quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Reinventar-se para servir melhor - uma visão prospetiva do ensino superior


                                                                                                                                         

Introdução
1. Para compreender o presente
    1.1. A história
    1.2. A educação e a economia
    1.3. O ensino superior
    1.4. O ensino superior depois de 1960
2. Para decifrar o futuro
     2.1. A procura de ensino superior
         2.1.1. A educação superior como ascensor social
         2.1.2. A quebra de prestígio da educação superior
         2.1.3. A incerteza de empregabilidade
         2.1.4. A demografia
    2.2. A oferta de ensino superior 

         2.2.1. A reforma de Bolonha
         2.2.2. A diferenciação
         2.2.3. A rede Regional
         2.2.4. O numerus clausus
         2.2.5. O insucesso escolar
         2.2.6. A oferta pública
    2.3. O modelo binário de ensino superior
    2.4. O financiamento
    2.5. O espaço para a oferta privada
3. E o futuro está já aí
    3.1. O modelo de educação superior
    3.2. Um ensino superior para todos
4. Porque temos de reforçar a investigação académica
    4.1. O porquê do financiamento público
    4.2. A posição portuguesa atual
    4.3. Os desafios para um futuro mais sólido

REINVENTAR-SE PARA SERVIR MELHOR
uma visão prospetiva do ensino superior
                                                                                                                                              Ler em PDF

José Ferreira Gomes, Universidade do Porto
Contributo para "Pensar o Ensino Superior e a Ciência: O Conhecimento e a Tecnologia Rumo a 2050 - Um Exercício de Prospetiva", a pedido do SNESup 
Abril de 2016



Introdução

São conhecidas duas técnicas de prever o futuro, a adivinhação e a extrapolação. A primeira é provavelmente tão antiga como a humanidade e nunca pôde ser derrotada, nem pela transição da velha cultura clássica mediterrânica para o medievo cristão, nem pelo iluminismo e pelo cientismo. A segunda foi consolidada pela emergência da mecânica no séc. XVII e atingiu o apogeu no séc. XIX com a plena confiança de que, a menos de alguns “detalhes”, o futuro do universo seria previsível pela resolução de algumas equações diferenciais. Este otimismo foi desacreditado pela nova mecânica quântica no virar do primeiro quartil do séc. XX mas sobreviveu a expectativa de que alguma forma de previsão do futuro seria possível. Não sabendo de adivinhação, resta-me tentar uma simples extrapolação. Não parece difícil. Tendo acompanhado o último meio século, deverá ser possível prever o seguinte. Só que a aparente continuidade das leis físicas pode produzir descontinuidades nas respostas. Se isto é bem conhecido para sistemas relativamente simples, sê-lo-á a fortiori em matérias de evolução social e política. A probabilidade de uma destas descontinuidades ocorrer nas próximas décadas é elevada e poderá tornar completamente ociosa a tentativa de ver para lá desse big bang. Desistindo de um exercício estruturado de prospetiva, resta a componente onírica com todos os riscos que a acompanham quando o autor não se chame Jules Verne ou Isaac Asimov. Este exercício lúdico (a que um inglês daria alguma respeitabilidade falando de educated guess) é, em desespero de causa, o recurso de que me posso socorrer.
Portugal tem hoje um sistema de ensino superior complexo, servindo uma procura estudantil massificada com uma diversidade razoável e uma qualidade das aprendizagens que, tudo o indica, se compara muito bem com a dos nossos parceiros europeus. Há uma confiança generalizada na qualidade dos graus académicos concedidos por universidades e institutos politécnicos, públicos e privados, parecendo certo que algumas situações anómalas publicamente conhecidas são de exceção e de confirmação do bom funcionamento do sistema de controlo.
A massificação do acesso ao ensino superior foi proposta por Veiga Simão (Ministro da Educação, 1970-74) que criou as “novas universidades”, Minho, Aveiro e Nova de Lisboa, e previu, na reforma do sistema educativo[1], a criação de Institutos Politécnicos e Escolas Normais Superiores que concederiam o grau de bacharel mas que só vieram a entrar em funcionamento em 1980. De facto, as quatro universidades da primeira república não tinham já capacidade para responder à procura crescente e previa-se um reforço da taxa de crescimento considerando que o número de estudantes nos países da OCDE crescera anualmente 7,2% no período 1960-1975. Em Inglaterra, o impulso fora dado pelo Relatório Robbins de 1963 e, nos Estados Unidos, logo no fim da Guerra com a chamada GI Bill que concedia aos soldados desmobilizados apoios federais para completarem a sua educação ou formação profissional.
Mas o crescimento e a massificação do ensino superior não são um bem em si. Ocorrem em resposta à ambição dos estudantes, especialmente os jovens, e para satisfazer as necessidades da sociedade. Entre nós e em muitos outros países, ocorrem hoje manifestações públicas de desencanto com o fenómeno novo do desemprego e o subemprego de alguns licenciados. Apesar de a educação superior continuar a dar uma maior garantia de emprego e de melhor emprego, a segurança não é já a que hoje se percebe ter existido no passado. Esta idealização do passado é, por vezes, falsa mas é verdade que o ensino superior deixou de preparar quase exclusivamente funcionários da administração pública e profissionais liberais. Todas as áreas de atividade recebem hoje graduados, havendo muitos estudos que mostram que as economias modernas estão a substituir postos de trabalho não qualificados por postos de trabalho que exigem educação superior. Ao mesmo tempo, os governos estão cada vez mais conscientes da frustração que pode ser criada nos jovens graduados e das consequências muito negativas que já se observam em algumas regiões. Vemos, em vários países, políticas ativas de orientação do ensino superior para estratégias de maior relevância no mercado de trabalho o que significa cursos diferentes dos tradicionais e mais vocacionais. Esta evolução nem sempre é bem aceite porque é conhecida a perceção de que as universidades não se reformam[2].


Figura 1. Interpretação pelo artista residente da conferência proferida por J. M. Gago na sede da OCDE, Paris, em 12 de setembro de 2012: Where have we got to? Raised but unrealistic expectations may lead to frustration and revolution.

1. Para compreender o presente

Ao longo dos anos de 1960, um crescimento rápido da economia[3] garantia uma despreocupada passagem dos estudantes pela Universidade portuguesa. De facto, a taxa de crescimento do PIB (a preços constantes) era bastante superior à percentagem dos jovens de cada coorte que chegava à Universidade pelo que todos podiam esperar beneficiar desse crescimento. Independentemente da sua origem, todos podiam aspirar a entrar no mercado de trabalho ao nível da classe média superior, com um provável nível de vida entre os 10% mais favorecidos da nossa sociedade. A seleção ao longo dos quatro anos da instrução primária e dos sete anos de educação liceal era real e o insucesso nos primeiros anos dos cursos superiores era muito mais alto do que atualmente, possivelmente, umas três vezes superior. Mesmo assim, a seleção era principalmente social porque a grande maioria dos portugueses não passava dos 4 anos de escolaridade devido às precárias condições económicas das famílias, principalmente no meio rural. Os que conseguiam levar para casa o almejado canudo (de chapa zincada encerrando um diploma em pergaminho com selo de cera dentro de uma caixinha de prata) tinham o passaporte para uma vida digna; mesmo aqueles que apenas podiam reclamar ter frequentado a universidade, já conseguiam uma posição de certo conforto, ainda que de menor prestígio social. A Universidade valia pelo diploma outorgado e pelo prestígio de casta num ambiente de baixa pressão concorrencial.
O quadro rosado aqui pintado para os anos do pós-guerra português (da 2ª Guerra mundial, entenda-se) não atingia todos por igual. Por um lado, a vasta maioria da população vivia do setor primário (agricultura e pesca) numa economia de subsistência frequentemente periclitante, com deficiências alimentares sérias, sem acesso a cuidados de saúde e com habitação muito deficiente. A promessa da educação como ascensor social era-lhes muito distante e a única esperança era a transição para um posto de trabalho na construção civil e depois a emigração “a salto” para a França ou a Alemanha onde iriam cair nalgum bidonville das banlieues. Para muitas famílias de parcos recursos mas já instaladas na proximidade das cidades de Lisboa e Porto, o acesso à Universidade começava a ser uma possibilidade e um canal seguro de ascensão social. O forte crescimento dos “30 anos gloriosos” do pós-guerra estimulou a expansão das quatro universidades, mantendo todavia um nível de participação sempre inferior ao da Europa contemporânea, e deu resposta às expectativas dos jovens que aí conseguiam chegar. À grande maioria dos rapazes que não ultrapassava os 4 anos de escolaridade restava esperar pelo serviço militar para sair da sua aldeia e abandonar, depois, o país com a esperança de que as poupanças conseguidas na emigração permitissem construir uma casinha na sua terra, uma casinha que lhes desse a autonomia económica que os seus pais nunca tinham conhecido. Dessa primeira leva de emigrantes, foram poucos aqueles que conseguiram regressar a um posto de trabalho em solo português porque a oferta interna de mão de obra pouco qualificada se manteve excedentária até à chegada das ajudas comunitárias em meados da década de 1980 e, posteriormente, ao endividamento externo permitido pela moeda única.
A guerra em África era um pesadelo que atingia quase todos os jovens. Iniciada em 1961, rapidamente exigiu a mobilização da generalidade dos homens disponíveis. Também aqui se mantinha a estratificação que se vivia em toda a sociedade. De um lado, a grande maioria que não fora além do primário recebia alguns meses de treino militar básico para seguir para África numa comissão de dois anos como soldado; do outro, os jovens com diploma universitário seguiam uma formação militar mais longa e um curso de oficial miliciano e eram geralmente enviados para uma comissão de dois anos em África depois de terem completado os quase dois anos de treino na “metrópole”. É hoje difícil compreender como a sociedade portuguesa pôde aceitar pacificamente este longo esforço de guerra com o adiamento da vida autónoma da generalidade dos jovens. Um efeito secundário positivo foi a educação informal que o convívio entre soldados e oficiais milicianos permitiu e que levou a que muitos destes jovens sem estudos tentassem depois uma vida diferente da dos seus pais. Este foi um forte motor de transformação da nossa vida coletiva. Para os jovens diplomados, isto significava um hiato de quatro anos (e, por vezes, seis para aqueles que, nos últimos anos de guerra, eram convocados para uma segunda comissão de serviço como capitães milicianos) antes da entrada na vida profissional.


1.1. A história

É conhecido o atraso secular do nosso sistema educativo que se manteve até  aos nossos dias. A expulsão dos Jesuítas (1759) reduziu de um dia para o outro o número de alunos a aprender as primeiras letras de alguns milhares para poucas centenas, isto considerando todo o território continental, ilhas e territórios brasileiro, africano e asiático. Doze anos depois, o Marquês de Pombal entrega à Real Mesa Censória “a administração dos estudos das escolas menores do Reino e seus domínios”, criando mais tarde 479 lugares de mestre (440 para o continente, 15 para as ilhas e 24 para o ultramar). Foi difícil encontrar pessoas com competências mínimas para essas funções. As dificuldades financeiras resultantes da queda do ouro do Brasil, seguida pela reconstrução de Lisboa pós terramoto, não facilitavam a situação que veio a ser muito agravada pela anarquia decorrente das guerras napoleónicas. O encerramento dos conventos e mosteiros em 1834 criou novas dificuldades que Passos Manuel procurou ultrapassar, em 1836, com a adoção do modelo francês de liceu criado nas sedes de distrito. A educação nunca foi uma prioridade ao longo de todo o século XIX, tendo a Regeneração de Fontes Pereira de Melo dado absoluta prioridade aos chamados “melhoramentos materiais” na perspetiva de que o endividamento externo criado seria amortizável pelo aumento da atividade económica daí decorrente. (A bancarrota chegou em 1891.)
O país é ainda hoje marcado pelas escolas primárias construídas em finais do século com o legado testamentário do Conde de Ferreira que determinava a construção de 120 escolas (de ambos os sexos e casa para os professores) nas sedes de concelho. A relevância desta iniciativa, justificada pela convicção “de que a instrução pública é um elemento essencial para o bem da Sociedade“, obrigou a legislação especial que só veio a surgir em 1886, 20 anos depois da sua morte. Foram finalmente construídas 91 escolas. Registe-se que uma iniciativa deste fôlego na construção de escolas só voltou a surgir na década de 1940 com o plano centenário de celebração da independência e da restauração. E, no entretanto, o atraso da alfabetização agravava-se. Estima-se[4] que a taxa de alfabetização se mantivesse a 15% em 1850 e 25% em 1900 o que deve ser comparado com taxas superiores a 95% nos países nórdicos, Alemanha, Escócia, Holanda e Suíça e com a passagem de 25% para 40% na Espanha, Itália e Polónia. Esta história difícil é bem ilustrada na Tabela 1 pela utilização da comunicação postal[5] (embora esta seja também influenciada pela qualidade do serviço oferecido à população que, nesta época, era muito variável).

Tabela 1. Número de cartas e postais enviados per capita em 1886 e em 1900.

Bélgica
França
Alemanha
Reino Unido
Grécia
Itália
Holanda
Portugal
Rússia
Suíça
1886
17
15
20
45
2
6
18
4
1
26
1900
26
22
44
67
2
12
26
7
3
49

Em 1950, estávamos ainda com cerca de 55% de alfabetizados enquanto a Espanha e Itália tinham já chegado aos 80%. Só na segunda metade da década de 1950 se conseguiu universalizar o acesso de (quase) todas as crianças à escola primária (4 anos) e só na década de 1970 começou o esforço para alargar progressivamente o acesso ao que hoje é o 2º ciclo do ensino básico e, depois, ao 3º ciclo e ao secundário. Temos ainda hoje um atraso muito significativo na percentagem de jovens que terminam o ensino secundário, o que pode estar ligado à insistência no modelo único de liceu académico, mantendo-se ainda a dificuldade política em cumprir o desígnio assumido por Passos Manuel no preâmbulo do decreto de 1836 que “representa o primeiro protesto oficial contra a instrução secundária exclusivamente clássica e formal[6]. Só uma diversidade de ofertas pode satisfazer os desejos e objetivos da maioria dos alunos e assim permitir a cada jovem a construção do seu percurso próprio. O número de alunos a frequentar as vias profissionalizantes do ensino secundário tem vindo a crescer lentamente para atingir cerca de 45%, ficando ainda aquém da média da União Europeia[7]. Finalmente, parece haver consenso político generalizado quanto a esta estratégia de oferta diversificada no secundário, sendo de prever que as ofertas especializadas continuem a crescer para chegarmos ao objetivo de termos (quase) todos os nossos jovens a sair do ensino obrigatório com um diploma reconhecido no mercado de trabalho ou para a continuação de estudos. A taxa de abandono precoce desceu para 13,7% em 2015, o que significa uma redução para menos de metade nos últimos 5 anos. Este esforço terá de ser mantido para aumentar o número de jovens que obtém o diploma do ensino secundário.
A história do ensino superior não foi diferente. Em 1910, frequentavam a Universidade de Coimbra 1262 estudantes[8] e o número total de estudantes do ensino superior era de 3227, considerando também as escolas superiores de Lisboa e Porto. Em 1926, frequentavam as três universidades 4117 estudantes, 1294 estudantes em Coimbra, e 1823 em Lisboa e 1000 no Porto. A população universitária cresceu depois a um ritmo anual médio de 6% até ao fim do século. Com a procura crescente, a universidade teve de se adaptar expandindo (muito tardiamente) o seu quadro docente e construindo novos edifícios de que são exemplos a Engenharia no Porto (inaugurado em 1937 na Rua dos Bragas), a alta coimbrã (cuja construção foi iniciada em 1962), o Instituto Superior Técnico (1927-1937) e a cidade universitária de Lisboa ao Campo Grande (no fim da década de 1950). Note-se que até finais da década de 1970 a maioria dos professores tinha outra atividade para compor o seu magro vencimento universitário. Não era estranho que o convite a um jovem licenciado para assistente fosse acompanhado da inquirição de que outros rendimentos lhe permitiriam uma existência digna. Para alguns, a acumulação de trinta e mais horas de aula semanal permitia melhorar um pouco a situação. Só a partir de 1980[9] foi possível profissionalizar os docentes, assumindo a maioria destes dedicação exclusiva ao ensino e à investigação. (Registe-se uma evolução paralela em Espanha com a reforma de 1983[10].)

 

  

1.2. A educação e a economia

O conhecimento do desenvolvimento da nossa economia nos últimos séculos poderá ajudar a compreender a evolução do sistema educativo sem entrar na discussão de qual dos atrasos será a causa e qual o efeito. Se até meados do século XVIII, há indicações de que a situação económica em Portugal era comparável com a europeia[11],[12],[13],[14], a partir daí regista-se um declínio continuado. O ponto máximo da economia portuguesa em relação à europeia terá sido a meados do século XVIII muito impulsionado pela mineração brasileira. Na segunda metade deste século, caem as receitas brasileiras e é necessário enfrentar a reconstrução de Lisboa. As guerras napoleónicas com a perda do comércio brasileiro (pela abertura dos portos à navegação inglesa) e as sequelas da guerra civil explicam as dificuldades da primeira metade do século XIX. Mas nem o rotativismo da segunda metade do século nem a revolução republicana permitiram a recuperação. Só depois da crise internacional iniciada em 1929, Portugal inicia um processo de convergência para chegar a finais do milénio com o peso económico próximo do que tivera no século XVIII (cerca de 2% da economia da Europa Ocidental). Na relação Portugal:Espanha, o nosso ponto máximo foi atingido em meados do séc. XX[15] pelo efeito destrutivo da guerra civil espanhola e da neutralidade portuguesa na segunda guerra mundial, ultrapassando mesmo a boa posição relativa conseguida por Portugal no século XVIII. No último quarto de século, Portugal entrou novamente em divergência em relação à União Europeia[16].

Figura 2. PIB (produto interno bruto) per capita com correção de paridade de poder de compra para o período 1990 – 2014 para Grécia, Portugal, Espanha, Itália, Reino Unido e Irlanda, relativo à média da União Europeia16.
Em termos muito grosseiros, o nosso sistema educativo acompanha esta tendência económica de longo prazo, não sendo seguro estabelecer uma relação de causa efeito entre a educação e a economia ou em sentido inverso.

1.3. O ensino superior

Os vencedores da guerra civil de 1828-34 nacionalizaram (e repartiram entre si!) os bens formalmente propriedade monástica de que vivia a Universidade de Coimbra, que ficou assim à mercê do orçamento de estado e das vicissitudes das finanças públicas. Logo de seguida (1837), Passos Manuel transforma as instituições educativas de Lisboa e Porto em Academias Politécnicas. Ainda que o número de estudantes tivesse crescido (a partir do quase vazio resultante da gravíssima situação económica e social criada desde o início das invasões napoleónicas) e as três instituições de ensino superior beneficiassem do sangue novo de muitos jovens liberais à procura de afirmação na nova sociedade portuguesa, a frágil preparação académica de muitos professores e o parco orçamento que anualmente lhes era votado não permitiram ir além de uma triste mas compreensível mediocridade. Os revolucionários republicanos de 1910 preocuparam-se logo com este estado de coisas e deram às Academias Politécnicas de Lisboa e do Porto o estatuto de Universidade plena, ao mesmo nível de Coimbra, que assim perdeu o monopólio que sempre lhe tinha pertencido desde a extinção da Universidade de Évora aquando da expulsão dos Jesuítas pelo Marquês de Pombal. As novas universidades foram dotadas de uma estrutura organizativa reforçada (em relação à situação anterior) e com um quadro alargado de pessoal. A realidade financeira da jovem república não pôde acompanhar o sonho e restou o alargamento geográfico da pobre universidade portuguesa. A primeira guerra mundial e a depressão económica subsequente não permitiram a melhoria desta realidade e até vieram a justificar a forte contenção imposta pelo Estado Novo. Ao longo de todo este período, o número de estudantes a frequentar o ensino superior em Coimbra, Lisboa e Porto sofreu grandes variações dependendo das condições económicas e, principalmente, das condições políticas.

Figura 3. Evolução do número de estudantes inscritos em engenharia civil na Academia Politécnica do Porto e, depois, na Universidade do Porto, de 1837 a 1931 onde está bem marcada a crise financeira de 1890, o final da monarquia, a primeira guerra e a chegada do Estado Novo.
Note-se que, em Portugal, as únicas escolas superiores que ficaram fora das três universidades criadas em 1911 foram o Instituto Superior de Comércio (antecessor do Instituto Superior de Economia e Gestão, hoje unidade orgânica da Universidade de Lisboa) e o Instituto Superior Técnico (hoje também unidade orgânica da Universidade de Lisboa). Estes dois institutos têm origem no Instituto Industrial e Comercial de Lisboa criado em 1869 por transformação do Instituto Industrial de Lisboa que tinha sido estabelecido por Fontes Pereira de Melo em 1852. Em 1930, são integrados na nova Universidade Técnica de Lisboa que, em 2013, se funde na Universidade de Lisboa. No Porto, a história é diferente. O Instituto Industrial criado em 1852 e transformado em Instituto Industrial e Comercial em 1886 ficou instalado no Colégio dos Órfãos, a sede da Escola Politécnica no local onde é hoje a Reitoria da Universidade do Porto. O Colégio dos Órfãos teve um plano de reconstrução  elaborado em 1807 por Carlos Amarante que só veio a ser concluído no século XX (com um empréstimo lançado em 1902 com maturidade em 100 anos). Esta proximidade entre a Escola Politécnica e o Instituto Industrial e Comercial, com partilha de professores, chegou a uma fusão que foi efetiva entre 1881 e 1886. Mais tarde o Instituto Industrial e Comercial veio a ocupar um edifício na Rua do Breiner e não obteve o estatuto de ensino superior com o advento da república. Aquando da sua criação, estes institutos industriais recebiam estudantes com 12 anos de idade que soubessem ler, escrever e as quarto operações aritméticas e destinavam-se à “promoção social do operariado”. Só em 1891 foram ali suprimidos os cursos elementares e criados os Cursos Superiores Industriais que, em 1905, passaram a ter 6 anos de duração (5 anos para os comerciais). Em 1911, passou a existir uma escola de engenharia anexa à Faculdade de Ciências da nova Universidade do Porto que viria a ser transformada em Faculdade Técnica em 1915. O Instituto Industrial e o Instituto Comercial do Porto seguiram um caminho de expansão e de grande afirmação social vindo a ser integrados no ensino superior em 1974. São hoje unidades orgânicas do Instituto Politécnico do Porto.

1.4. O ensino superior depois de 1960

São enormes as mudanças no ensino superior no último meio século e tudo indica que continuarão. No início da década de 1960, haveria[17] em Portugal cerca de 25 000 estudantes no ensino superior, um número que foi multiplicado por 15 vezes até ao fim do século, enquanto a dimensão da coorte caía 20%. Hoje estão no ensino superior 40% dos jovens de 20 anos enquanto apenas cerca de 2% lá chegavam em 1960. Comparemos com a situação inglesa na mesma época. De acordo com os dados registados no relatório Robbins[18] que preparou a grande expansão britânica, em 1962/63 acederiam às universidades inglesas 4,0% da coorte jovem enquanto que uns 2,5% adicionais escolhiam as instituições de formação de professores e 2,0% outras formas de educação pós-secundária. Hoje chegam cerca de 50%.
Em Portugal, o número de estudantes no ensino superior teve um crescimento sustentado pelo menos desde 1940 com uma taxa anual média de cerca de 6%. Esta taxa de crescimento foi de 5,7% no quarto de século anterior a 1973 e de 7,4% no último quartil do século. A Espanha[19] partia em 1960 de um nível de participação bastante mais alto (60% a 70% a mais) mas manteve o ritmo de crescimento a 5,7% ao ano até aos últimos anos do século XX, o que nos permitiu finalmente recuperar o atraso.

Figura 4. O número de estudantes inscritos no ensino superior português[20] no período longo de 1940-2016. Foi o ritmo especialmente alto de 11,5% ao ano em 1985-1995 que nos permitiu atingir uma participação semelhante à espanhola por volta de 2000[21]. 

Enquanto a procura estudantil crescia sustentadamente, mantinha-se a fragilidade de quadros docentes envelhecidos e formados num ambiente em que a criação de conhecimento era a exceção, o que não permitia qualquer veleidade de afirmação internacional, especialmente nas áreas científicas e técnicas. Só o tardio esforço desenvolvimentista da década de 1950 começou a criar alguma esperança. De uma forma muito incipiente, foram reforçadas as estruturas de apoio à investigação científica, mantendo contudo um nível insuficiente e uma abrangência muito limitada. Vem daí, contudo, a base humana que permitiu impulsionar o crescimento na década de 1960, beneficiando então de um apoio adicional da nova Fundação Calouste Gulbenkian, quer para equipamento científico, quer para bolsas de investigação no estrangeiro.







2. Para decifrar o futuro

Não será surpresa que um sistema que cresce exponencialmente durante mais de 60 anos tenha sentido enorme dificuldade em adaptar-se à estabilização do número de estudantes que ocorreu por volta do ano 2000. Muitos problemas que hoje conhecemos resultam ainda desta mudança de regime. Será possível esperar uma retoma do crescimento? A resposta é difícil porque a travagem ocorreu em simultâneo com o quebra do crescimento da economia portuguesa e não há ainda sinais de que uma recuperação robusta esteja para ocorrer a breve prazo. Todos queremos acreditar que o futuro estará numa economia mais baseada no conhecimento e que a educação superior será muito relevante. Na falta de elementos endógenos de orientação para uma previsão do futuro, poderemos basear-nos na história de países que fizeram este caminho mais cedo. Esta comparação sugere que se poderá retomar algum crescimento mas, provavelmente, num formato diferente, mais lento e muito mais vocacional[22]. Tendo nós chegado a uma participação de 40% da coorte, alguns países da OCDE ultrapassaram já os 50% (a aceder ao ensino superior). Poderemos pensar que no início da década de 2020 estaremos nos 50% e será uma projeção conservadora imaginar que 60% de cada geração de portugueses chegará ao ensino superior na(s) década(s) seguinte(s).

2.1. A procura de ensino superior

Não há sinais de que a procura de ensino superior pelos jovens que terminam o ensino secundário vá abrandar no futuro. Pelo contrário, à medida que a percentagem de jovens que terminam o secundário se aproxime (ou ultrapasse) os 90%, a continuação do percurso educativo será usada como estratégia de valorização para a entrada no mercado de trabalho e não surpreende que uns 60% o façam. Projeta-se assim um aumento da participação mas a motivação e os objetivos destes novos estudantes serão diferentes e muito mais variados do que anteriormente porque o ensino secundário terá uma maior componente profissional e porque o mercado de trabalho dos diplomados se alterou. Terá de ser reforçado o esforço de adaptação das instituições que já hoje é considerável face à população estudantil em massificação ainda recente. Poderá discutir-se a estrutura organizativa da rede institucional mas não se pode perder o objetivo de maior diversidade da oferta.

2.1.1. A educação superior como ascensor social

No século XX, a educação superior foi um importante ascensor social. Por meados da década de 1980, o crescimento económico estava já a abrandar enquanto crescia muito a taxa de acesso à educação superior. Os jovens graduados deixaram de ter garantia de entrada numa posição elevada social e economicamente. Este fenómeno começou a ser observado em áreas de menor prestígio mas generalizou-se na viragem do século com um acesso à educação superior que ultrapassava já os 30% enquanto a economia estagnava. Não eram criados novos empregos bem remunerados para satisfazer as expectativas de muitos graduados. Apenas cerca de 10% (da coorte) ia ocupar as posições libertadas por reforma das gerações mais velhas. A educação superior continuava a ser social e economicamente compensadora por aumentar a empregabilidade acima do nível básico (salário mínimo) e oferecer mobilidade nacional e internacional. Os trabalhadores com baixas qualificações estão em competição com mão de obra de regiões anteriormente excluídas do concerto global. Esta realidade pode não ser bem reconhecida na apreciação mediática do fenómeno novo de desemprego de licenciados e, como dizia Mariano Gago (Figura 1), esta situação pode levar à frustração de uma faixa importante da população com consequências imprevisíveis.

2.1.2. A quebra de prestígio da educação superior

As barreiras económicas ao acesso à educação foram caindo progressivamente na segunda metade do século XX, primeiro nas zonas urbanas em expansão rápida e depois em todo o país. A perda do caráter elitista e o aumento da oferta de licenciados faria baixar necessariamente o seu prestígio. Esta realidade é ainda agravada pelo mediatismo de algumas situações pouco claras de graduação rápida”, aparentemente sem o esforço em geral associado à qualidade de estudante do ensino superior. Ainda que sejam situações pontuais, deixam no ar uma suspeita de laxismo e facilitismo de todo o sistema. Desde a década de 1970 que Portugal esteve na vanguarda europeia da desregulação da educação superior. Essa nova autonomia foi bem aproveitada permitindo uma criatividade que possibilitou o rápido crescimento em 1985-95, mas também deixou espaço para situações menos claras. O efeito cumulativo do desemprego recente e de algum desprestígio criou dúvidas em muitos jovens (e nas suas famílias quando detentoras de um baixo nível educacional), o que pode ter prejudicado a procura de educação superior e a dedicação dos jovens à aprendizagem, especialmente de disciplinas consideradas mais difíceis. Historicamente, a licenciatura, “licença para [o exercício de uma profissão]”, funcionou como uma etiqueta de aptidão para o recrutamento na burocracia pública crescente. O seu alargamento ao setor privado deveu-se ao prestígio adquirido pelo título, em alguns países de forma muito seletiva, dependendo do prestígio da instituição frequentada. Em Portugal (tal como outros países de tradição napoleónica, mas não a França), a perceção pública da diferenciação institucional foi sempre muito ténue pelo que o contágio do desprestígio é imediato.

2.1.3. A incerteza de empregabilidade

Parece certo afirmar-se que até à década de 1980, a maioria dos estudantes faziam a escolha do seu curso superior sem grande atenção à sua empregabilidade: esta era um adquirido. O sentido de uma escolha “correta” do ponto de vista do prestígio social estava certamente presente nas famílias e daí poderia pesar na escolha do jovem. Perdida a garantia de empregabilidade, a procura dos cursos que “ainda” parecem garanti-la cria deslocações da procura difíceis de satisfazer e de consequência difíceis de gerir. O exemplo mais recente é a queda da procura da Engenharia Civil na sequência da quebra do investimento em grandes obras públicas, ainda agravada pelo rebentar da bolha imobiliária e pela exigência de Física e Química como prova de acesso. Mas os casos da Medicina Dentária e da Enfermagem também estão aí e não sabemos se a quebra da enorme procura da Medicina não virá de seguida: só uma sociedade rica pode pagar os cuidados médicos intensos e tecnologicamente sofisticados que estão hoje já disponíveis e em permanente evolução. Foi o crescimento económico rápido do pós-guerra que permitiu a melhoria dos cuidados de saúde e o recrutamento de um número crescente de médicos. A situação anterior era de subemprego generalizado apesar do baixo número de licenciados em Medicina. É compreensível que um estudante que optou (ou foi levado a optar) por um curso em função da sua empregabilidade se sinta frustrado quando compreende que tal já não é garantido. Mais ainda, o sistema de numerus clausus força um grande número de estudantes a optarem por cursos diferentes da sua primeira escolha. Se a maioria se adapta à realidade que lhe é imposta, alguns mantém a esperança de mudança e avolumam a onda de insatisfação e desinteresse nos bancos de primeiro ano das nossas escolas.

2.1.4. A demografia

A partir de 2020, a queda demográfica será especialmente marcada para as idades típicas de acesso ao ensino superior. Esta quebra poderá ser compensada, mas só parcialmente, pelo aumento da participação que terá menor impacto nos cursos universitários. O número de estudantes estrangeiros vai certamente aumentar mas é difícil prever o grau de sucesso de cada uma das instituições. Estamos a observar um número crescente de portugueses que optam por estudar no estrangeiro, principalmente em países europeus, enquanto que alguns europeus vêm para Portugal. O balanço é provavelmente negativo neste momento. Conseguir o equilíbrio dentro da Europa é um desafio difícil face à atratividade dos países mais centrais. A atração de estudantes de fora da Europa é uma estratégia que está a ser prosseguida por todas as instituições e temos argumentos fortes para competir com outros destinos, muito especialmente no mundo lusófono. É prematuro fazer previsões razoavelmente seguras do impacto deste esforço cujos resultados serão sempre instáveis devido às flutuações económicas e políticas nos países emissores.
Neste novo contexto de grande incerteza externa que se adiciona às flutuações das preferências por cursos ou áreas disciplinares, as instituições de ensino superior deveriam fazer um planeamento de médio e longo prazo, o que dificilmente podem concretizar dentro das regras da administração pública. A cultura académica com um pendor sempre corporativo também dificulta este planeamento estratégico sério.
Outro vetor de crescimento é a formação de ativos que exige uma postura muito diferente da tradicional e está ainda muito mal conseguida entre nós. De facto, o grande crescimento da procura de pós-graduações e dos mestrados próprios das universidades espanholas não tem equivalente nas universidades portuguesas.


2.2. A oferta de ensino superior

A oferta de ensino superior é bastante rígida por depender de instituições que se querem com uma reputação que acompanhe o diplomado ao longo da sua vida profissional. Acresce que a reunião dos recursos humanos e materiais para a oferta de um novo curso pode demorar largos anos se não houver pessoal docente ou investigador disponível. No caso português, as decisões de criação de novas instituições foram tomadas no último quartil do século XX, nem sempre com uma avaliação séria da procura estudantil. Particularmente na fase final, em que já era visível a travagem da procura, as dificuldades subsequentes eram perfeitamente previsíveis mas parece não terem sido ponderadas por decisores políticos que não esperavam viver as consequências das suas decisões. A pressão demográfica em baixa na próxima década deveria ser preparada com estratégias institucionais que atenuem os efeitos desagradáveis que podem atingir os colaboradores da instituição e a sua envolvente. Esta certeza não parece ser ainda tomada em conta na planificação estratégica das instituições, sendo mais frequente falar-se de crescimento que não será, em geral, possível sem baixar os padrões académicos atualmente vigentes.
Deve notar-se que este não é um problema exclusivo de Portugal. Em alguns países, as universidades viveram (e ainda vivem nalguns casos) numa difícil situação de sobrelotação pelo que a contração da procura teve o efeito benéfico de melhorar o rácio docente:discente. A adaptação à captação de novos públicos é também difícil, seja na formação de ativos que procuram formações mais curtas e muito focadas na prática profissional, seja na formação inicial mais vocacional. Em qualquer dos casos, é exigida a colaboração de docentes ativos profissionalmente que a instituição de ensino superior não tem (e não deve ter) no seu quadro permanente. É exigida uma maior abertura à realidade envolvente que nem sempre é fácil numa instituição mais focada nos valores académicos.

2.2.1. A reforma de Bolonha

O Processo de Bolonha arrasta-se pelos corredores da política internacional mas parece ter sido já esquecido em Portugal. Não é bem percetível o que ficou, para além do novo sistema de graus académicos e da regulação formal da qualidade dos graus académicos. E, contudo, esta avaliação pode ser muito injusta porque foi notável a dedicação de muitos docentes à reflexão a que o Processo de Bolonha convocou as instituições. Muitos melhoraram as suas aulas e tomaram consciência de que é necessário um esforço permanente de melhoria. Todos participaram na reorganização dos ciclos de estudos e no repensar do encadeamento de objetivos propostos ao estudante. Mas muito daquilo que esperávamos de Bolonha foi esquecido para evitar a frustração do insucesso. Este resultado poderá não ser independente da velocidade a que tudo foi feito entre nós antes da Conferência de Londres[23]. A desvalorização do grau de Licenciado de um ciclo de 4 a 6 anos para um primeiro ciclo de 3 anos sem qualquer sistema de equivalências entre os antigos e os novos graus teve, e tem ainda hoje, consequências danosas para muitos antigos licenciados. O mesmo se diga para os antigos bacharéis que ficaram com um diploma que deixou de ser compreendido e valorizado. A construção de um ciclo de estudos de 3 anos que, ao mesmo tempo, prepare o estudante para a entrada imediata no mercado de trabalho numa profissão específica e lhe permita a continuação de estudos num segundo ciclo mais profissionalizante é algo confuso e merecia uma reanálise. O antigo Mestrado era (em Portugal) de qualidade muito variável indo desde o mestrado de investigação de 2 anos a tempo inteiro e com uma dissertação original (próximo do mestrado americano ou brasileiro) até planos de estudos muito ligeiros pensados para ativos disponíveis para vir à universidade à sexta à tarde e ao sábado. O novo Mestrado teve de absorver tudo isto, juntamente com os 2 ou 3 anos da parte final dos antigos cursos profissionais longos de engenharia, medicina, etc. À invenção muito original do Mestrado Integrado procurou dar-se um prestígio adicional por estar associado a instituições com maior potencial de investigação na área respetiva. O Doutoramento foi menos afetado mas o curso doutoral (opcional) tem um objetivo aberto a muitas interpretações contraditórias. Continuaram a ser pouco claras as diferenças entre os ciclos de estudos universitários e politécnicos sendo mesmo possível duvidar se o legislador os quis com objetivos diferentes ou não.
Completados 10 anos sobre a legislação, justifica-se uma avaliação cuidada da sua aplicação prática para compreender a perceção pública do que é uma licenciatura e um mestrado e preparar um pequeno passo na clarificação dos diferentes objetivos dos dois subsistemas. Poderia ser avaliada a conveniência de clarificar a linguagem usada para os MBA e “mestrados executivos” e evitar confusões com ciclos de estudos acreditados em Portugal. Estes “mestrados” e as pós graduações estão em franca expansão pelo que seria oportuno antecipar dificuldades futuras. Além disso, a possibilidade de, por reconhecimento, aproveitar estas formações para ciclos de estudo acreditados cria uma zona cinzenta com riscos óbvios.

2.2.2. A diferenciação

Pode imaginar-se uma educação superior muito mais diferenciada que atualmente com muitos estudantes a encontrarem um tipo de educação melhor ajustado aos seus interesses, capacidades e ambição. Acresce que esta via de diferenciação poderá manter um serviço educativo de proximidade se forem construídos percursos (bem desenhados) para a transição dos estudantes entre instituições diferentes. Face ao lento crescimento da população estudantil, esta reorganização da procura estudantil obrigará a uma reconversão de algumas instituições e a uma consolidação de outras que, isoladamente, terão dificuldade em manter uma oferta diversa a custos razoáveis. Considerando a nossa situação atual e comparando com outros países (Reino Unido, Dinamarca, Estados Unidos, p. ex.), a oferta em ambiente de investigação internacionalmente competitiva poderá vir a ser vista como excessiva por não ter uma procura que permita altos níveis de qualidade académica nem poder ser mantida a um nível competitivo pelos elevados custos que isso envolve.

2.2.3. A rede Regional

Na fase de crescimento mais rápido (e mesmo depois disso), sucessivos governos procuraram dar resposta às ambições regionais criando instituições de educação superior em todas as capitais distritais, por vezes com extensões noutras cidades, algumas com pergaminhos muito recentes. Esta realidade não pode ser vista como uma resposta à procura regional porque essa procura é frequentemente dirigida para outras regiões mas tem hoje uma função muito importante como suporte, em alguns casos quase único, à economia regional. A sua dimensão não permite, nem atingir um alto nível de competitividade interna, nem uma eficiência elevada e têm grande dificuldade de resposta às flutuações da procura estudantil. O impacto regional é óbvio no que resulta da despesa local de professores e estudantes, mas está mal estudado no que concerne à fixação de graduados ou ao empreendedorismo local. Os custos desta rede regional são suportados pelo estado (pela baixa de eficiência da despesa) e pelas famílias que pagam a deslocação involuntária dos estudantes (apesar de o custo de vida estudantil ser ali menor do que nos centros maiores).
Não podemos deixar de valorizar esta rede dispersa como resposta de proximidade, que permite levar mais longe o ensino superior e favorecer a sua relevância para as economias regionais[24]. Apesar das frequentes críticas dos responsáveis das grandes instituições que gostariam de crescer à custa das que estão dispersas pelo território, sucessivos governos têm procurado evitar a inviabilização destas. Provavelmente, conseguiremos manter este equilíbrio delicado desde que haja alguma consolidação dos perfis de oferta educativa e se desenvolvam novas estratégias de potenciação do seu contributo para o desenvolvimento regional. A recente requalificação da maioria do pessoal docente disponibiliza um valioso corpo técnico cuja atividade terá de ser orientada para áreas relevantes para a economia da região. Note-se contudo que a janela de oportunidade é estreita porque, não havendo bons estímulos e faltando casos exemplares a ser seguidos, estes docentes recentemente doutorados ficarão com a única opção de prosseguir temas já conhecidos na linha do trabalho das universidades onde se graduaram mas com muito piores condições de sucesso.


2.2.4. O numerus clausus

A introdução de cotas no acesso tornou-se inevitável (em alguns cursos) quando o governo revolucionário decidiu não admitir novos estudantes ao ensino superior em 1974, após a quase paralisação do trabalho em sala de aula depois de 25 de Abril e a generalizada aprovação “administrativa” de todos os alunos inscritos. Deve notar-se que já antes da revolução a situação era muito delicada em Medicina onde cada uma das três faculdades de medicina era obrigada a admitir muitas centenas de estudantes (mais de mil em alguns casos), sem que fossem criadas as condições necessárias. Se o problema era delicado no outono de 1974, tornou-se impossível no ano seguinte pela acumulação de duas gerações estudantis. Neste quadro, a solução foi introduzir limites quantitativos em alguns cursos, sistema que foi depois alargado a todos os cursos e se tem mantido, sendo razoavelmente bem aceite pela população. O sistema de acesso baseado em exames de disciplinas do secundário é iníquo por prejudicar os oriundos de famílias menos favorecidas que não podem pagar o apoio adicional, “explicações”, aos seus filhos nem escolher a melhor escola; é completamente aleatório quando decide do acesso a Medicina ou a Arquitetura por diferenças de décimas ou centésimas em notas à volta dos 19 valores. A diferença entre o primeiro e o último classificado na ordenação de acesso a um dado curso pode ser 1 em 20 valores da escala classificativa! Já foram tentados sistemas alternativos de seleção mas nunca adotados pelos evidentes riscos: conhecem-se as deficiências do atual mas as famílias estão habituadas a uma decisão pretensamente objetiva que serve razoavelmente bem os grupos sociais dominantes. A seleção social do acesso dá-se na generalidade dos cursos com uma manifesta prioridade para os cursos universitários e para os que são vistos como mais profissionalizantes. Tudo isto é bem conhecido mas nunca entrou, nem marginalmente, na agenda política da direita ou da esquerda.  Provavelmente, um sistema de limitação das entradas não será eliminado, embora possa vir a estar subsumido numa limitação da dotação de orçamento de estado das instituições.
Não havendo uma avaliação das aprendizagens dos estudantes, todos os incentivos se alinham no sentido do crescimento do número de estudantes. Acresce que o sistema de financiamento por estudante inscrito, que foi estabelecido na década de 1990, se mantém fortemente gravado no imaginário dos agentes do sistema, embora tenha sido efetivamente abandonado há mais de 10 anos (depois de nunca ter sido aplicado com rigor). Retirado bruscamente o numerus clausus, a liberdade de escolha pelo estudante criaria enormes desequilíbrios entre os diversos setores das universidades públicas e levaria ao encerramento da maioria das privadas e dos politécnicos públicos.  Todas as indicações vão neste sentido embora tenhamos podido conviver com essa liberdade até 1974 sem desequilíbrios graves (à exceção da medicina nos anos finais do regime). Nos países europeus onde não há tradicionalmente limitações quantitativas no acesso, sendo livre a escolha do curso e da instituição onde o estudante se vai inscrever, são conhecidas as más condições de trabalho nessas instituições e o muito elevado insucesso académico. A Inglaterra está a experimentar a liberalização das admissões por cada universidade ao mesmo tempo que anuncia um sistema de avaliação da qualidade do ensino.
A situação social é hoje diferente. Como já foi explicado acima, a massificação do acesso levou a que a seleção social se deixasse de fazer ao longo do processo educativo básico e secundário e, em menor grau, depois de conseguido o acesso ao superior para passar a fazer-se depois, na entrada no mercado de trabalho, em função das relações sociais das famílias. Possivelmente, a ascensão social continuará garantida à elite dos 5 ou 10% de topo em muitos cursos universitários. Só para estes teremos uma seleção por competências que compense o eventual handicap da sua rede social mais frouxa.
O sistema de seriação atual no Concurso Nacional de Acesso tem seguramente espaço de melhoria. O uso da classificação interna (que entra na nota média de seriação com um peso não inferior a 50%) tem sido criticado pelas variações naturais dos critérios de classificação usados em escolas diferentes e pela suspeição de que possa haver inflação deliberada em alguns casos. Uma correção da seleção social que este tipo de seriação sempre produz não é fácil mas seria relevante. A opção por testes de aptidão tem longuíssima tradição nos Estados Unidos. O SAT[25] procura medir o raciocínio crítico, a resolução de problemas; o ACT[26] procura medir o que foi aprendido no ensino secundário para determinar o grau de preparação para o ensino superior. Em Inglaterra, embora o sistema central de admissão[27] dependa dos resultados obtidos no ensino secundário, há uma multiplicidade de testes exigidos especialmente nos cursos e instituições mais competitivas. Algumas universidades estrangeiras mais exigentes estão a usar um teste do mesmo tipo[28]. Em muitos países há uma política ativa de incentivo à maior diversidade do meio social de origem dos estudantes admitidos nas instituições de maior prestígio, sem que isto baixe os padrões académicos da instituição. Havendo consenso em que o potencial desempenho de um estudante oriundo de um meio social mais desfavorecido (ou que tenha frequentado escolas de menor qualidade) é subavaliado pela simples seriação pelo resultado final de um exame do ensino secundário, é reconhecidamente difícil acordar numa parametrização do mecanismo de compensação. As soluções adotadas noutras regiões não são fáceis de transferir para o nosso meio.

2.2.5. O insucesso escolar

Apesar de estar historicamente no seu ponto mais baixo (pelo menos, desde os princípio do século XX), o insucesso escolar mantém-se permanentemente na agenda política a nível institucional e governamental. De facto, a grande maioria dos jovens que hoje atravessa a porta de entrada no ensino superior acaba por sair uns anos depois com um diploma de graduação[29] e a situação era muito diferente no passado. A grande maioria desses (poucos) jovens que chegavam à universidade acabava por encontrar outro caminho, renunciando ao almejado canudo. Para além da crescente consciência (e poder) de grupo dos estudantes, esta alteração é também uma consequência da massificação e da crescente preocupação com a eficiência da utilização do orçamento público. O aumento quantitativo e o melhor funcionamento do apoio social que hoje atinge cerca de 25% dos estudantes de graduação terão quase eliminado o abandono por razões económicas. O insucesso é visto como um desperdício e a culpa é quase sempre projetada sobre as instituições. Estas desculpam-se sempre com a sua limitada capacidade de escolha dos seus estudantes e com a “má preparação” dada pelo secundário. São razões demasiado velhas para serem verdadeiras... De facto, nos países onde a seleção dos estudantes a admitir é feita essencialmente pelas instituições, estas tendem a tomar a ameaça de insucesso como falha do processo de seleção e procuram que esses casos sejam a exceção. Assim é, mas as estatísticas internacionais mostram que o insucesso dos nossos jovens estudantes não é superior ao dos melhores padrões de comparação nem à média da OCDE.
Não sendo um problema específico das nossas instituições de ensino superior, não deixa de representar um importante desperdício que merece atenção. Uma pressão direta (que já existe entre nós de forma difusa) para melhorar o sucesso estatístico tem certamente efeitos imediatos mas um enorme risco de descrédito a longo prazo. Não havendo uma aferição externa dos resultados da aprendizagem é preciso atuar com muita prudência. A introdução de algum processo de aferição é visto como inadmissível porque era desnecessário enquanto as universidades europeias (continentais) eram simples burocracias de estado livres de seguir a sua missão autodefinida. Mas deve lembrar-se que mesmo universidades com a tradição medieval continuada como Oxford  e Cambridge mantêm um sistema de external examiner com a intenção de velar pela qualidade das aprendizagens[30]. O modelo foi copiado por alguns países da Commonwealth e do norte da Europa mas é totalmente estranho aos hábitos do resto da Europa. O governo norte-americano, desde Clinton a Obama, tem insistido na necessidade de avaliar os resultados das aprendizagens porque têm sido levantadas sérias dúvidas[31] sobre o valor de alguma educação superior. Um projeto piloto[32] de teste do valor acrescentado da aprendizagem foi lançado em 2000.Teve a adesão de um número de Community Colleges que o aplicam regularmente mas é combatido ferozmente pelo establishment que teme uma estandardização rígida do ensino. Há sinais recentes de uma grande preocupação com a qualidade do ensino superior em Inglaterra, com propostas de alteração legislativa[33] para criar uma nova agência de regulação. No último inquérito à perceção estudantil da sua própria experiência académica[34], há 85% dos estudantes que se dizem satisfeitos com a sua experiência universitária mas há um grande declínio da perceção do value for money dos cursos e parece haver uma preocupação crescente com o baixo número de horas de contacto. Os estudantes dizem ter, em média, 13,5 horas de contacto semanal mas 29% dos estudantes dizem ter 9 horas ou menos e apenas 53% destes se dizem satisfeitos com a situação. Há receio de que o novo enquadramento legislativo venha a diminuir a autonomia institucional de autorregulação dos padrões académicos mas parece haver compreensão para a sua necessidade[35].
Considerando a enorme desregulação do sistema de ensino superior, especialmente no setor privado, vários países ibero-americanos sentiram a necessidade de introduzir alguma avaliação das aprendizagens de que o provão brasileiro está longe de ser exemplo único. Caminhando-se para espaços educacionais mais amplos em consequência da globalização e mantendo-se a grande diversidade institucional, a pressão neste sentido continuará a aumentar também na Europa.

2.2.6. A oferta pública

Nos termos do Artigo 75º da Constituição, o estado deverá manter uma rede pública que “cubra as necessidades de toda a população” e “reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo”. Portugal tem hoje uma rede de 14 universidades públicas e 15 institutos politécnicos públicos havendo ainda 5 escolas politécnicas não integradas e escolas politécnicas em 7 universidades. Havendo pelo menos uma instituição de ensino superior em cada distrito do continente e das ilhas, podemos dizer que existe uma oferta de proximidade. É bem sabido que a divisão distrital criada no advento do regime liberal está hoje mal adaptada à organização do território e às necessidades da população. Basta notar que, aquando da sua criação, não havia linhas férreas e quase não havia estradas, sendo as deslocações feitas por via fluvial e marítima e, com dificuldade e risco, por carruagem ou então a cavalo e a pé. Das divisões alternativas que foram tentadas mais recentemente, só as sete NUT 2 tiveram estabilidade apesar das alterações feitas na região de Lisboa e Vale do Tejo à medida do aproveitamento dos fundos comunitários.
Sendo a procura de ensino superior feita muito em função da proximidade da residência, a divisão distrital dá uma primeira indicação grosseira[36]. Dos 20 distritos, metade têm uma população inferior a 300 000 habitantes o que sinaliza a dificuldade em criar ali uma oferta completa de ensino superior. A especialização não é a solução, apesar de a criação de um polo de excelência no ensino ou na investigação poder alargar o âmbito de captação de estudantes.

Tabela 2. A população dos distritos associados imediatamente a cada universidade.
Universidade
População
(em milhões)
Distritos imediatos considerados
Minho
1,09
Viana do Castelo e Braga
UTAD
0,35
Vila Real e Bragança
Porto
1,81
Porto
Aveiro
1,09
Aveiro e Viseu
Coimbra
1,00
Coimbra e Leiria
UBI
0,48
Guarda, C. Branco e Portalegre
Lisboa, UNL e ISCTE
3,09
Lisboa, Santarém e Setúbal
Évora
0,32
Évora e Beja
Algarve
0,45
Algarve
Madeira
0,27
R. A. Madeira
Açores
0,25
R. A. Açores
















As instituições da orla litoral entre o Minho e Lisboa têm uma pressão demográfica elevada com cerca de  1 milhão de habitantes por universidade (o Porto distingue-se por ter 1,8 milhões) enquanto que as outras servem uma população imediata entre 0,25 milhões (Açores ) e 0,48 milhões (UBI). Esta análise muito simplista já evidencia as enormes diferenças de condições de operação destes dois grupos de universidades. As deste segundo grupo são obrigadas a manter cursos com um número mais reduzido de estudantes, com perdas de escala que podem ser consideráveis.
A oferta pública de ensino politécnico é relativamente mais escassa em Lisboa e Porto e inexiste (à exceção da enfermagem) nas R. A. dos Açores e da Madeira. Este problema deveria ser corrigido para cumprir plenamente a obrigação constitucional. Acresce que a oferta caraterística do ensino politécnico deve ser mais local pelo que não se pode compreender a sua falta nestas regiões. A acreditarmos nas vantagens de um sistema binário de oferta universitária e politécnica, a existência de uma oferta universitária elevada não pode substituir a oferta politécnica.
Na tabela 3 ão se mencionam as 5 escolas politécnicas não integradas que não têm impacto significativo nesta análise. Porventura, o mais afastado da realidade na análise na Tabela 3 é o que se refere ao IP Beja devido à excentricidade da sede do instituto e à grande dispersão da população alentejana. Portalegre e Guarda, seguidos de Castelo Branco, têm uma situação mais difícil do que qualquer dos outros. O estudo da transferência de estudantes entre distritos, com base nas candidaturas e colocações através do Concurso Nacional de Acesso (CNA) organizado anualmente pela Direção Geral do Ensino Superior, foi feito36 pela A3ES (Agência de Avaliação e de Acreditação do Ensino Superior). Mesmo esta análise mais detalhada apenas permite um estudo descritivo grosseiro porque o CNA representa 84% das admissões nas universidades e 69% nos politécnicos (valores relativos a 2013/14). Para as universidades em maior dificuldade de captação de estudantes o CNA fica pelos 70%; quatro institutos captam apenas 50% ou menos dos seus estudantes pelo CNA. Para a área das engenharias a situação é mais extrema porque em seis dos quinze institutos o CNA representa menos de 15% dos estudantes admitidos no 1º ano pela 1ª vez.
Tabela 3. A população dos distritos associados imediatamente a cada instituto politécnico e conjunto de escolas politécnicas em universidades. 
Universidade
População
(em milhões)
Distritos imediatos considerados
IP Viana do Castelo
0,24
Viana do Castelo
IP Cávado e Ave
0,85
Braga
IP Bragança
0,35
Vila Real e Bragança
IP Porto
1,81
Porto
U Aveiro
0,71
Aveiro
IP Viseu
0,38
Viseu
IP Guarda
0,16
Guarda
IP Castelo Branco
0,20
Castelo Branco
IP Portalegre
0,12
Portalegre
IP Coimbra
0,43
Coimbra
IP Leiria
0,47
Leiria
IP Santarém, IP Tomar
0,45
Santarém
IP Lisboa
2,24
Lisboa
IP Setúbal
0,85
Setúbal
IP Beja
0,32
Évora e Beja
U Algarve
0,45
Algarve
(Madeira)
0,27
R. A. Madeira
(Açores)
0,25
R. A. Açores
























Uma análise mais fina com o número de estudantes inscritos em cada instituição (ou com o numerus clausus definido para licenciaturas e mestrados integrados), permitiria confirmar o que já é sugerido nesta análise. Lisboa tem uma oferta politécnica insuficiente e o Porto tem uma oferta muito insuficiente quer no setor politécnico quer no universitário. Esta situação obriga muitos estudantes a optarem por instituições privadas ou a assumirem o custo da deslocação para outra região. Há certamente estudantes a fazer uma opção livre por certa(s) instituiç(ões) privada(s) mas a situação mais comum é ser o recurso disponível que, em Lisboa ou no Porto, pode representar um menor custo para a família do que a deslocação para outra região do país.

2.3. O modelo binário de ensino superior

Com a criação dos institutos politécnicos no início dos anos de 1980, passamos a ter um modelo binário de ensino superior onde foram incorporadas as escolas de formação de técnicos superiores de engenharia e de professores de 1º ciclo do ensino básico (então instrução primária). A rede pública de ensino politécnico chegou a todas as sedes de distrito e a educação superior passou a cobrir toda a formação de todos professores do 1º e 2º ciclos do ensino básico e as artes. Apesar do esforço posto na diferenciação legal das missões das instituições universitárias e politécnicas, isto tem sido mal compreendido pela sociedade. As diferenças entre algumas universidades públicas e entre alguns politécnicos públicos são porventura maiores do que as diferenças entre algumas universidades e alguns politécnicos. A perceção da diferença é ainda agravada pela existência de cursos com a mesma designação (e objetivos?) nos dois subsistemas. É frequente ouvir-se a queixa do academic drift de alguns politécnicos. Facilmente se encontrarão exemplos a comprovar esta realidade mas não deixa de ser verdade que todas as universidades, em graus bastante diferentes, adotaram estratégias de oferta educativa no início reservada ao politécnico. Esta realidade criou repetidamente problemas à gestão do sistema e será difícil de a ultrapassar sem a introdução de políticas públicas claras de estímulo à diferenciação. Estando a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e as suas antecessoras Instituto de Alta Cultura (IAC) – Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC) – Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT) muito focadas na investigação de cariz universitário, a diferenciação das missões dos dois subsistemas exigiria outra agência responsável pela investigação orientada (ou aplicada) que é a missão declarada dos institutos politécnicos. Tal nunca existiu. A Agência de Inovação nunca teve a estabilidade nem a clareza de missão para assumir esta missão. As verbas canalizadas pelos programas regionais nunca tiveram um sistema verdadeiramente competitivo com avaliação ex ante e ex post para assegurar a progressiva seleção dos grupos mais eficazes na utilização de fundos públicos para o desenvolvimento regional. O sistema científico está centrado numa rede de unidades de investigação avaliadas pela FCT onde os grupos universitários são dominantes. Com a reforma das carreiras docentes de 2009, os docentes do setor politécnico são equiparados para quase todos os efeitos aos do setor universitário, mas não existem quaisquer políticas públicas de investigação que lhes sejam especificamente dirigidas.

Figura 5. Taxa de desemprego em Portugal, Espanha, Irlanda, zona Euro, União Europeia e Estados Unidos[37]. No 4º trimestre de 2015, o desemprego em Portugal era de 12,2%.
Vamos admitir que Portugal consegue vencer o esforço para manter a diferenciação atual entre instituições universitárias e instituições politécnicas. Para tal será necessário criar instrumentos que induzam uma diferenciação real e bem compreendida pelos estudantes e pela sociedade. A situação de crise generalizada no emprego poderá facilitar essa evolução se as licenciaturas politécnicas se conseguirem afirmar por uma melhor empregabilidade decorrente da proximidade da realidade social das suas regiões. Parece haver alguns sinais de que isto esteja já a acontecer. A diferenciação da educação superior exige uma diferenciação do ambiente institucional de aprendizagem. Para isso será necessário confirmar as diferentes missões de universidades e politécnicos onde o acompanhamento dos estudantes deverá ser mais intenso e a componente de investigação poderá ter um cariz mais aplicado, de apoio à inovação e de aperfeiçoamento da prática profissional.
Os cursos de Técnico Superior Profissional (TeSP) com a duração de 2 anos foram bem acolhidos pelos institutos politécnicos. A sua procura estudantil está dentro do previsível podendo crescer progressivamente até atingir mais de 10% da coorte. Esta projeção não se afasta do que já hoje acontece noutros países europeus[38]. O êxito desta via de entrada no ensino superior depende da sua proximidade das famílias e do seu ajuste à realidade local ou regional do mercado de trabalho. Com a universalização do ensino secundário, será uma via privilegiada de continuação e diferenciação. Começa também a ser reconhecida como uma via de reconstrução do percurso profissional para ativos. Em Espanha, 44% dos estudantes inscritos nestes ciclos curtos têm 23 ou mais anos de idade. Na Dinamarca, esta mesma percentagem é de 50%[39].
Numa época em que todos os países se preocupam com a relevância do ensino superior no sentido de melhorar a empregabilidade, de atenuar a frustração dos jovens diplomados que se sentem sobrequalificados para a atividade que exercem e de compatibilizar os custos públicos e privados com a realidade económica, as propostas de reforma são quase sempre controversas. Um recente estudo elaborado na Dinamarca[40] propõe a redução do número de vagas nos cursos com maior desemprego nos últimos anos e a limitação do número de estudantes que transitam de licenciatura para mestrado. Isto apesar de prever um forte dinamismo na procura de graduados, particularmente no setor privado. Lamentam que as licenciaturas não estejam suficientemente focadas na entrada imediata no mercado de trabalho, verificando que o prolongar de estudos não dá garantia de melhor remuneração quando as empresas não têm necessidade dessa qualificação mais longa. A necessidade de melhorar a aprendizagem dos estudantes não é também esquecida.

 

2.4. O financiamento

Na generalidade dos países europeus, as instituições de educação superior estão hoje sob grande pressão para mostrarem ganhos de eficiência e não se vê como as condições macroeconómicas destes países poderão permitir uma inversão da tendência. Se o problema é sentido primeiro pela disciplina dos orçamentos públicos, as famílias não terão maior desafogo num quadro de improvável retorno a um crescimento económico bem marcado. Esta realidade vai obrigar a uma mudança de metodologia de ensino/aprendizagem e, provavelmente, ao crescimento das “teaching universities” ou da componente de ensino em instituições que mantenham a dupla missão. É de facto incompreensível que a educação superior em ambiente focado no ensino tenha uma maior presença nos Estados Unidos onde a despesa nacional com educação superior é muito maior que na Europa. O impacto deste processo poderá ser mais sentido pela concentração dos orçamentos de investigação num pequeno número de instituições como acontece na Inglaterra. Não se vê como um sistema de educação superior mais pobre o pode evitar se os mais ricos o seguem.
A relação custo/benefício da educação superior nos Estados Unidos tem sido posta em dúvida[41] pela estagnação das remunerações dos graduados enquanto o investimento individual feito pelo estudante até à graduação tem subido muito acima da inflação. De facto, as propinas nas instituições públicas com os cursos de 4 anos subiram em média de $10 385 em1982 para $23 872 em 2012, em dólares de 2012 (corrigido para a inflação). Estes aumentos não significaram mais ou melhores professores mas resultaram da redução do financiamento estadual e da melhoria das condições de vida estudantil e de prática desportiva.
Em Portugal, a dotação do Orçamento de estado para as instituições públicas de ensino superior baixou 14% em quatro anos (em termos comparáveis de custos de recursos humanos, 2011-2015). As propinas pagas pelos estudantes portugueses mantêm-se em cerca de 1000€ anuais, indexadas à inflação, o que representa 17% (16% nas universidades e 19% nos institutos politécnicos) do total de receitas das instituições. Note-se que 25% dos estudantes têm apoio social, sendo-lhes pago pelo menos o valor devido em propinas.
A despesa pública com o ensino superior em Portugal é modesta por comparação com os parceiros da OCDE[42]: 0,8% do PIB em comparação com 1,3% de média na OCDE e 1,2% na EU21. A Espanha gasta 1,0% e a Itália 0,8%. Segundo a mesma fonte da OCDE, o rácio discente:docente é em Portugal de 14, comparado com 16 na média da OCDE e na média da UE21. É de 12 em Espanha e 19 em Itália. Para a Irlanda, a relação é de 20 havendo queixas[43] de que entre 2008 e 2012 o número de estudantes terá subido de 10% (a Irlanda está imune à crise demográfica!) enquanto o número de docentes caía de 12%. Durante o período de correção orçamental de 2010-2015, a relação discente:docente em Portugal teve uma variação muito pequena, subiu menos de 0,5%. Isto sugere que as universidades e institutos politécnicos públicos terão protegido os seus colaboradores docentes das poupanças a que foram forçados.
Face às necessidades de apoiar outras áreas das funções sociais do estado, o desafio que vamos ter nos próximos anos é conseguir maiores ganhos de eficiência sem prejudicar a aprendizagem dos estudantes. O espaço de diversificação das fontes de financiamento para além da dotação pública e das famílias parece muito limitado apesar da pressão existente. De facto, as instituições portuguesas, universidades e politécnicos, têm muito poucas receitas de outras fontes, para além das receitas de investigação (a grande maioria de origem pública) e sempre consignadas à execução de projetos contratados. Nos países supostamente mais eficientes como o Reino Unido  ou os Estados Unidos, as universidades recorrem a um corpo docente mais flexível e diverso. Nalguns casos, a maioria das horas de contacto dos estudantes é já com docentes sem contrato para investigação. É um caminho que precisa de uma avaliação muito cuidada porque (i) os nossos corpos docentes são já bastante envelhecidos[44] e uma transição no sentido de redução do corpo académico agravaria esta realidade e (ii) a qualidade do ensino tem de ser salvaguardada quando não melhorada, exigindo-se o maior rigor na verificação deste objetivo.
Mesmo reconhecendo a exigência de grande contenção da despesa pública nos próximos (muitos) anos, vai ser necessário dar alguma atenção acrescida à manutenção dos edifícios. A disponibilidade de fundos comunitários desde a nossa adesão em 1985 permitiu a satisfação de quase todas as necessidades, algumas vezes com padrões de qualidade acima da média europeia. Contudo, alguns destes edifícios têm já custos de manutenção significativos que dificilmente poderão ser enquadrados dentro da estratégia orçamental seguida nos últimos 10 anos. Não existem nem foram incentivadas poupanças que permitam o esforço de investimento necessário para a manutenção do edificado sem apoio extraordinário de fundos públicos nacionais ou europeus.

2.5. O espaço para a oferta privada

Temos hoje 16% dos estudantes do ensino superior inscritos em instituições privadas e 84% em públicas. Em 1995/96, as instituições privadas tinham 36% dos inscritos. (Nos Estados Unidos, 72% dos estudantes frequentam instituições públicas e 20% instituições privadas não lucrativas onde se inclui a ivy league e as confessionais e apenas 8% instituições privadas com fins de lucro. A grande diferença entre uma universidade pública e uma universidade privada não lucrativa está na dotação estadual que, no passado, assumia quase todo o custo do ensino. Os membros do board of trustees são nomeados pelo governo estadual, num caso, e, autonomamente, segundo as disposições estatutárias, no outro.)
O período de crescimento mais rápido, na década de 1985-95, (ver Fig. 4) estimulou a criação de instituições privadas que começaram a perder estudantes logo que a procura estabilizou e as instituições públicas localizadas nos grandes centros urbanos continuaram a aumentar a sua capacidade de acolhimento. A capacidade da oferta privada criada nessa altura excede muito a existente em qualquer outro país da Europa ocidental. Passado o período de euforia, vieram tempos difíceis de perda de alunos enquanto lhes era exigido o cumprimento de normas de qualidade mais apertadas. A sua gestão mais ágil permitiu quase sempre uma rápida adaptação às condições de mercado, enquanto parece estar em curso um esforço de consolidação. Outras buscam um modelo de negócio mais sustentável e de especialização da oferta. Uma grande dificuldade resultou das novas condicionalidades impostas pelo Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) de 2007, especialmente da exigência de produção de investigação que não era a prática entre nós (com a exceção da Universidade Católica em algumas áreas) nem é usual na maioria das instituições privadas de ensino superior na Europa e nas Américas. Não é claro ainda como as nossas universidades privadas vão conseguir construir um modelo de negócio que alie uma atividade de ensino a estratégias de investigação. Noutros países, a oferta privada está mais focada nas áreas profissionais com um baixo nível de atividade de investigação. O nosso modelo de financiamento da investigação a custos marginais não facilita o desenvolvimento de grupos de investigação robustos e competitivos sem terem por base docentes do ensino superior em dedicação exclusiva. Não é previsível que esta situação mude a curto ou médio prazo pelo impacto financeiro que teria no investimento público em investigação.




3. E o futuro está já aí

Declarada a incapacidade para ver para além do horizonte, poderá ser útil alinhavar alguns comentários sobre aspetos particulares que terão impacto nos desenvolvimentos futuros. Não se pretende ser exaustivo na enumeração do que poderá ser visto como estrangulamentos do nosso sistema de ensino superior mas apenas chamar a atenção para alguns problemas.

 

3.1. O modelo de educação superior

Tem sido notado que uma das coisas que menos mudou desde a idade média foi o ambiente na sala de aula: um professor a exibir a sua erudição frente a alunos pouco motivados e mais interessados na socialização interpares do que na aprendizagem. Há sinais de que as coisas poderão estar a mudar e que 2050 será muito diferente. Ainda que as tecnologias de informação e comunicação não tenha tido o poder transformador rápido muitas vezes anunciado, o número de cursos tomados na internet tem vindo a crescer gradualmente, muitas vezes por estudantes inscritos numa instituição convencional. Os MOOC (Massive Online Open Courses) apareceram com grande fanfarra e muito investimento privado. O ano de 2012 terá sido o ano de maior impacto e de preocupação das instituições tradicionais. Depois disso, não têm crescido nem têm atingido o nível de influência que era previsto e temido. Contudo, poderão estar a ter um efeito mais subtil mas importante. Estarão a desconstruir o processo educativo tradicional em que é oferecido ao estudante um pacote relativamente rígido. Estarão a abrir o caminho para percursos de aprendizagem mais complexos em que as instituições tradicionais terão menos controlo.
A educação a distância nunca se afirmou significativamente em Portugal, ficando muito atrás da maioria dos países, mesmo dos nossos vizinhos mais imediatos. A Universidade Aberta tem um impacto limitado e não existe nas instituições presenciais uma única experiência de sucesso que mereça registo. As técnicas de ensino na internet estão já generalizadas para disponibilização de informação mas os ambientes de aprendizagem diacrónicos são pobres e relativamente pouco usados. A situação é já hoje diferente noutros países. Não só a população estudantil nas universidades virtuais é já relevante como as universidades presenciais dão aos seus estudantes a opção de creditarem nos seus cursos aprendizagens feitas através da internet. Por vezes, esta possibilidade é criada por razões pragmáticas de incompatibilidade de horários mas poderá também permitir uma maior diversidade de opções oferecidas (sem que isso gere custos proibitivos) e a exposição a outros ambientes porventura de melhor qualidade científica ou pedagógica. As instituições mais fortes estão a aproveitar este canal para maior afirmação e para reforçarem o seu prestígio no espaço global.
Temos assistido em Portugal nos últimos 15 anos a uma tendência para a redução do tempo de contacto, quer em universidades quer em politécnicos. Isto é justificado nuns casos pelo aperto orçamental e, noutros casos, pela imitação das universidades inglesas e americanas de maior prestígio. Esta redução foi muitas vezes associada, abusivamente, à reforma de Bolonha. Sem que haja uma forte alteração da pedagogia, não se vê que melhoria esta redução poderá trazer. O risco de deterioração das condições de aprendizagem é muito alto, especialmente para os estudantes mais frágeis. A experiência de universidades francesas e inglesas[45] confirma-o claramente, ainda que nem sempre seja visível do exterior: só com estudantes mais competitivos e motivados pode ensaiar-se a diminuição do tempo de contacto sem baixar a qualidade das aprendizagens. Outro caminho seguido nos países de tradição anglófona é a reserva dos académicos para as funções mais nobres da docência e a utilização de outro pessoal (professores sem contrato para investigação, pós doutorados e estudantes de doutoramento) para as funções de rotina. Há queixas de que, em muitos casos, se poderá estar a ir longe de mais. Na Austrália, por exemplo, mais de metade do tempo escolar de contacto de um estudante é já feito com pessoas sem o perfil académico convencional. Visitando os portais dos Community Colleges americanos, facilmente encontramos comentários do tipo: “venha estudar connosco porque terá aqui professores muito experientes e não encontrará estudantes de doutoramento mais interessados no projeto de tese do que nas suas dificuldades de aprendizagem”.

3.2. Um ensino superior para todos

Em quase 900 anos de história sem descontinuidades da população nem do território, atingimos pela primeira vez uma situação de quase paridade educativa e cultural com as regiões mais centrais da Europa. Acresce que a relativa pobreza dos recursos naturais (incluindo os agrícolas) é muito menos relevante hoje do que no passado. No século XVIII, os nossos governantes entenderam usar os enormes recursos oriundos do Brasil para seguir uma política de busca de prestígio político europeu que arredasse os traumas de uma dificílima afirmação pós-1640. A destruição da nossa economia resultante, cumulativamente, do terramoto seguido das invasões napoleónicas e de uma longa guerra civil e instabilidade política levou a um longuíssimo declínio da nossa posição em relação à média europeia que só pôde ser sustida aquando da enorme destruição europeia da primeira guerra. A convergência que dolorosamente conseguimos ao longo de boa parte do século XX corre agora novos riscos. Contudo, dispomos de uma população (jovem) educada, um recurso que é hoje reconhecido como o mais relevante. Não podemos cair no síndrome argentino de uma educação avançada que não pôde suster um muito prolongado decaimento económico. Temos de garantir que a nossa educação superior está à altura dos desafios, que cada graduado sai equipado com as ferramentas necessárias para enfrentar um mundo cada vez mais aberto e competitivo.
Na década 1985-95, o sistema português de educação superior cresceu de uma forma muito rápida compensando, no essencial, o atraso em relação aos nossos parceiros mais diretos. Atingida a massificação, poderá esperar-se que um crescimento lento seja retomado, ainda que a forma e o tipo de educação superior procurada seja provavelmente diferente nesta retoma. A comparação com países que fizeram este caminho mais cedo e onde parece ter-se atingido alguma estabilidade, apontam algumas linhas de desenvolvimento que devem ser analisadas. A viabilidade de todo o sistema assim o exige. As fortes restrições orçamentais que nos são impostas atualmente parecem injustas porque ninguém (i) aponta o ensino superior como ponto de desperdício relevante, (ii) não são conhecidos escândalos graves na gestão das instituições públicas e (iii) a nossa despesa nacional com o ensino superior fica aquém da dos nossos parceiros mais diretos. No entanto, esta compressão da despesa pública é já uma realidade entre nós e, em grau diferente, a maioria dos países da OCDE tem vindo a diminuir a despesa pública com a educação para acorrer a outras áreas sociais. Quando não queiram prejudicar gravemente a qualidade da educação, a alternativa tem sido a transferência de custos para as famílias ou para uma dívida dos jovens estudantes. Esta última alternativa não seria um caminho fácil para um pequeno país com um sistema fiscal ainda deficiente e com uma grande mobilidade internacional dos seus graduados. Temos, assim, de procurar estratégias para manter e até melhorar a qualidade do serviço educativo superior oferecido a custos muito bem controlados.
Um ponto parece perfeitamente claro. A massificação e o caminho para a universalização só podem fazer-se com uma enorme diferenciação. Os países do continente europeu de tradição napoleónica resistem tradicionalmente a essa diferenciação e nós temos também tido dificuldade em afirmá-la. Se não quisermos perder a valiosa construção que conseguimos com muitos de decénios de trabalho, teremos de encontrar este caminho: um sistema binário mais compreensível por estudantes, famílias e empregadores e a clarificação dos diferentes objetivos dos (i) ciclos curtos (TeSP de 2 anos), (ii) primeiros ciclos (licenciaturas de 3 anos focadas na entrada imediata na vida ativa), (iii) primeiros ciclos focados na continuação de estudos ou mestrados integrados e (iv) mestrados de especialização ou de reciclagem e reorientação profissional. Esta clarificação está muito longe de estar conseguida em Portugal, havendo até sinais de que o desenho dos cursos e a estratégia de comunicação institucional não procura atingir este objetivo.
Não nos reconheceremos em todos os problemas que uma nota recentemente publicada no El Pais pelo perito José Ginés Mora[46] vê na situação espanhola como uma “bolha universitária”, mas nem tudo nos parecerá estranho e poderemos aproveitar este já longo período de estagnação demográfica para fazer uma consolidação profunda e assim contribuir para a pujança da sociedade




4. Porque temos de reforçar a investigação académica

O apoio à investigação académica depende da perceção pública do retorno que poderá vir a ser conseguido. O facto de este apoio financeiro com fundos públicos ter crescido desde a segunda guerra mundial não é garantia de que assim continue. As dificuldades que os estados europeus estão a encontrar para manter o nível de apoios sociais obriga a repensar quase tudo. Só uma confortável compreensão pública dos benefícios obtidos por todos os cidadãos permitirá justificar o nível atual do investimento público e o seu reforço futuro.

 

 

4.1. O porquê do financiamento público

A União Europeia, ameaçada pela travagem do crescimento económico de que beneficiara desde a sua fundação, lançou a chamada Estratégia de Lisboa que foi aprovada no Conselho Europeu de março de 2000 com o objetivo grandiloquente de converter a economia da União Europeia «na economia do conhecimento mais competitiva e dinâmica do mundo, antes de 2010, capaz de um crescimento económico duradouro acompanhado por uma melhoria quantitativa e qualitativa do emprego e uma maior coesão social». Este Conselho Europeu de Lisboa propunha-se “Preparar a transição para uma sociedade e uma economia fundadas sobre o conhecimento por meio de políticas que cubr[issem] melhor as necessidades da sociedade da informação e da investigação e desenvolvimento, assim como acelerar as reformas estruturais para reforçar a competitividade e a inovação“. Os recursos da Comissão Europeia não são suficientes para fazer a diferença se os países membros não alinharem as suas estratégias para reforçarem o esforço. Passados mais de 15 anos, todos concordarão que não se foi muito além da boa intenção mas também sabemos que ninguém tem a chave da passagem eficaz da produção de conhecimento para a sua utilização plena na sociedade.
Num trabalho recente do Fundo Monetário Internacional[47], chama-se a atenção para que os ganhos do investimento em I&D dependem criticamente da capacidade de absorção da base de capital humano e que esta pode ser maior para países mais distanciados da fronteira tecnológica. Mostram que 0,5% do PIB investidos podem chegar a dar um crescimento de 8% mas também notam que os resultados dependem criticamente das políticas seguidas. Parece haver um consenso em Portugal sobre a relevância da investigação académica para a inovação empresarial e social. Como na generalidade dos países desenvolvidos, há uma pressão acrescida para que se faça a ligação entre a investigação académica e a atividade económica do país. Poderemos esperar daqui o crescimento económico reforçado que permita ao país controlar as contas públicas e equilibrar a balança comercial? Piketty[48] parece duvidar ao sugerir que o crescimento rápido observado nos últimos dois séculos e, especialmente, no pós segunda guerra mundial poderá ser a exceção, não sendo de excluir o regresso permanente aos crescimentos muito lentos dos séculos anteriores, talvez 1% de média no muito longo prazo. Gaspar e Mooij[49] são mais otimistas ao sugerirem que as baixas expectativas são características dos períodos depressivos, indo buscar a experiência dos anos subsequentes à grande depressão de 1929. Recordam as previsões de crescimento feitas em 1930 por Keynes[50], então isolado no seu otimismo, que foram excedidas nos decénios seguintes.


Figura 6. Previsões de crescimento económico feitas por J. M. Keynes em 1929 quando a generalidade dos economistas acreditava que a época de crescimento criado pela industrialização tinha terminado. Keynes previa na altura que o PIB a preços constantes cresceria entre 4 vezes (linha inferior) e 8 vezes (linha superior) num século.
Tal como a economia e a sociedade se reinventaram com novas áreas de crescimento e, nos anos mais recentes, com crescimento quase desmaterializado, nada permite prever que esta tendência tenha terminado. A incorporação de conhecimento criado no meio académico cresceu progressivamente desde a primeira revolução industrial até hoje. Está aqui a fonte da convicção de que a “salvação” da economia e do progresso continuado das sociedades modernas só pode vir de um reforço da capacidade criativa cada vez mais fortemente alicerçada em conhecimento académico “desinteressado”. Esta perspetiva consolidou-se nas políticas públicas durante a 2ª guerra com a consciência de que o sucesso final dos aliados resultou muito dos contributos de cientistas académicos (desencriptação nas comunicações, radar, tecnologia nuclear). Com a experiência do sucesso da sua direção do esforço de investigação americano durante a guerra, Vannevar Bush[51] teve um papel importante no lançamento das estruturas de apoio federal norte americano à investigação académica no termo da guerra. Num sentido mais amplo, o reconhecimento do papel do conhecimento levou também ao desenvolvimento das teorias do capital humano pela escola económica de Chicago[52].

4.2. A posição portuguesa atual

O financiamento público da investigação e desenvolvimento nos países da OCDE rondou nos últimos anos em 0,6%-0,8% do PIB, tendo Portugal o valor de 0,61% e a União Europeia (15 países) 0,68% para o último ano registado. A Irlanda tem um valor surpreendentemente baixo para os resultados que obtém.

Figura 7. Investimento público em investigação e desenvolvimento, em percentagem do PIB[53].
Neste quadro comparativo, Portugal terá um espaço limitado para reforço do investimento público devendo criar condições e incentivos para o aumento muito significativo do investimento privado que é ainda muito baixo. O crescimento rápido do investimento público até 2009 refletiu-se num aumento do número de investigadores ativos e, em particular, num aumento do número de graus de doutor concedidos anualmente, o que se mantém ainda. Não havendo tradição de absorção de doutorados fora da esfera académica, esta situação está a criar uma grande frustração em muitos jovens doutores, mesmo nos mais promissores.


Figura 8. Número de graus de doutor concedidos anualmente em Portugal[54].
Sendo o número total de docentes (ETI) nas instituições de ensino superior português de cerca de 20 000, este número de novos doutores está muito acima das necessidades de renovação do corpo docente. Note-se que, terminado o efeito das disposições transitórias dos estatutos de carreira docente de 2009, este número poderá descer em algumas centenas correspondentes a doutorados que já estavam antes contratados como docentes e que estão agora a terminar o doutoramento. O número de investigadores doutorados no setor público, incluindo as instituições de ensino superior, poderá subir mas não a um ritmo que altere muito significativamente esta situação. A sua absorção depende portanto do dinamismo do setor privado que até agora recebeu um número pequeníssimo. Deverá questionar-se se a organização dos terceiros ciclos conducentes ao doutoramento não deverá ser ajustada a este novo objetivo da formação doutoral.

Figura 9.  Produção científica portuguesa anual indexada na Web of Science[55], de 1985 a 2014, e produção científica por quinquénio até ao quinquénio 2010-14[56] em relaçem 25 abr16, nal and Country Rank, de alimentar a esperança de que o patimento pa atividade no setor ional31313131313131313131313131313131313131313131ão à produção científica total da Europa ocidental e do mundo[57].
O desenvolvimento científico português pôde ser iniciado aquando da integração na União Europeia (então Comunidade Económica Europeia) registando-se, desde então, um crescimento exponencial do número de publicações com uma taxa média anual de 13% (Figura 9). A produção portuguesa chegou já a 2,83 % da produção da Europa ocidental e 0,77% da produção mundial. Com cerca de 20 000 documentos publicados anualmente, Portugal foi, no último quinquénio, o 27º país (ou território) com mais documentos referenciados na Web of Science  e o 32º no número de citações[58] no mundo; foi o 32º na ordenação pelo impacto normalizado médio (de entre os países com mais de 50 000 documentos no quinquénio). Em 2014, dos 16 países da Europa ocidental com mais de 10 000 documentos publicados anualmente[59], Portugal ocupa o 12º lugar em número de documentos mas o 16º e último lugar em impacto (citações por documento). A competitividade portuguesa é ainda baixa na competição para a obtenção de fundos europeus[60], embora haja sinais muito positivos nos anos mais recentes[61].

Tabela 4. Produção científica por milhar de habitantes dos 16 países da Europa ocidental com mais de 10 000 documentos (2014).
Temos o 11º lugar em documentos citáveis por milhão de habitantes e o 12ª em citações por milhão de habitantes. Em 2001, ocupava o 15º lugar em documentos publicados com o 16º em documentos citáveis e em citações por milhão de habitantes e em 15º em citações por documento. Infelizmente, a subida no ranking da produção ainda não foi acompanhada por uma subida no impacto médio das publicações.
Na comparação do número médio de citações por publicação por área científica[62], Portugal situa-se acima da média da UE15 em 5 das 22 áreas consideradas, na Agricultura, na Engenharia, na Física e, marginalmente, na Imunologia e na Neurociência & Comportamento. Está claramente abaixo em Microbiologia, Psicologia & Psiquiatria, Ciências Sociais, Biologia & Bioquímica, Química, Medicina Clínica e Ciência de Computadores. Para uma comunidade científica tão recente, é legítimo registar o bom desempenho já conseguido em algumas áreas.
Tal como nos outros países da OCDE, desenvolveu-se um grande esforço na periferia das universidades e dos institutos politécnicos para transformar a capacidade de investigação, comprovadamente já existente, em inovação, especialmente nas áreas tecnológicas. Contudo, todas as avaliações da capacidade de inovação ainda colocam Portugal muito atrás da posição correspondente à produção científica.

Figura 10.  Indicadores portugueses  no Innovation Union Scoreboard[63]
Mesmo tendo todo o cuidado na interpretação dos indicadores usados neste tipo de trabalhos, valerá a pena notar onde parecem estar os nossos pontos fortes e fracos. Como pontos fortes, regista-se estarmos acima da média europeia na produção de doutorados e de publicações científicas assim como em três indicadores relacionados com PMEs. Nos aspetos menos positivos, é identificado o atraso na universalização do secundário e na massificação do superior. Estamos, infelizmente, abaixo da média em quase todos os indicadores relacionados com a assimilação do conhecimento no tecido produtivo.


A grande questão é saber quais as políticas públicas que poderão incentivar a transferência de conhecimento e o desenvolvimento da inovação no setor empresarial (privado). De facto, enquanto o investimento público em investigação nos coloca já numa posição razoavelmente confortável, há deficiências enormes no desejável investimento privado e parece ter havido uma quebra nos últimos anos. De facto, os resultados provisórios do Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico[64] mostram que a participação das empresas na despesa de I&D baixou de 0,70% do PIB, em 2010, para 0,59%, em 2014. Em termos de recursos humanos, o inquérito sugere que se terão mantido globalmente constantes neste período mas com um crescimento do setor de ensino superior que compensa a queda nos setores IPSFL e estado. Se algumas empresas poderão ter sentido necessidade de cortar despesas sem retorno imediato, outras poderão estar a sofrer efeitos mais duradouros. Sendo o inquérito anónimo, não é seguro encontrar uma explicação para esta alteração mas alguns efeitos são quase evidentes. De facto, algumas grandes empresas portuguesas que teriam, previsivelmente, contribuições importantes para este indicador sofreram impactos duradouros na sua estrutura acionista e no seu posicionamento no mercado nacional e internacional. Facilmente poderíamos dar exemplos em setores que vão desde as telecomunicações até à banca e aos cimentos. Parece haver razões para termos esperança de que algumas startups venham a ter sucesso no mercado global ainda que as condições de partida não sejam ótimas pela falta de capital e pelo desconhecimento dos canais de acesso ao mercado. As pequenas empresas enfrentam melhor o risco mas são as grandes empresas que têm acesso a mercados mais amplos estando, assim, em melhor posição para a exploração comercial da inovação depois de consolidada. As grandes empresas têm, em geral, um maior valor acrescentado por trabalhador que as PME. Um tecido empresarial de pequenas e microempresas tem seguramente mais dificuldade em gerar as mais valias necessárias ao crescimento económico desejado.
Na última década, deu-se um enorme impulso ao empreendedorismo com base no ensino superior e a atividade no setor das startup de base tecnológica parece manter um crescimento muito rápido. É certamente muito positivo que este entusiasmo tenha contagiado muitas cidades que hoje apostam em estratégias fortes nesta área. A dinamização dos centros urbanos empobrecidos em Lisboa e Porto, mas também muitas outras cidades de média dimensão, tentam atrair a inovação de base tecnológica aos seus territórios. É certamente saudável ver autarcas de todo o país a tentar converter as estratégias de afirmação e crescimento das suas regiões muito baseadas no imobiliário para a inovação empresarial. É demasiado cedo para avaliar os resultados e para verificar se o investimento público que está sendo feito nesta área tem o retorno social e económico que todos esperamos, mas temos de alimentar a esperança de que o país esteja a mudar sob os nossos olhos.

4.3. Os desafios para um futuro mais sólido

Numa situação única no mundo, o sistema de ensino superior português está desenhado na perspetiva de que todos os docentes têm um mandato de investigação. Mais do que isso, só docentes com mandato de investigação nos termos dos estatutos de carreira docente podem apresentar-se, em sala de aula, como responsáveis de aulas teóricas, práticas, laboratoriais ou de seminário. Nos Estados Unidos, das quase 5000 instituições de ensino superior[65], 60 concedem cerca de 15% dos graus de Bachelor, 19% de Master e 45% de Research Doctorates. Em Inglaterra, as primeiras 15 instituições de uma lista de 130 de ensino superior recebem mais de 50% dos fundos de investigação na sequência das avaliações periódicas[66]. Também no continente europeu, a generalidade das instituições de ensino superior mais vocacional não têm um mandato de investigação, apesar dos esforços feitos nos últimos anos para aproximar as hogeschools holandesas ou as hochschulen alemãs da inovação empresarial. Esta realidade portuguesa foi juridicamente reforçada pelo RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior) de 2007 e pelos estatutos de carreira docente universitária e politécnica de 2009. Pela primeira vez as instituições privadas são confrontadas com a obrigação de manterem um bom perfil de investigação e os institutos politécnicos são induzidos a  estabilizarem um corpo docente doutorado tendo a dedicação exclusiva como opção base. Isto dá uma base mais alargada de pessoal sénior para a investigação académica mas cria o risco de excessiva dispersão de meios. As reações da comunidade académica à travagem ocorrida na concessão pela FCT de bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento a partir de 2007 sinalizam a dificuldade de adaptação. Mesmo não havendo diminuição do número de investigadores no ensino superior (ver IPCTN2014) nem sinais de contração do número de estudantes de doutoramento, o incómodo terá resultado da impossibilidade de manter a confortável taxa de crescimento anterior com a satisfação das expectativas de uma comunidade ainda em crescimento. 
A infraestrutura humana base da investigação é constituída pelos docentes do ensino universitário e do ensino politécnico. O número de investigadores (não docentes) com vínculo contratual às instituições de ensino superior é muito pequeno e o número de investigadores com contrato de trabalho temporário financiado pela FCT nos programas iniciados em 2007 manteve-se sempre limitado, entre 959 e 1086 no período de 2009 a 2014. A base de investigação dependente de outros ministérios (laboratórios do estado) é também muito limitada não tendo acompanhado o forte crescimento da área académica. A opção em Portugal foi centrar a investigação financiada pelo estado nas instituições de ensino superior, evitando a criação de grandes estruturas públicas equivalentes ao CSIC espanhol, ao CNR italiano ou ao CNRS francês cujos investigadores estão, em geral, alojados nas universidades ou na proximidade das universidades. Esta opção foi assumida aquando da extinção do INIC (Instituto Nacional de Investigação Científica) em 1992, numa altura em que muitos esperavam que o pessoal investigador próprio do INIC pudesse crescer à imagem destes exemplos europeus. Ainda que nunca se tenha conseguido aplicar um modelo transparente, a perceção das normas de financiamento das universidades e dos institutos politécnicos, desde 1990, é que a dotação seria proporcional ao número de estudantes inscritos em licenciatura e mestrado. Não há, assim, incentivos para a assunção de compromissos permanentes com pessoal investigador não docente. As instituições de interface de algumas universidades têm números significativos de investigadores e técnicos com contrato de trabalho permanente (sem quaisquer funções docentes) que sempre foi possível manter usando financiamento de projetos de investigação (maioritariamente públicos) e de prestação de serviços (público e privado). A existência de docentes e investigadores (não docentes) numa mesma instituição criou noutros países problemas na avaliação de desempenho (comparativa) e de concorrência (enviesada) em concursos de recrutamento e promoção que foram evitados entre nós. A expansão do quadro de pessoal permanente com uma distribuição de funções mais flexível entre a docência e a investigação poderá ser uma boa alternativa para estabilizar uma realidade já bem estabelecida de um corpo docente relativamente envelhecido acompanhado hoje por muitos jovens em pós-doutoramento ou em contrato de trabalho de investigação. Note-se que muitos destes investigadores juniores já assumem hoje alguma docência. Com um bom sistema de avaliação externa, deve ser possível transferir para as instituições de ensino superior públicas a responsabilidade de gerir um corpo de pessoal próprio que satisfaça de modo eficaz e flexível as suas missões de ensino, investigação e transferência de tecnologia. Havendo algum desconforto com a situação atual, terão de ser experimentadas rapidamente outras soluções que se poderão seguramente desenhar, mesmo sem aumento da despesa pública agregada com o ensino superior e a investigação.
A realidade é que as instituições de ensino superior, públicas e privadas, tinham 13 839 docentes doutorados[67] (11 710 no setor público) com contrato em tempo integral (com ou sem dedicação exclusiva). Destes, 8 977[68] (8 274 no setor público) apresentaram-se à última avaliação das unidades de investigação FCT, o que dá uma boa ideia da dimensão da base do sistema de investigação académico. Nos últimos anos, estes investigadores com vínculo permanente têm sido acompanhados por cerca de 1000 investigadores contratados a termo e cerca de 1500 pós-doutorados financiados diretamente pela FCT e muito concentrados nos grupos de investigação com melhor desempenho. Acresce ainda um outro conjunto muito significativo de investigadores contratados por projetos e por programas regionais dos quais não há um registo centralizado. Considerando o número de doutoramentos realizados anualmente, o número de estudantes de doutoramento ativos deve ultrapassar os 10 000. A soma destes ativos não está longe do número de investigadores no setor de ensino superior que foi determinado no IPCTN 2014 como sendo de 25 848[69]. Deve notar-se que o sistema é bastante seletivo, estando os recursos humanos e financeiros concentrados num número relativamente pequeno de instituições e de investigadores. Um bom grupo de investigação centrado em 3 a 5 docentes, poderá ter dez vezes o número médio nacional de investigadores doutorados por docente vinculado e três vezes o número médio de estudantes de doutoramento. O financiamento direto da FCT às unidades de investigação e aos laboratórios associados também está bastante concentrado. No período 2003-13, o financiamento de projeto estratégico[70] foi de €86 750 por cada um dos 3 977 investigadores dos 26 laboratórios associados e €23 027 por cada um dos 10 450 investigadores das (outras) 293 unidades de investigação.  Ao longo deste período de 11 anos, cada investigador doutorado recebeu €29 316 numa unidade excelente, €21 971 numa very good e €19 275 numa classificada como good.
Esta discussão foi feita na presunção de um quadro plurianual de financiamento das instituições de ensino superior e da ciência que se mantenha estável ao nível atual. No futuro próximo, tudo indica que estará razoavelmente garantido mas dificilmente será reforçado de forma significativa. Face à incerteza da situação na União Europeia e da economia global, é imprevisível o que poderá acontecer depois. Com algum otimismo poderemos supor que se manterá o quadro económico atual ou, se quisermos ir mais longe, que se encontrarão meios para reforçar o financiamento da educação superior e da ciência se pudermos demonstrar aos responsáveis pela política financeira e aos cidadãos que esse reforço produz um retorno positivo para a economia. Para isso, teremos de conseguir rapidamente focar todo o sistema de educação superior e ciência na obtenção de um crescimento económico que justifique essa decisão. Isto não será fácil numa ambiente de grande competição internacional, num ambiente aberto quanto à utilização do conhecimento mas onde outros espaços geográficos poderão manter as vantagens competitivas atuais no que diz respeito ao financiamento empresarial e à transposição rápida da inovação para o mercado global.
A nível interno, os desequilíbrios regionais do país exigem que todas as instituições reforcem a cultura de pensar global e atuar localmente. Exige-se um reequilíbrio da ocupação de todo o território nacional e, nalgumas regiões, as universidades e os institutos politécnicos são os agentes mais bem preparados para esse trabalho.
Para que o ensino superior e a criação de conhecimento que dele se espera possam ter sucesso na promoção do crescimento será necessário:
·  aumentar a diversidade da oferta educativa superior e a sua compreensão pelos estudantes, pelas famílias e os empregadores;
·    clarificar as missões das instituições de ensino superior na criação de conhecimento, no apoio à inovação social e empresarial e no apoio ao desenvolvimento regional;
·  reorientar o esforço de investigação académica para a resposta aos desafios da sociedade portuguesa e europeia;
·  conseguir ganhos de eficiência para conseguir aumentar o número de estudantes a frequentar o ensino superior sem aumentar os custos e portanto os recursos humanos altamente qualificados;
·  tornar o sistema de recrutamento de docentes e investigadores mais competitivo e internacionalizado para obter a colaboração dos mais criativos e bem preparados para responder aos novos desafios;
·    ajustar a estratégia das instituições ao declínio demográfico que vai atingir o seu público jovem a partir de 2020;
·   criar (porque ela é quase inexistente) uma oferta formativa destinada à formação contínua de ativos e à sua reorientação profissional.

Admitindo uma decisão racional dos decisores políticos, o apoio do orçamento de estado à investigação virá a depender dos resultados que esse investimento possa evidenciar no desenvolvimento económico, ficando provavelmente no intervalo 0,5 - 1,0% do PIB. Havendo uma componente fixa para os custos associados ao pessoal permanente de universidades e institutos politécnicos, uma pequena variação percentual é fortemente sentida como reforço de pessoal investigador e melhoria do financiamento da atividade da comunidade científica. Considerando a complexidade crescente dos problemas a ser considerados e a competição internacional resultante da entrada de países emergentes, teremos de criar condições para que nos possamos aproximar do limite superior. Note-se que a subida de 0,1% do PIB corresponde, em custos salariais, a quintuplicar o número de investigadores auxiliares contratados atualmente.




Referências
[1] Lei 5/73 de 25 de julho.
[2] A afirmação é geralmente atribuída a Miller Guerra: «Somos assim levados a concluir que a autonomia não pode ser considerada como o adequado ponto de partida – ou a alavanca – de uma autêntica reforma estrutural do sistema universitário, nomeadamente no nosso país. Por outras palavras: não cremos que a necessária reforma da Universidade seja viável enquanto autorreforma» (J. P. Miller Guerra & A. Sedas Nunes, «A crise da Universidade em Portugal: reflexões e sugestões». In A. S. Nunes, org., O problema político da Universidade, Publicações Dom Quixote, Lisboa,1970).
[3] O crescimento médio do PIB foi de 6,9% por ano no período 1960-1973, cf. E. Rocha, Análise Social, vol. XX (84), 1984-5.º, 621-644.
[4] A. Candeias, E. Simões, Análise Psicológica (1999), 1 (XVII): 163-194 Alfabetização e escola em Portugal no século XX: Censos Nacionais e estudos de caso.
[5] R. Houston. Encyclopedia of European Social History, Vol. 5, 2001.
[6] Os objetivos traçados nesse preâmbulo são claramente contraditórios e irrealistas: “a) Dar aos alunos uma educação nobre, própria de cavalheiros, formando-os moral e intelectualmente; b) prepará-los para a vida prática, isto é, proporcionar-lhes uma cultura completa e adaptada à nova sociedade industrial e científica e orientá-los para o desempenho de funções produtivas, isto é, para as carreiras técnicas; c) habilitá-los para frequentar as escolas superiores”.
[7] Conselho Nacional de Educação, “O Estado da Educação”, Lisboa, 2015.
http://www.cnedu.pt/content/edicoes/estado_da_educacao/Estado_da_Educa%C3%A7%C3%A3o_2014_VF.pdf
[8] Rómulo de Carvalho, História do Ensino em Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.
[9] Estatuto da Carreira Docente Universitária, Decreto-lei nº448/79 de 13 de novembro com alterações introduzidas pela Lei nº 19/80 de 16 de julho.
[10] Lei orgânica 11/1983 de 25 de agosto, BOE nº 209 de 1 de setembro de 1983, pág. 24034-24042.
[11] L. F. Costa, P. Lains, S. M. Miranda, História Económica de Portugal 1143-2010, A Esfera dos Livros, Lisboa 2011.
[12] J. Reis, J. Andrade Martins, L. Freire Costa, New Estimates of Portugal’s GDP, 1500-1850, Paper presented at the Conference on Quantifying Long Run Economic Development, Venice, 22-24 March, 2011. http://www2.warwick.ac.uk/fac/soc/economics/events/seminars-schedule/conferences/venice3/programme/note_on_the_estimation_of_gdp.pdf [Consultado em 30mar16]
[13] J. Reis, C. A. Martins, L. F. Costa, From Major Power to Economic Backwater: O PIB Português, 1500-1850, Paper presented at the CAGE conference on Accounting for the Great Divergence at the University of Warwick, 28 May, 2013.  http://www2.warwick.ac.uk/fac/soc/economics/research/centres/cage/events/conferences/mayconf/tuesday28may/reis.pdf [Consultado em 30 mar16]
[14] A. Maddison, The World Economy: a millenial perspetive, http://www.theworldeconomy.org/index.htm [Consultado em 30mar16]
[15] http://www.theworldeconomy.org/index.htm
[18] The Robbins Report (1963) , Higher Education, Report of the Committee appointed by the Prime Minister under the Chairmanship of Lord Robbins, London: Her Majesty's Stationery Office 1963. [http://www.educationengland.org.uk/documents/robbins/robbins1963.html]
[19] J. M. Bricall, Informe Universidad 2000. http://www.oei.es/oeivirt/bricall.htm
[20] Ref. [13] complementada por Pordata, http://www.pordata.pt/, consultada em julho de 2013.
[21] Datos y cifras del sistema universitário espanhol, Ministerio de Educación, Cultura y Deporte, http://www.institutodeevaluacion.mec.es/servicios-al-ciudadano-mecd/estadisticas/educacion/indicadores-publicaciones-sintesis/datos-cifras-sistema-universitario.html (consultado em maio/2016).
[22] A Critical Path: Securing the future of higher education in England, the Institute for Public Policy Research (IPPR) commission – chaired by University of Warwick Vice-chancellor Nigel Thrift, http://www.ippr.org/publication/55/10847/a-critical-path-securing-the-future-of-higher-education-in-england
[23] Bologna Process – European Higher Education Area, London Conference, 17-18 maio 2007, http://www.ehea.info/
[24] Nos Estados Unidos, a distância mediana entre a residência dos estudantes e as instituições de ensino superior é de 13km para os community colleges públicos, 29km para os 4-year públicos e 74km para os 4-year nonprofit.
[27] Universities and Colleges Admission Service, UCAS, https://en.wikipedia.org/wiki/UCAS
[28] Uma multiplicidade de testes criados pelo Admissions Testing Service associado à Universidade de Cambridge. http://www.admissionstestingservice.org/
[29] Não existe um estudo longitudinal que permita saber qual a taxa de sucesso global dos estudantes admitidos ao ensino superior. Estudos feitos por algumas instituições do progresso dos estudantes permitem estimar que uns 80% (ordem de grandeza) chegue à graduação. Na primeira metade do século XX esta taxa de sucesso na graduação seria inferior a 20%.
[30] O External Examiner foi introduzido no século XIX quando começaram ser criadas novas universidades para garantir que estas aplicavam os padrões académicos de Oxford e Cambridge.
[31] R. Arum and J. Roksa, Academically Adrift. Limited Learning on College Campus, University of Chicago Press, ISBN9780226028552, 2011.
[32] College Learning Assessment, http://cae.org/
[33] Success as a Knowledge Economy: Teaching Excellence, Social Mobility and Student Choice, presented to Parliament by the Secretary of State for Business, Innovation and Skills by Command of Her Majesty, London, May 2016.
[34] J. Neves, N. Hillman, The 2016 Student Academic Experience Survey, HEPI, Higher Education Policy Institute, Oxford, http://www.hepi.ac.uk/wp-content/uploads/2016/06/Student-Academic-Experience-Survey2016.pdf
[35] G. Alderman, The HE bill will sweep away self-regulation of standards. Whose fault that?, Times Higher Education, June 9, 2016.
[36] Uma análise mais fina das escolhas estudantis mostra que, de todos os distritos, Coimbra tem a máxima capacidade de retenção dos seus jovens (83%) e também a máxima capacidade de atração de jovens de outros distritos (ganho líquido de 66%). Estes resultados referem-se ao Concurso Nacional de Acesso de 2011/12 e foram publicados por M. P. Fonseca e S. Encarnação, O sistema de Ensino Superior em Portugal, Mapas e Números, A3ES Readings, nº 4, Lisboa 2012, ISBN  978-989-97174-5-9.
[38] Em Espanha, segundo os últimos números disponibilizados pelo Governo (http://www.mecd.gob.es/dms/mecd/servicios-al-ciudadano-mecd/estadisticas/educacion/no-universitaria/alumnado/FPI/Nota16.pdf), havia 348 000 estudantes inscritos em Formação Profissional Superior , tendo terminado 105 000. Funcionavam em 2 400 locais. Em França, frequentavam STS e DMA 240 000 alunos (http://www.education.gouv.fr/cid57096/reperes-et-references-statistiques.html&xtmc=statistiquesbts&xtnp=1&xtcr=1#Résultats, diplômes, insertion).
[39] Statistics Denmark, http://www.statbank.dk/statbank5a/SelectTable/Omrade0.asp?PLanguage=1
[40] New Ways & High Standards – The committee on quality’s final report proposals for danish higher education, Coppenhagen, 2015, http://ufm.dk/en/education-and-institutions/councils-and-commissions/the-expert-committee-on-quality-in-higher-education-in-denmark/new-ways-high-standards.pdf
[41] The Economist, 01 dez 2012, Higher Education, not what it used to be. American universities represent declining value for Money to their students.
[42] OECD, Education at a Glance, 2015
[44] A idade média de todo o pessoal docente era em 2014 de 47,1 anos nas universidades (com variações entre 44 e 50) e de 45,6 anos nos institutos politécnicos (com variações entre 40 e 46).

[45] Fulfilling our potential: teaching excellence, social mobility and student choice

[46] J. Ginés Mora, La burbuja universitária, El País, 22 de agosto de 2012, visto em julho de 2013 em http://sociedad.elpais.com/sociedad/2012/08/22/actualidad/1345633992_100130.html
[47] FISCAL MONITOR (FM), Acting Now, Acting Together, Advance Copy Chapter 2: Fiscal Policies for Innovation and Growth, April 2016.
http://www.imf.org/external/pubs/ft/fm/2016/01/fmindex.htm
[48] Thomas Piketty, Le Capital au XXIe Siècle, Seil, Paris, 2013
[49] V. Gaspar e R. Mooij , A case against pessimism, IMF Global Economic Forum, publicado em 31mar2016, https://blog-imfdirect.imf.org/2016/03/31/imagine-what-fiscal-policy-could-do-for-innovation/
[50] J. M. Keynes, Economic Possibilities for our Grandchildren, in Essays in Persuasion, New York: W. W. Norton & Co., 1963, pp 358-373.
[51] Vannevar Bush (1890-1974) dirigiu o Office of Scientific Research and Development norte americano durante a 2ª guerra mundial e elaborou, em 1945, o relatório dirigido ao Presidente dos Estados Unidos, Science, The Endeless Frontier e defendeu a criação da National Science Foundation.
[52] G. Becker, Human Capital: A Theoretical and Empirical Analysis, with Special Reference to Education, The University of Chicago Press, 1964
[53] Dados recolhidos da OCDE em abril/2016, https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=MSTI_PUB
[54] Dados recolhidos da DGEEC, Direção Geral de Estatísticas da Educação e Ciência em abril/2016, https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=MSTI_PUB
[55] DGEEC, Direção Geral de Estatísticas e Educação e Ciência. http://www.dgeec.mec.pt/np4/210/ consultada em 22 abril2016
[56] DGEEC, Direção Geral de Estatísticas e Educação e Ciência. http://www.dgeec.mec.pt/np4/210/ consultada em 22 abril2016
[57] SCImago, Journal and Country Rank, em 25 abr16, http://www.scimagojr.com/countrysearch.php?country=ES
[58] Thomson Reuters, Incites em 22 abr 2016, https://incites.thomsonreuters.com/#/explore/0/region//

[60] European Commission, FP7 Monitoring Report 2013, http://ec.europa.eu/research/evaluations/pdf/archive/fp7_monitoring_reports/7th_fp7_monitoring_report.pdf
[61] Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Gabinete de Promoção do Programa Quadro de I&DT. http://www.gppq.fct.pt/h2020/participacao_pt.php
[62] DGEEC, Direção Geral de Estatísticas e Educação e Ciência, http://www.dgeec.mec.pt/np4/210/
[64] Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico - IPCTN2014, Resultados provisórios, DGEEC, Direção Geral de Estatísticas e Educação e Ciência, novembro de 2015
[65] Association of American Universities, 34 universidades públicas e 26 privadas (não lucrativas), http://www.aau.edu/
[66] http://www.hefce.ac.uk/pubs/year/2015/201505/
[67] DGEEC, Direção Geral de Estatísticas e Educação e Ciência, REBIDES 2012
[68] Destes doutorados que se apresentaram a avaliação nas unidades de investigação, 6887 estavam vinculados a universidades públicas, 1084 a politécnicos públicos, 19 a instituições públicas militares ou policiais e 987 a instituições privadas.
[69] DGEEC, Direção Geral de Estatísticas e Educação e Ciência, IPCTN2014, resultados provisórios.
[70] Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Lista das instituições que receberam financiamento projeto estratégico. O número de investigadores EETI refere-se a 31dez2013. http://www.fct.pt/estatisticas/unidades/#fet_vg