Sabe-se que o estatuto de 2009 da carreira docente
do ensino superior politécnico quase o identificou com o universitário. Com
isso, tornamo-nos no único país do mundo onde todos os estudantes do ensino
superior devem ter todas as suas aulas com docentes com mandato de
investigação. Um luxo que os norte-americanos só concedem a menos de 20% dos
estudantes. Os docentes convidados, agora a ser extintos pelo pretenso combate
à precariedade, tinham uma situação dúbia, mas, na prática, estavam isentos
desta obrigação. Quanto aos especialistas criados nessa altura para o ensino
politécnico, não é claro que obrigações terão, se algumas, em contrapartida ao
seu direito à dedicação exclusiva. Neste novo quadro regulamentar, é natural
que esta velha aspiração seja reforçada.
São conhecidas muitas situações desagradáveis de
docentes do ensino politécnico com a efetiva orientação de doutoramentos a quem
as universidades exigem contrapartidas pelo registo dos estudantes. Em geral,
eles são apenas coorientadores, com o orientador responsável na universidade e
nem sempre muito envolvido no projeto de investigação. Mas, sem assento no
Conselho Científico que admite, acompanha, aceita a tese e nomeia o júri do
estudante, não têm mais que aceitar. Não deixa de ser frequente que o
orientador universitário exija que o seu nome apareça em todos os artigos
publicados, mesmo que não tenha participação relevante. É uma situação indigna
que nenhuma comissão deontológica se dignou ainda analisar.
A solução aparece agora acompanhada de um
conveniente anúncio de grande rigor que, diga-se, não preocupou ninguém...
Invocando-se a OCDE como inspiradora desta alteração, vejamos o que é dito na
versão provisória já publicada do relatório. A OCDE viu universidades a ocupar
o espaço natural de institutos politécnicos e sentiu a pressão destes para
reforçarem o seu foco em investigação e obterem o direito e concederem o grau
de doutor. Recomenda por isso que o quadro regulamentar da aprovação de ciclos
de estudos de licenciatura seja revisto no sentido de garantir o seu
alinhamento com a missão das instituições em cada setor. E sugere que os
institutos politécnicos sejam autorizados a conceder o grau de doutor de forma
cuidadosamente controlada (a) em campos de investigação aplicada orientada para
a prática, (b) em instituições que tenham demonstrado claramente a alta
qualidade do ensino, (c) onde haja um forte racional da economia regional, e
(d) onde haja colaboração com centros já existentes de treino doutoral. Tudo isto
se perdeu na urgência de fazer uma grande reforma.
Como norma geral, o Governo propõe-se exigir que
75% do corpo docente do ciclo de estudos de doutoramento esteja em unidades de
investigação com a classificação mínima de Muito Bom. Tipicamente, vamos ter unidades
orgânicas de universidades ou institutos politécnicos que vão ser chamadas a
verificar esta condição de “grande exigência”. Um exemplo ajuda a compreender a
nova situação. Consideremos uma Faculdade ou Escola com 100 docentes que tenha
uns 8 destes docentes em unidades de investigação classificadas de Muito Bom,
podendo ser unidades sediadas na própria instituição ou numa instituição
privada sem fins lucrativos (IPSFL). Conhecem-se muitos casos de unidades de
IPSFL com a classificação de Muito Bom ou melhor e com 300 ou mais doutorados
onde esses 8 docentes podem estar incluídos. A instituição de ensino superior
poderá assim reunir 10 dos seus docentes, incluindo os 8 ativos na unidade
referida, e propor à A3ES um ciclo de estudos de doutoramento. Satisfaz a
condição legal e a Agência terá de verificar que o corpo docente é capaz para
lecionar o curso. Não será difícil se pensarmos que se propõe aceitar
anualmente uns 4 estudantes. Tudo vai correr bem: um grupo pequeno, mas ativo
de docentes vão ter os seus estudantes de doutoramento e doutorá-los ao fim de
3 ou 4 anos. Quem vai fazer a aceitação dos estudantes, verificando que mostram
ter condições de sucesso; quem vai acompanhar os trabalhos ao longo do ciclo de
estudos; quem vai aceitar a tese verificando que ela tem as condições mínimas
para ser submetida a provas públicas; quem vai nomear o júri para esta provas?
Naturalmente, o Conselho Científico da Faculdade universitária ou o Conselho
Técnico-Científico da Escola politécnica que é formado, neste exemplo, a partir
dos 100 docentes onde estão incluídos os 8 demonstradamente ativos (pelo menos
aceites) numa unidade de investigação. E até será muito provável que nenhum
destes 8 tenha assento no Conselho Científico; é possível que nenhum membro do
Conselho Científico pertença a uma unidade de investigação com a classificação
mínima de Muito Bom. Esta é uma caricatura, mas será só caricatura?
Talvez os Conselhos Científicos não estejam a
exercer devidamente as suas funções de escrutínio da qualidade dos programas
académicos e, por isso, ninguém se preocupe muito com estas distorções. Não deveriam
ser simples órgãos de consensualização dos interesses da corporação académica.
São de facto os garantes da qualidade do ensino e devem assumir essa função e responder
por eventuais deficiências ou desvios pontuais. Não é admissível que um grau
académico baseado na investigação seja controlado por membros inativos ou que
não atinjam um nível de desempenho reconhecido. Se encararmos o doutoramento
como um ciclo de estudos onde se valoriza quase exclusivamente a relação entre
um estudante e um orientador (eventualmente coadjuvado por outro coorientador
ou coorientadores), então devemos criar condições para que todos os académicos
qualificados e reconhecidos como ativos possam aceitar estudantes. Mas a
estrutura de coordenação tem de ser um Conselho Científico de especialistas
ativos na área de investigação em causa. Não é o caso, normalmente, do Conselho
Científico da unidade orgânica ou da instituição. É claro que precisamos de uma
alteração regulamentar para identificar o órgão responsável em primeiro nível
pela qualidade do doutoramento, ainda que este possa responder, mas não
depender de níveis hierárquicos superiores até chegar à autoridade académica
máxima, o Reitor (ou Presidente).
A autorização de doutoramentos nos institutos
politécnicos com um modelo de coordenação que replique o universitário irá
reproduzir e agravar as deficiências registadas acima. Os peritos da OCDE
recomendam esta autorização com fortíssimas condicionantes que adiariam a sua
efetividade por um longo período. O Governo parece não ter querido reparar
nesta parte do Relatório e as instituições sabem que, quebrado o tabu, as
fragilidades serão secundarizadas como são hoje em muitos casos no seio das
universidades.
Os peritos da OCDE notam que o número de
doutorados anualmente (por milhão de habitantes) é comparável com o da França,
Áustria e Bélgica, mas inferior ao da Alemanha, Suíça e Reino Unido. Reconhecem
ainda a enorme dificuldade de inserção dos doutorados no tecido económico e
recomendam um melhor alinhamento do financiamento com as prioridades de
investigação e as necessidades de qualificações mais avançadas. Fazem o registo
crítico do desperdício da formação de doutorados em áreas onde não haja procura
para estes graduados. É neste quadro que têm de se entender os fortes
condicionantes para o alargamento da formação de doutorados ao setor
politécnico. Não só pretendem impor uma rigorosa complementaridade entre as
áreas de doutoramento nas universidades e as novas áreas a surgirem agora, como
forçar o alinhamento destes novos programas com as necessidades regionais.
O Governo não foi capaz de passar à regulamentação
qualquer diferenciação entre o objeto e os objetivos do doutoramento universitário
e do politécnico. Ao alargar o conceito de I&D do Manual de Frascati da
OCDE, “incluindo um leque alargado de atividades de investigação derivadas da
curiosidade científica a atividades baseadas na prática e orientadas para o
aperfeiçoamento profissional” está a amalgamar coisas muito diferentes e a desistir
da diferenciação entre universidades e institutos politécnicos que parece ter
pretendido reforçar no passado.
José Ferreira Gomes
Universidade do Porto