sábado, 14 de outubro de 2023
O Ensino Superior e o Desenvolvimento (Jornal Económico)
Um dos nossos maiores exportadores de vinhos tem hoje como ”gestor de Investigação e desenvolvimento” uma doutorada em ciências biológicas com uma pós graduação em enologia. Há vinte anos, essa mesma empresa tinha como enólogo chefe uma pessoa que apenas tinha feito um curso prático em enologia. Foi a realidade anterior que projetou esta empresa da sua base local para o espaço multinacional de produção e vendas, mas a competição atual terá exigido o recrutamento de alguém com outra qualificação formal e são estas novas competências que lhe permitem circular no ambiente internacional de desenvolvimento de novas estratégias para a vinha e o vinho e assim progredir na fronteira do conhecimento. Infelizmente são ainda poucas as empresas portuguesas com capacidade para fazerem esta transição, apesar da enorme expansão da qualificação dos mais jovens.
Depois de um crescimento lento, mas firme, ao longo de todo o século XX, o impulso dado a partir de 1980 permitiu que Portugal ultrapassasse alguns dos nossos parceiros europeus mais próximos no número de licenciados jovens. Nos anos mais recentes, os requisitos de acesso ao ensino superior têm sido ajustados de modo a atenuar o impacto da queda demográfica na vida das instituições. Também na ciência, a chegada dos fundos europeus veio alimentar a pequena, mas já bem consolidade base de doutorados no estrangeiro que formavam o esqueleto da universidades. São estes últimos 40 anos de crescimento da comunidade científica no âmbito das universidades que nos permitiu ultrapassar alguns dos nossos parceiros europeus mais bem estabelecidos no número de publicações científicas por milhão de habitantes. Se nos focarmos neste indicador, temos uma história de sucesso do ensino superior que nos interessa compreender no quadro mais alargado da Europa e da América do Norte. É este o tema do livro “Ensino Superior e Desenvolvimento” recentemente editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (ISBN: 978-989-9153-17-2).
No pós segunda guerra mundial, os Estados Unidos iniciaram uma rápida massificção do ensino superior. De facto, o impulso foi dado ainda antes do fim da guerra com a intenção de acolher e oferecer um percurso de profissionalização civil aos soldados desmobilizados. A esta preocupação de compensação pelo tempo passado no esforço de guerra, juntou-se a teoria do capital humano desenvolvida na década de 1950 pela escola de Chicago. A Europa acordou um pouco depois para esta estatégia de qualificação da população, em especial com o estudo inglês (Robbins Report, 1963) que preparou a grande expansão do sistema universitário com a criação de uma série de novas universidades dispersas pelo território.
Ao mesmo tempo que preparavam a explosão no acesso ao ensino superior, os Estados Unidos também analisavam o valor da ciência para o esforço de guerra e justificavam o esforço federal para a expansão desse esforço no pós-guerra (Vannever Bush, Science the Endeless Frontier, 1945). A Europa seguiu no encalço deste novo reconhecimento do valor da ciência para a guerra e também para a paz, para melhorar o bem estar da humanidade.
Portugal conseguira manter a sua neutralidade, mas hesitou demasiado tempo a associar-se ao processo de reconstrução de uma Europa destruída pela guerra. Em meados da década de 1950, reconheceu finalmente a necessidade de mudar de rumo optando por uma modernização ainda que muito tímida. Assim começou o plano de aproveitamentos hidroelétricos que permitiu generalizar a todo o país o acesso à eletricidade e alimentar algumas novas indústrias. Pela mesma época, Portugal abriu a sua economia com a adesão à EFTA (European Free Trade Association) o que teve um impacto muito positivo no crescimento económico. Foram anos de bom crescimento, mas insuficiente para criar emprego para os muitos jovens que abandonavam a economia de subsistência do meio rural. São estes jovens que vêm a emigração como única via de satisfazer as suas expectativas, apesar da dureza da experiência para a maioria que saía “a salto”.
A nível educativo, Portugal arrastava o enorme atraso acumulado desde a segunda metade do século XVIII. Os 4 anos de educação básica só foram generalizados em finais dos anos de 1950 e mantinha-se um apertado filtro social e económico na continuação do percurso educativo para além deste patamar. O primeiro grande impulso de modernização do sistema educativo foi planeado e começado a executar pelo ministro Veiga Simão já no ocaso do Estado Novo. Por esta altura, a fração dos jovens que chegavam à universidade era semelhante à fração dos que hoje terminam o doutoramento, cerca de 2%.
Temos hoje um sistema educativo e um sistema científico bem desenvolvidos, tendo anulado os enormes atrasos acumulados. Os indicadores quantitativos estão alinhados ou superam os de alguns paises europeus com economias mais fortes. Os problemas de hoje estão na sobrequalificação de muitos jovens que novamente optam pela emigração por não encontrarem entre nós condições para satifazer as suas expectativas de vida. A nível coletivo, não é ainda claro que se esteja a obter o desejado retorno económico do forte investimento feito no último meio século. Estarão estas dificuldades relacionadas com especificidades do modelo de crescimento que adotamos? O livro “Ensino Superior e Desenvolvimento” passa em revista o nosso sistema de ensino superior, visto de uma perspetiva internacional para apontar algumas caraterísticas peculiares que deviam merecer atenção.
A fração da população jovem que hoje chega ao ensino superior excede já a de alguns países europeus nossos vizinhos. As decisões políticas que o permitiram são estimuladas pela busca de crescimento das universidades e institutos politécnicos e faz-se facilitando o acesso de jovens que anteriormente não atingiam os padrões escolares de acesso a licenciatura. Este crecimento estatístico não correspondo a um esforço adicional de aprendizagem e tem resistido a fazer-se por novas vias mais profissionalizantes como acontece em Espanha, França e nos países de tradição germânica. Mantém-se uma enorme dificuldade em aceitar de forma transparente a diferenciação do deseho curricular e dos objetivos dos vários percursos de ensino superior.
A profissionalização dos docentes universitários foi promovida com o Estatuto de Carreira Docente de 1979 que fixou a maioria dos docentes em dedicação exclusiva à universidade, dando tempo e estímulos à expansão da investigação. Pouco depois, a chegada dos fundos europeus permitiu o crescimento da Ciência (quase exclusivamente dentro do perímetro das universidades e, mais recentemente, com a associação das universidades privadas e dos institutos politécnicos). Infelizmente, a estratégia que foi inovadora e muito eficaz nos inícios da década de 1990 manteve-se imutável desde então, podendo estar hoje a bloquear uma forte reorientação para a excelência internacional e a inovação empresarial.
O modelo de governo das instituições estatais de ensino superior foi fixado em 1976 (recuperando da instabilidade revolucionária) e foi modernizado em 2007. Esta reforma mais recente foi no sentido de tentar responsabilizar mais as lideranças por uma gestão estratégica, mas ficou muito limitada pela permanência dos interesses imediatos das corporações internas de docentes e de estudantes. Haverá hoje condições para melhorar este modelo, reforçando a autonomia de governo sem aspirar a uma autarquia (ou independência) que irá necessariamente convidar os governos à limitação da autonomia por mecanismos menos transparentes?
Todos reconhecem que um sistema educativo de qualidade é uma precondição para o crescimento económico e social, mas é mais difícil estabelecer o que significa e como deve ser medida a “qualidade” que não é só a qualidade formal da organização como tem sido entendido pelo sistema europeu de avaliação e de acreditação. Seria mais difícil, mas a qualidade deveria ser avaliada pela sua relevância para a vida dos jovens estudantes e para o sucesso da comunidade. Apesar das dificuldades, valeria a pena fazer algum esforço para usar esta perspetiva que poderia aproximar-se mais das expectativas dos estudantes e das famílias e atenuar o enorme desequilíbrio resultante dos movimentos migratórios a que assistimos impotentes.
Campus Universitário da Maia, 7 de setembro de 2023
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