo uma perspetiva pessoal do que são as universidades privadas em Portugal: Elas prestam um serviço público e estão por isso obrigadas a obter do Governo o reconhecimento do interesse público (Artº.13º, nº 1) e a renovar cada 10 anos este reconhecimento. E este reconhecimento “determina a sua integração no sistema de ensino superior”. É isto que queria aqui sublinhar. Tomarei esta integração como objetivo central deste meu mandato. A integração é hoje muito imperfeita, talvez por haver ainda preconceitos derivados dos anos de crescimento eufórico e nem sempre bem refletido. É tempo de ultrapassarmos esta fase porque os estabelecimentos atingiram agora a idade adulta e comportam-se como tal.
O diário espanhol Cinco Días[1] reportava recentemente o que via como um benefício da concorrência entre a universidade pública e a privada: Dos 3.613 mestrados oferecidos em Espanha só 875 eram de universidades privadas com um valor médio das propinas de 11.500€, enquanto as propinas médias no setor estatal são de 2.500€. Apesar de muito mais caros, um quarto da oferta total tem já quase metade do número de estudantes de mestrado. O número médio de estudantes em cada mestrado estatal é de 50, enquanto nas privadas é de 126. Esta manifesta preferência pelos mestrados das universidades privadas só pode resultar da perceção, confirmada pelas estatísticas oficiais do INE espanhol, de que os graduados do setor privado têm maior empregabilidade e melhores salários.
E o jornal Cinco Días escrevia ainda...
“Longe de ser um problema, a crescente competição das universidades privadas em relação às universidades públicas deveria servir como estímulo para ajudar a melhorar a qualidade do sistema educacional na Espanha e elevar os critérios de rigor e formação dos estudantes. O objetivo final, tanto das instituições públicas quanto das privadas, deve ser beneficiar não apenas os seus diplomados que pretendem diferenciar-se no mercado, mas também contribuir com prestígio e conhecimento para toda a sociedade espanhola.”
Globalmente, o número de estudantes nas universidades espanholas[2] quase não variou de 2000/01 para 2020/21, mas as universidades privadas cresceram de menos de 10% para mais de 20% do número total de estudantes. Cerca de 200.000 estudantes “transferiram-se” das universidades estatais para as privadas!
Portugal seguiu um caminho diferente. O ensino universitário privado cresceu aqui devido à incapacidade de o sistema estatal responder à explosão da procura estudantil por volta de 1990, numa época em que o ensino privado era ainda inexpressivo em toda a Europa Ocidental. Desde então, a oferta privada parece ter estabilizado em Portugal com uma cota de cerca de 20%, enquanto continua a crescer em países como a Espanha e a França ultrapassando aí esta nossa cota de mercado.
Esta realidade é relativamente nova e não parece ter sido ainda bem assimilada pela opinião publicada e pelos decisores políticos. Em Portugal, o sistema educativo estatal está claramente a perder terreno no básico e secundário; no superior, a baixa das propinas no estatal não tirou estudantes ao privado. Pelo contrário, a cota de estudantes nos estabelecimentos privados tem crescido lentamente desde 2015. Temos de aceitar que haverá razões bastante sérias para que seja esta a opção dos estudantes e das famílias. E já não é a falta de vagas...
Apesar de quase todos estarem de acordo com a necessidade de aumentar a diversidade da oferta de educação superior, a regulação e os estímulos estatais apontam todos no sentido da uniformidade. Universidades e politécnicos, estatais e privados obedecem a normas comuns, são forçados a fazer acreditar os seus cursos na mesma agência e vão buscar financiamento a uma única entidade de financiamento da investigação. Na área do financiamento da investigação, o estado parece ter já desistido de estimular alguma diferenciação, mantendo concursos comuns e júris únicos para estabelecimentos universitários e politécnicos. Os estabelecimentos estatais e os privados concorrem no mesmo terreno de jogo, mas este tem estado bastante inclinado e ninguém duvida para onde correm as águas. O estado não tem sabido separar o seu papel de proprietário do papel de regulador de todo o sistema.
Na área da acreditação, a Agência forma Comissões de Avaliação Externa, CAE, com algumas diferenças para cursos universitários e politécnicos, mas dificilmente se dirá que se caminha para a diversidade. Pelo contrário, poderá pensar-se que se caminha em sentido inverso, apenas dando tempo para que as instituições façam o seu caminho para o modelo único. As universidades estatais e privadas estão submetidas aos mesmos reguladores e o objetivo implícito é que adotem um mesmo modelo.
O pedido ostensivo de que cada instituição defina a sua missão e a sua estratégia de longo prazo parece ser mais um sinal da má consciência política do que um objetivo real. De facto, não foram criados indicadores que possam estimular cada instituição a definir o seu perfil e a apresentar-se ao público como buscando a excelência nesse seu espaço de intervenção.
As universidades privadas atingiram hoje um estado de maturidade que merece registo. Da explosão inicial que todos (no setor estatal e privado) pensavam prosseguir sem qualquer limite, tiveram de atravessar a partir de 1996 duas longas décadas de emagrecimento (na cota de mercado). Retomaram depois um lento crescimento que parece ser de consolidação. Na comparação internacional com Espanha e França, pode esperar-se que esta consolidação prossiga na medida em que consigam responder melhor às necessidades dos estudantes. De facto, os estabelecimentos privados poderão ser mais ágeis a adaptar-se às mudanças na economia e no mercado de emprego e à flexibilidade da vida estudantil. O ensino superior estatal tende a fechar-se, reduzindo o número de professores convidados do meio profissional externo. Ao longo dos últimos anos, os profissionais ativos que davam uma pequena contribuição no ensino foram sendo dispensados. A Medicina é provavelmente o caso em que o contrário poderá ter ocorrido pela proximidade aos hospitais de base e porque a maioria dos docentes das áreas clínicas começam pela carreira hospitalar e só mais tarde transitam ou acumulam a carreira universitária. As universidades privadas tendem a manter um maior número de profissionais ativos. Esta caraterística que é vista pela A3ES, e pelo quadro legal vigente, como uma fragilidade pode trazer vantagens aos futuros diplomados na sua entrada no mercado de trabalho. Há espaço de melhoria da legislação e das orientações dadas aos membros das CAEs para equilibrar a componente mais académica e de continuidade do processo educativo com uma melhor exposição à realidade do setor de atividade em que o estudante pretende vir a fazer a sua vida profissional.
É muito importante notar que as universidades privadas não são escolas de ricos que pelas más razões ali foram parar. A sua cota de beneficiários da Ação Social é próxima da média das instituições estatais. Para muitos, a articulação entre o trabalho e o estudo só é possível nos estabelecimentos privados e, tendo experiência de vida profissional, escolhem formações que sabem ser-lhes úteis para o seu desenvolvimento profissional e pessoal. Para a maioria das áreas de educação e formação está aqui a razão do crescimento da cota de estudantes a optar pelo privado. Não há diferença para o que está a acontecer em Espanha e em França. Uma educação superior que recebe mais de 50% dos jovens precisa desta postura para os receber e encaminhar para um caminho que não seja a frustração e a emigração. Para ativos que regressam aos bancos universitários para abrir novas perspetivas de carreira, é também aqui que encontram um percurso mais adaptado às suas necessidades.
Haverá também espaço de trabalho para prestigiar a carreira dos docentes de universidade privada. Embora as condições contratuais devam continuar regidas pela regulamentação geral do contrato de trabalho, como já está a acontecer em várias universidades-fundação ainda que estatais, há aspetos de significado académico que devem ser regulados para dar densidade ao previsto na legislação e para dar sentido à integração de todas as universidades, estatais e privadas num sistema nacional de educação superior. Não aspiramos à opção espanhola de um sistema centralizado de acreditação de todos os docentes universitários (e são todos, de carreira ou não), mas uma regulação mínima daria um merecido prestígio a muitos docentes plenamente dedicados aos seus estudantes e à investigação.
Senhor Ministro, Senhor Presidente da APESP, termino dando-lhes a certeza de que tentarei trabalhar com todos os reitores das universidades privadas para que estas mereçam a plena integração no sistema nacional de ensino superior e confio que a APESP saberá acompanhar este esforço e que o Senhor Ministro estará disponível para nos ouvir e dar plenas condições para que isso aconteça a exemplo do que acontece na Europa.
Na posse como Presidente do Colégio Universitário da APESP