Virgínia Lobo: Proponho então um brinde. Viva a liberdade!
Sensata da Mata: ... o principal problema do mundo moderno é que “os estúpidos são presunçosos e os inteligentes estão cheios de dúvidas”!
[MJM, Que Coisa é o Mundo, p.161]
Assim termina a terceira e mais recente peça de João Monte com o título “Que coisa é o mundo”, esta em colaboração com a Sofia Miguens, filósofa da nossa Faculdade de Letras.
Os autores vão buscar esta citação a Bertrand Russell que, em 1933 escreveu um ensaio intitulado “The Triumph of Stupidity” lamentando a ascensão do Nazismo alemão. Na versão literal de Russell: The fundamental cause of the trouble is that in the modern world the stupid are cocksure while the intelligent are full of doubt. Even those of the intelligent who believe that they have a nostrum are too individualistic to combine with other intelligent men from whom they differ on minor points. Esta observação de Russell é ainda muito verdadeira hoje, demasiado verdadeira. Será da natureza humana, uma verdade de sempre. É também o culminar, a síntese desta mais recente obra de João Monte.Mas, vamos ao princípio. Como é possível estarmos aqui a celebrar um Químico como autor teatral? Não é caso único e temos de acrescentar o nosso homenageado a uma longa lista de Químicos que se distinguiram nas artes e humanidades, desde a literatura à música. A lista é longa, mas é extremamente minoritária. Daí a homenagem ser muito bem justificada.
No caso do João, julgo não cometer uma inconfidência em ligar a sua inspiração e a sua motivação a Carl Djerassi (Viena, 1923 – São Francisco, 2015). Não será uma inconfidência grave e creio que é muitíssimo honrosa.
Djerassi nasceu em Viena, em 1923, filho de médicos, um dermatologista e uma dentista. Ambos judeus. Logo depois do Anschluss fugiu com a família para a Bulgária e depois para os Estados Unidos. Estudou Química no Kenyon College, Ohio, com um percurso de liberal Arts. (Em aparte, diga-se que nos falta em Portugal esta tradição de ensino superior integral, com um percurso abrangente, desde as humanidades às ciências, mas sem deixar de ser muito ambicioso, dando uma base sólida para o que o jovem estudante quiser fazer da vida.) Depois doutorou-se na Universidade de Wisconsin, em Madison. Trabalhou na Syntex em 1949-51, então na Cidade do México, onde criou a síntese do que viria a ser o primeiro contracetivo oral. Seguiu uma carreira científica em universidades e empresas, terminando em Stanford, o culminar do seu enorme sucesso. Mas aquela síntese da sua juventude parece ter sido o que lhe deu muito dinheiro e muita liberdade na vida adulta mais tardia.
Para o João, Djerassi mostrou-lhe a ligação entre a Química e o Teatro. Iniciado pela tradução do Oxigénio de Djerassi, para o Seiva Trupe, ganhou a autonomia de Autor de Teatro em 2019, com o Ano Internacional da Tabela Periódica (nos 150 anos da proposta inicial do Químico russo Dmitri Mendeleev, 1834-1907). Eu tinha sido escolhido pela Sociedade Portuguesa de Química como Comissário Nacional das comemorações. O João trabalhava no mesmo corredor, eu na metade limpa – só lá há computadores; ele na parte molhada, com máquinas estranhas, algumas construídas com os seus estudantes de doutoramento. Só o autor dirá de onde lhe veio a exatamente a inspiração.
Mas foi por aí, foi nesse corredor que o tradutor e consultor do Seiva Trupe se transformou em autor num notável trabalho contrarrelógio: estávamos já em princípios de 2019 e as comemorações iriam decorrer ao longo da primavera com eventos secundários depois do verão. O João entusiasmou-se e conseguiu transformar um tema aparentemente tão árido numa história cativante que entusiasmou graúdos e miúdos e foi levada à cena em Lisboa, Coimbra e Porto, entre setembro e outubro. E se não subiu à cena em maio foi porque não havia salas livres! O autor cumpriu os prazos; com grande empenho, a companhia conseguia os atores e o tempo para os ensaios; surpreendentemente, só no outono conseguimos salas e, mesmo aí, as diligências que o permitiram não foram fáceis. Com o “Bairro”, os teatros estiveram cheios! O público pediu o prolongamento das apresentações! Não conseguimos...
Para os menos iniciados nas ciências, devo explicar que a Tabela Periódica é um pequeno quadro onde estão arrumados os 92 elementos naturais (existentes na Terra e em todo o Universo) e onde também encaixam os elementos artificiais, produzidos em laboratório. Esta tabela está presente em todos os laboratórios e locais de trabalho dos químicos e também de físicos e geólogos. A posição do elemento naquele quadro dá muita informação imediata sobre as suas propriedades e reatividade. No Bairro, o autor dá personalidade quase química a vários elementos que são personificados como condóminos algo irrequietos no edifício de Mendeleev. O Bairro da Tabela Periódica foi o ponto alto das comemorações do Ano Internacional em Portugal e isso foi bem compreendido, não só por mim, mas também pela direção nacional da Sociedade Portuguesa de Química, mesmo pelos colegas do Instituto Superior Técnico... Tenho esperança que uma versão russa venha a ter igual sucesso na pátria de Mendeleev.
O sucesso do Bairro levou o autor a criar o “Arsenicum”, mantendo o estilo, mas dirigindo-se a outro público e aprofundando a trama e o seu significado para a história da Química. Com uma boa dose de Química, mas servida em baixela de prata, o autor conta a história apaixonante do envenenamento por arsénio, especialmente a “moda” gerada pelo arsénio barato que apareceu no mercado como subproduto de processos industriais em finais do século XVIII. O que fora um veneno de reis passou a ser um económico substituto dos gatos no controlo de ratos e criou oportunidades perversas para a gente comum. O João constrói uma história divertida e muito informativa pela verdade histórica de fundo e pelo toque de Química que perpassa todo o texto. Mas, não se preocupe o menos sensível à ciência, porque vai encontrar apenas uma história movimentada e divertida. Quase um thriller que prenderá o leitor desde as primeiras cenas.
Não tenho coragem de dizer há quantos anos conheço o João! Sempre discreto, mas interessado na vida da Universidade e em muitas coisas mais. Um verdadeiro praticante da dúvida cartesiana, sempre disponível para pisar novos territórios. Sempre respeitador das hierarquias e dos “usos e costumes”, mas muito longe do seguidor acrítico. Inovador e disponível para correr o risco. Sereno no seu caminho, mas intranquilo na busca do destino. Bom colega, bom amigo!
Estacionou na Química, mas nunca ficou por ali parado. A música, a arte, a filosofia nunca foram territórios ignotos. Soube criar pontes com gente de todas estas áreas. Soube discutir, criticar e construir. Guardou para mais tarde e veia de autor que agora, em muito pouco tempo nos presenteia com três obras de um mesmo formato, mas com tema e objetivos muito diferentes. Com uma intenção pedagógica, mas interessando um público generalista que não sentirá o lado pedagógico embora saia da leitura com um conhecimento enriquecido e um conhecimento seguro. Não há aqui “factos alternativos”. Os problemas e as dificuldades são atacados de frente sem omissão nem ficção. Ficção é o enredo, mas o leitor distinguirá facilmente o que o autor criou para o divertir e prender do que ali está com a segurança do conhecimento atual e à época da trama.
Esteve bem Matosinhos ao preparar esta homenagem a um seu cidadão único.
Matosinhos, 14 de outubro de 2021, Homenagem a M. J. Monte