É difícil falar de educação em 2023. No dia 12 de março de 2020, o Governo determinou o encerramento das escolas e, desde então, dificilmente poderemos encontrar uma semana de calmaria na vida escolar. Era um encerramento por quatro semanas para ultrapassar os riscos de propagação dos 78 casos positivos de COVID-19 então identificados em Portugal. E vamos agora entrar no quinto ano de intranquilidade.
Para os mais jovens, as consequências são mais gravosas, ainda que menos visíveis no imediato (especialmente quando os estudos oficiais nos pretendem mostrar efeitos positivos!) O processo educativo dos jovens, desde o pré-escolar até à licenciatura acompanha o desenvolvimento físico (cerebral) e a formação da personalidade e não é substituível por intervenções tardias. No ensino básico e secundário tivemos um dos maiores períodos de encerramento das escolas e um “discreto” programa de recuperação posterior. Tudo isto agravado por uma instabilidade laboral que se mantém. Depois de alguns anos de instabilidade dos processos educativos por razões ideológicas, passamos pela COVID-19 e entramos da instabilidade laboral. Todos as crianças e jovens são afetadas, mas as consequências são ainda mais graves quando as famílias têm mais dificuldade em dar um acompanhamento que atenue as falhas da escola (ou capacidade para pagar uma escola privada).
No ensino superior o impacto da COVID-19 é menor, ainda que também seja notório e se mantenham algumas sequelas. Depois de um crescimento firme ao longo de todo o século XX e de um impulso final por volta de 1985, temos hoje um sistema de ensino superior maduro com uma participação jovem análoga, ou até superior, à dos nossos parceiros europeus e com uma qualidade que parece muito razoável segundo os poucos indicadores comparativos que podemos usar. Temos um sistema científico demasiado centrado no ambiente académico, mas que se desenvolveu nos últimos 40 anos para se tornar comparável ao de alguns dos nossos parceiros segundo os indicadores mais simples. Apesar desta visão otimista dada por alguns indicadores quantitativos, há uma grande frustração pelo baixo impacto na economia e pelo desalento dos jovens mais qualificados que, em grande número, procuram o seu futuro no estrangeiro, com grave dano social e económico para a nossa sociedade.
A Fundação Francisco Manuel dos Santos publicou recentemente um livrinho do autor com o título “Ensino Superior e Desenvolvimento” (ISBN: 978-989-9153-17-2) onde se descreve a evolução do nosso sistema de ensino superior e de ciência tomando uma perspetiva de comparação internacional. Interessa compreender alguns fatores diferenciadores que merecem atenção com vista à consolidação da qualidade, terminada que está a fase de recuperação do atraso histórico.
A divergência do nosso sistema educativo pode datar-se de 1759, quando a expulsão da Companhia de Jesus encerrou todos os seus colégios (e, no ensino superior, a Universidade de Évora e o Colégio de Jesus na Universidade de Coimbra), fechando as portas a cerca de 20 000 alunos que interromperam subitamente os seus estudos porque, na maioria dos casos, não havia qualquer alternativa. Note-se que só na década de 1930 se atingiu o número de alunos do ensino básico e secundário que tínhamos no século XVIII, agora com uma população tripla da de então. Se no ensino básico o Marquês demorou 12 anos a criar uma rede estatal de escolas, ainda que bastante limitada e mal implantada, na Universidade de Coimbra assumiu uma firme vontade de modernização com novos programas e a contratação de professores italianos. Infelizmente, este esforço inicial veio a terminar com o encerramento da Universidade aquando das guerras napoleónicas e, depois, da guerra civil. Acresce que as receitas da universidade bem estabelecidas ao estilo do Ancien Régime desapareceram com as expropriações feitas pelos liberais vitoriosos, ficando a Universidade dependente de um orçamento do estado, quase sempre em dificuldades.
A Regeneração do século XIX interessou-se apenas pelos “melhoramentos materiais” que se focaram numa rede de caminhos de ferro construídos a crédito internacional que levou à crise financeira de 1891 (e ao ocaso do regime constitucional monárquico.) Uma primeira república com mais vontade retórica do que meios financeiros e um Estado Novo com resultados lentos, apesar do desinteresse retórico, alimentaram um atraso histórico que ainda não está totalmente recuperado do lado do ensino profissional. De facto, só nas últimas duas décadas se procurou reduzir o abandono escolar precoce com o reforço das vias profissionais e duais (de estudo e iniciação ao trabalho), mas há ainda alguma reserva à presença da escola estatal nestas áreas e a continuação da via profissional no ensino superior (com o diploma de TeSP, Técnico Superior Profissional) não foi ainda plenamente aceite por uma certa esquerda. No ensino superior, a plena diversificação dos percursos oferecidos com total transparência para estudantes, famílias e empregadores é crucial para um sistema a que já chegam mais de 50% dos jovens. Contudo as forças contrárias invocam questões de dignidade e prestígio para evitar esta clarificação.
A publicação do RJIES, Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, representou um avanço importante de tentativa de abertura das universidades e dos institutos politécnicos estatais à influência da sociedade. Essa tentativa nunca funcionou plenamente com um órgão de topo, o Conselho Geral, com poderes efetivos muito aquém do proposto e demasiado dependente das corporações internas de docentes e discentes. Não é certo que a revisão em estudo reforce agora este percurso de abertura porque o entendimento da autonomia académica como quase independência tem ainda muita força e leva a continuados conflitos latentes entre as instituições e os governos desde a sua instituição legal em 1988.
A capacidade científica do país cresceu muito desde que os fundos europeus começaram a fluir na década de 1980 e chegamos hoje a ultrapassar alguns países mais desenvolvidos se usarmos um indicador simples como o número de publicações por milhão de habitantes. Segundo a contagem de publicações citáveis do “Scimago Country Rank”, Portugal ficou em 2022 (consultado em setembro de 2023) em 7º lugar na União Europeia com 3,2 publicações por mil habitantes, acima do Reino Unido (3,0), da Espanha (2,3) e até dos Estados Unidos (1,8). Esta realidade é muito encorajadora pelo nosso progresso, mas, ao mesmo tempo, sugere a necessidade de uma reflexão séria sobre as nossas prioridades na comparação com países de maior reconhecimento científico e maior impacto dessa atividade na economia.
O nosso sistema científico evoluiu a partir das bases lançadas no início da década de 1990, mas continua muito limitado ao ambiente académico e é gerido pela entidade financiadora, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia, sem qualquer articulação com as lideranças das universidades e institutos politécnicos. Esta opção é hoje difícil de justificar, como é difícil de encontrar outros países com a mesma opção. Nunca foi verdadeiramente estimulada a transição dos doutorados para o ambiente empresarial ou de outras organizações não académicas e a sua presença fora do ambiente de formação inicial continua muito diminuta e pouco relevante para a economia.
Os doutoramentos em ambiente empresarial são antigos, mas sempre pouco numerosos pela dificuldade em encontrar empresas com espaços de investigação apropriados e pelo fechamento da academia. A recente decisão de chegar quase imediatamente a 50% dos doutoramentos em ambiente não académico comporta riscos sérios, embora possa finalmente abrir um espaço de trabalho aos futuros graduados e evidenciar que têm competências para a criação de valor para a organização. Será exigido um esforço da FCT e da A3ES para que não sejam apenas satisfeitas as condições formais, mas que haja um envolvimento sério do orientador universitário com o responsável do lado externo e que o trabalho de dissertação dê um contributo real para o conhecimento da humanidade e não seja apenas mais um trabalhador sem custos salariais imediatos (e mais uma linha no currículo do orientador). E sabemos que nem a entidade financiadora nem a avaliadora têm experiência neste escrutínio.
Campus Universitário da Maia, 7 de setembro de 2023