segunda-feira, 9 de abril de 2018

Doutoramentos politécnicos


Anuncia-se que a acreditação de doutoramentos vai ser muito mais exigente e que os institutos politécnicos vão poder submeter propostas, o que até agora estava vedado pela Lei de Bases do Sistema Educativo. Lemos na imprensa que o painel de peritos da OCDE veio cá dar a sua bênção a esta inovação. O tema é suficientemente importante para merecer uma melhor avaliação.
Sabe-se que o estatuto de 2009 da carreira docente do ensino superior politécnico quase o identificou com o universitário. Com isso, tornamo-nos no único país do mundo onde todos os estudantes do ensino superior devem ter todas as suas aulas com docentes com mandato de investigação. Um luxo que os norte-americanos só concedem a menos de 20% dos estudantes. Os docentes convidados, agora a ser extintos pelo pretenso combate à precariedade, tinham uma situação dúbia, mas, na prática, estavam isentos desta obrigação. Quanto aos especialistas criados nessa altura para o ensino politécnico, não é claro que obrigações terão, se algumas, em contrapartida ao seu direito à dedicação exclusiva. Neste novo quadro regulamentar, é natural que esta velha aspiração seja reforçada.
São conhecidas muitas situações desagradáveis de docentes do ensino politécnico com a efetiva orientação de doutoramentos a quem as universidades exigem contrapartidas pelo registo dos estudantes. Em geral, eles são apenas coorientadores, com o orientador responsável na universidade e nem sempre muito envolvido no projeto de investigação. Mas, sem assento no Conselho Científico que admite, acompanha, aceita a tese e nomeia o júri do estudante, não têm mais que aceitar. Não deixa de ser frequente que o orientador universitário exija que o seu nome apareça em todos os artigos publicados, mesmo que não tenha participação relevante. É uma situação indigna que nenhuma comissão deontológica se dignou ainda analisar.
A solução aparece agora acompanhada de um conveniente anúncio de grande rigor que, diga-se, não preocupou ninguém... Invocando-se a OCDE como inspiradora desta alteração, vejamos o que é dito na versão provisória já publicada do relatório. A OCDE viu universidades a ocupar o espaço natural de institutos politécnicos e sentiu a pressão destes para reforçarem o seu foco em investigação e obterem o direito e concederem o grau de doutor. Recomenda por isso que o quadro regulamentar da aprovação de ciclos de estudos de licenciatura seja revisto no sentido de garantir o seu alinhamento com a missão das instituições em cada setor. E sugere que os institutos politécnicos sejam autorizados a conceder o grau de doutor de forma cuidadosamente controlada (a) em campos de investigação aplicada orientada para a prática, (b) em instituições que tenham demonstrado claramente a alta qualidade do ensino, (c) onde haja um forte racional da economia regional, e (d) onde haja colaboração com centros já existentes de treino doutoral. Tudo isto se perdeu na urgência de fazer uma grande reforma.
Como norma geral, o Governo propõe-se exigir que 75% do corpo docente do ciclo de estudos de doutoramento esteja em unidades de investigação com a classificação mínima de Muito Bom. Tipicamente, vamos ter unidades orgânicas de universidades ou institutos politécnicos que vão ser chamadas a verificar esta condição de “grande exigência”. Um exemplo ajuda a compreender a nova situação. Consideremos uma Faculdade ou Escola com 100 docentes que tenha uns 8 destes docentes em unidades de investigação classificadas de Muito Bom, podendo ser unidades sediadas na própria instituição ou numa instituição privada sem fins lucrativos (IPSFL). Conhecem-se muitos casos de unidades de IPSFL com a classificação de Muito Bom ou melhor e com 300 ou mais doutorados onde esses 8 docentes podem estar incluídos. A instituição de ensino superior poderá assim reunir 10 dos seus docentes, incluindo os 8 ativos na unidade referida, e propor à A3ES um ciclo de estudos de doutoramento. Satisfaz a condição legal e a Agência terá de verificar que o corpo docente é capaz para lecionar o curso. Não será difícil se pensarmos que se propõe aceitar anualmente uns 4 estudantes. Tudo vai correr bem: um grupo pequeno, mas ativo de docentes vão ter os seus estudantes de doutoramento e doutorá-los ao fim de 3 ou 4 anos. Quem vai fazer a aceitação dos estudantes, verificando que mostram ter condições de sucesso; quem vai acompanhar os trabalhos ao longo do ciclo de estudos; quem vai aceitar a tese verificando que ela tem as condições mínimas para ser submetida a provas públicas; quem vai nomear o júri para esta provas? Naturalmente, o Conselho Científico da Faculdade universitária ou o Conselho Técnico-Científico da Escola politécnica que é formado, neste exemplo, a partir dos 100 docentes onde estão incluídos os 8 demonstradamente ativos (pelo menos aceites) numa unidade de investigação. E até será muito provável que nenhum destes 8 tenha assento no Conselho Científico; é possível que nenhum membro do Conselho Científico pertença a uma unidade de investigação com a classificação mínima de Muito Bom. Esta é uma caricatura, mas será só caricatura?
Talvez os Conselhos Científicos não estejam a exercer devidamente as suas funções de escrutínio da qualidade dos programas académicos e, por isso, ninguém se preocupe muito com estas distorções. Não deveriam ser simples órgãos de consensualização dos interesses da corporação académica. São de facto os garantes da qualidade do ensino e devem assumir essa função e responder por eventuais deficiências ou desvios pontuais. Não é admissível que um grau académico baseado na investigação seja controlado por membros inativos ou que não atinjam um nível de desempenho reconhecido. Se encararmos o doutoramento como um ciclo de estudos onde se valoriza quase exclusivamente a relação entre um estudante e um orientador (eventualmente coadjuvado por outro coorientador ou coorientadores), então devemos criar condições para que todos os académicos qualificados e reconhecidos como ativos possam aceitar estudantes. Mas a estrutura de coordenação tem de ser um Conselho Científico de especialistas ativos na área de investigação em causa. Não é o caso, normalmente, do Conselho Científico da unidade orgânica ou da instituição. É claro que precisamos de uma alteração regulamentar para identificar o órgão responsável em primeiro nível pela qualidade do doutoramento, ainda que este possa responder, mas não depender de níveis hierárquicos superiores até chegar à autoridade académica máxima, o Reitor (ou Presidente).
A autorização de doutoramentos nos institutos politécnicos com um modelo de coordenação que replique o universitário irá reproduzir e agravar as deficiências registadas acima. Os peritos da OCDE recomendam esta autorização com fortíssimas condicionantes que adiariam a sua efetividade por um longo período. O Governo parece não ter querido reparar nesta parte do Relatório e as instituições sabem que, quebrado o tabu, as fragilidades serão secundarizadas como são hoje em muitos casos no seio das universidades.
Os peritos da OCDE notam que o número de doutorados anualmente (por milhão de habitantes) é comparável com o da França, Áustria e Bélgica, mas inferior ao da Alemanha, Suíça e Reino Unido. Reconhecem ainda a enorme dificuldade de inserção dos doutorados no tecido económico e recomendam um melhor alinhamento do financiamento com as prioridades de investigação e as necessidades de qualificações mais avançadas. Fazem o registo crítico do desperdício da formação de doutorados em áreas onde não haja procura para estes graduados. É neste quadro que têm de se entender os fortes condicionantes para o alargamento da formação de doutorados ao setor politécnico. Não só pretendem impor uma rigorosa complementaridade entre as áreas de doutoramento nas universidades e as novas áreas a surgirem agora, como forçar o alinhamento destes novos programas com as necessidades regionais.
O Governo não foi capaz de passar à regulamentação qualquer diferenciação entre o objeto e os objetivos do doutoramento universitário e do politécnico. Ao alargar o conceito de I&D do Manual de Frascati da OCDE, “incluindo um leque alargado de atividades de investigação derivadas da curiosidade científica a atividades baseadas na prática e orientadas para o aperfeiçoamento profissional” está a amalgamar coisas muito diferentes e a desistir da diferenciação entre universidades e institutos politécnicos que parece ter pretendido reforçar no passado.
José Ferreira Gomes
Universidade do Porto

domingo, 1 de abril de 2018

O fim dos mestrados integrados



Anuncia-se o fim dos mestrados integrados na maioria dos cursos, com particular impacto nas engenharias. Tendo a criação da figura de mestrado integrado sido uma especificidade portuguesa na paisagem europeia pós processo de Bolonha, seria de festejar esta normalização. Contudo, a forma como são simplesmente extintos, vai provocar reverberações no sistema de ensino superior, atenuando ainda mais a diferenciação entre o universitário e o politécnico e esvaziando os mestrados dos politécnicos e das universidades mais pequenas (do interior) em benefício das grandes universidades da corda do Minho a Lisboa.
A proposta de revisão da legislação de graus e diplomas diz seguir as recomendações da OCDE e visar (a) reforçar a capacidade de I&D+i, (b) estimular a diversificação do sistema de ensino superior, (c) reforçar as condições de emprego científico e (d) continuar a estimular a internacionalização. Talvez por a proposta estar datada de 9 dias depois da versão preliminar do relatório da OCDE, não foram consideradas sugestões importantes do painel de peritos internacionais. Mais grave é a distância entre os objetivos e as medidas propostas.
A recomendação mais veemente e recorrente no relatório da OCDE é o reforço da diversificação do nosso ensino superior. Tendo nós já uma maior percentagem da coorte a completar a via dita “regular” do ensino secundário (que encaminha os jovens para o ensino superior) do que a Inglaterra, o crescimento e diversidade dos estudantes está garantida. O problema detetado é a nossa tendência para uma via única e mais tradicional de ensino superior. Para reorientar um sistema complexo de instituições autónomas, mais do que normas rígidas são necessários estímulos que guiem o sistema no sentido de servir melhor os estudantes e contribuir para o necessário ganho de competitividade do país.
A OCDE viu universidades a ocupar o espaço natural de institutos politécnicos e sentiu a pressão destes para reforçarem o seu foco em investigação e obterem o direito e concederem o grau de doutor. Recomenda por isso que o quadro regulamentar da aprovação de ciclos de estudos de licenciatura seja revisto no sentido de garantir o seu alinhamento com a missão das instituições em cada setor. E sugere que os institutos politécnicos sejam autorizados a conceder o grau de doutor de forma cuidadosamente controlada (a) em campos de investigação aplicada orientada para a prática, (b) em instituições que tenham demonstrado claramente a alta qualidade do ensino, (c) onde haja um forte racional da economia regional, e (d) onde haja colaboração com centros já existentes de treino doutoral. Quase tudo se perdeu na urgência de fazer uma grande reforma.
Para garantir a diversidade e a excelência de cada tipo de ensino superior, é crucial que a entrada se faça com grande clareza de objetivos. Cursos de TeSP (Técnico Superior Profissional), cursos de Licenciatura politécnica e cursos de Licenciatura universitária devem ter orientação e objetivos diferentes e esta realidade deve ser bem compreendida pelos estudantes, pelas famílias e pelos empregadores. Já é possível atualmente perceber algumas diferenças na retórica regulamentar mas tudo se perde quando chegamos ao terreno. Temos estudantes a entrar em cursos TeSP só para chegarem a uma licenciatura sem terem a formação básica exigida; temos licenciaturas em universidades que até a OCDE reconheceu deverem passar para o setor politécnico; temos licenciados pelos institutos politécnicos a seguirem em grupo para mestrado universitário. Seria preciso tornar mais claro para todos os interessados que a entrada no mercado de trabalho para um TeSP representa uma formação de 3 semestres em sala de aula (seguida de um semestre de estágio em posto de trabalho), portanto uma componente educativa geral muito curta seguida de uma formação profissional a desembocar no estágio. A licenciatura politécnica ainda que de cariz profissionalizante, implica um período de 6 semestres em sala de aula (que pode já incluir um estágio). A componente de educação mais geral é mais longa e, necessariamente, mais sólida. Esperar-se-ia que todos os licenciados pelos institutos politécnicos entrassem de imediato num posto de trabalho e só depois eventualmente procurassem uma especialização em mestrado politécnico. A opção por um percurso universitário significa a decisão de, previsivelmente, a entrada na vida ativa ser atrasada de 2 anos mais. Em geral a licenciatura universitária não tem uma preocupação direta com a formação para um posto de trabalho, sendo essa preocupação diferida para o mestrado universitário subsequente. O estudante que opta por uma licenciatura universitária (ou por um mestrado integrado) está a tomar a decisão de iniciar a vida ativa 10 (ou mais) semestres depois. Os períodos educativos em sala de aula de 3, 6 e 10 semestres marcam bem as intenções diferentes destas opções que o jovem tem de fazer à entrada no ensino superior. Mas se esta visão é pouco clara hoje, ela será ainda menos percetível no quadro legal agora proposto. O fim da maioria dos mestrados integrados terá o efeito de destruir a noção de que há dois percursos diferentes e de duração diferente nas engenharias, por exemplo. Mas voltarei a este problema mais abaixo.
Depois de uma definição muito genérica da licenciatura, a regulamentação atual apenas especifica que, no ensino politécnico, se deve valorizar especialmente a formação que visa uma atividade de caráter profissional. A omissão desta orientação para a licenciatura universitária terá de significar a ausência desta preocupação. Portanto a licenciatura universitária é uma espécie de “estudo geral” numa área ampla de conhecimento. O estudante que pretenda, como normalmente acontece, sair com algum tipo de habilitação mais diretamente aplicável no mercado de trabalho terá de procurar um ciclo de estudos adicional, normalmente um mestrado. E será provavelmente um mestrado universitário porque lhe falta a formação profissionalizante que carateriza os licenciados politécnicos que seguem ali para mestrado de especialização. Nada é alterado nesta descrição das licenciaturas na proposta agora em discussão.
Quanto à descrição do mestrado, a nova regulamentação procura ser mais específica estabelecendo que no ensino universitário o mestre deve ter adquirido uma especialização de natureza académica com recurso à atividade de investigação, de inovação ou de aprofundamento de competências profissionais. No ensino politécnico, o mestre deve ter adquirido uma especialização de natureza profissional com recurso à atividade de investigação baseada na prática. Que ninguém saiba bem o que é esta “investigação baseada na prática” e que não existam hábitos e normas consensuais na comunidade académica explica talvez porque ninguém se preocupou com estes detalhes. Vão ser esquecidos por não serem descodificados pelo leitor, seja ele o docente da instituição que vai desenhar um curso, seja a A3ES que o vai acreditar ou os peritos que esta vai convidar para os seus painéis.
As grandes escolas de engenharia têm procurado afirmar a intenção propedêutica do primeiro ciclo (licenciatura) mantendo um reforço das áreas disciplinares básicas de suporte ao desenvolvimento da área específica em causa. O enorme sucesso em anos recentes de duplas titulações em Física e Matemática (em Espanha) ou da Engenharia Física (em Portugal) apontam para o reconhecimento crescente do valor dos conhecimentos científicos básicos, desde que abordados numa perspetiva de resolução de problemas. O sucesso dos antigos licenciados em engenharia para trabalhar em áreas muito diversas e frequentemente distantes do objetivo nominal do curso era um sinal deste valor de uma forte educação básica com grande ambição na matemática, na física e noutras disciplinas de ciência fundamental. Apesar desta realidade que apenas marca a maturidade do nosso sistema de ensino superior e a crescente sofisticação do nosso mercado de trabalho, não deixam de existir fatores de competição pela atenção dos candidatos ao acesso que levam as instituições a uma criatividade quase sem limites na denominação dos cursos que lhes apresentam.
Uma licenciatura em “estudos gerais” ou em “ciências da engenharia” não é coisa muito apelativa para jovens e, especialmente, para as famílias preocupadas na preparação de um bom futuro para os seus. Por esta razão, são já poucas as licenciaturas universitárias cuja designação sugere uma formação base sólida. A alternativa de parecer dar em 3 anos uma formação de engenheiro universitário (de 5 anos) é muito atrativa e foi adotada por quase todos. Só os mestrados integrados escapavam a esta operação de marketing e, mantendo o seu primeiro ciclo intacto na solidez da educação científica básica, arrastavam a organização curricular e a exigência das outras licenciaturas com designações mais “comerciais”. Tudo isto se perderá e, lentamente, a organização curricular das licenciaturas universitárias tenderá para se ajustar à designação profissionalizante que vão adotar para satisfazer o apetite dos candidatos.
Mas, será este o objetivo desta reforma cirúrgica? Terá o legislador a intenção de, discretamente, encurtar os percursos universitários de 5 para 3 anos? Escaparão apenas os cursos que conduzem a profissões protegidas por diretivas europeias! Estaremos a cumprir o objetivo “economicista” de que a Reforma de Bolonha foi tão acusada anos atrás? Acabarão os estudantes por pagar propinas livres nos novos mestrados que ficam isentos do limite legal de cerca de mil euros? Terá o legislador a intenção de suavemente acabar com os cursos universitários, encaminhando todos os estudantes para cursos de licenciatura profissionalizante de 3 anos?
Não creio que seja o caminho mais recomendável e seguramente não é esta a recomendação dos peritos da OCDE. Quando temos já perto de 50% dos nossos jovens a chegar ao ensino superior, teremos toda a vantagem em convidar a maioria dos candidatos a ingressar num percurso com profissionalização mais rápida, de 3 ou 6 semestres, mas não devemos extinguir ou deixar o mercado abandonar os percursos universitários mais longos e exigentes. Convidemos os institutos politécnicos a ser claros na organização de cursos de TeSP e de Licenciatura que facilitem uma entrada imediata no mercado de trabalho a um nível apropriado. Criemos condições para que os intelectualmente mais ambiciosos possam prosseguir um percurso mais exigente, cientificamente mais profundo e mais longo. Vamos garantir que, com toda a transparência, estudantes e famílias compreendam os diferentes objetivos de uma licenciatura universitária e de uma licenciatura politécnica.
Hoje, o número de graus académicos de mestre concedidos anualmente é cerca de metade do número de graus de licenciado. Isto significa que mais de metade dos estudantes entram na vida ativa ao fim da licenciatura, alguns regressando mais tarde para o mestrado. Em comparação internacional, poderá ser desejável que ainda mais licenciados entrem na vida ativa antes de regressar aos bancos da escola para uma especialização, atualização ou reorientação profissional, mas isto pode ser conseguido sem destruir a solidez da educação inicial universitária.

José Ferreira Gomes
Universidade do Porto;
ex-secretário de Estado do Ensino Superior no XIX e XX governos
In: Observador, 1 de abril de 2018 

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