O acesso ao ensino superior dos diplomados do ensino secundário
pela via profissional é seguramente um ponto cuja discussão merece ir mais
longe. Mas o tratamento dado no relatório é surpreendentemente simplista e pode
induzir o leitor em erros graves. O alinhamento do Concurso Nacional de Acesso com
a via científico-humanística do secundário é total, mas situações similares
existem na maioria dos países europeus, ainda que por mecanismos diversos. A
afirmação de que, noutros países, muitos alunos oriundos das vias vocacionais
acedem ao ensino superior, 50% na Holanda, 59% na França e 75% na Koreia é
falaciosa porque não se explica a que tipo de ensino superior acedem esses
alunos e que lhes acontece depois. Na Holanda, o alinhamento entre o secundário
e o superior é maior que o nosso com os candidatos do percurso vocacional a
seguirem para o politécnico (HBO). Existem cursos especiais para a transição
daqui para o universitário, mas a barreira é difícil de transpor. Na França, o
acesso a muitos cursos universitários é livre, mas o insucesso nos primeiros
anos de licenciatura é muito alto, muito mais alto que em Portugal. A continuação
normal para os candidatos oriundos da via profissional são os ciclos curtos
(BTS e DUT), cursos com excelente reputação e alta empregabilidade. A comparação
com a Coreia é mais surpreendente pelas diferenças culturais e dos sistemas
educativos, mas, também ali, a componente de ciclos curtos é muito importante e
é a própria OCDE no seu último relatório sobre a Educação Superior Coreana que
discute The
Rhetoric of Under-education and the Reality of Over-education e as falácias dos argumentos que
levaram aos problemas graves de desacerto entre as qualificações e a realidade
do mercado de trabalho.
Sim, Portugal atrasou-se muito na universalização do secundário e
os dados mais recentes apontam para uma perda de energia na redução do
insucesso e abandono, isto depois da extinção da bem-sucedida experiência com o
ensino vocacional. Atrasou-se na institucionalização dos ciclos curtos e
precisa de os apoiar para que encontrem o seu espaço no imaginário estudantil e
no mercado de trabalho, em analogia com os nossos parceiros europeus mais
diretos. Temos hoje um ensino superior com mais de 40% dos jovens (de 20 anos)
em licenciaturas e facilmente chegará a 10% adicionais em TeSP. O desempenho do
secundário tradicional está a melhorar com mais candidatos a chegarem a
licenciatura via Concurso Nacional de Acesso. A exemplo de outros países, é
necessário preparar a transferência de estudantes entre as várias vias. Em
particular, é necessário que alguns alunos da via profissional do secundário
possam ter o reforço mais académico que lhes falta em absoluto e que necessitam
para terem sucesso numa licenciatura. Esta é uma obrigação da escola, que muito
poucas assumem hoje empurrando os seus alunos para “explicações”.
De acordo com os media, a outra grande proposta deste exame pela OCDE
é a concessão de doutoramentos pelos institutos politécnicos. Convém lembrar a recomendação na sua forma original, to permit the
carefully controlled award of doctoral degrees by polytechnics. This should be
permitted in (a) practice-oriented applied research fields where (b)
institutions have a clearly demonstrated capacity to support high quality
instruction, where (c) there is a strong regional economic rationale for the
offer of doctoral awards, and (d) there is collaboration with existing centres
of PhD training. Os institutos politécnicos
portugueses têm trilhado um percurso de consolidação que seguramente aponta para
a sua futura capacidade para a concessão do grau de doutor. Esta inovação deve
corresponder a um aprofundamento da sua missão e não para uma aproximação da
missão universitária. A necessidade de clarificação e respeito por estas
diferentes missões é aliás uma das preocupações recorrentes no relatório. Tal
como as licenciaturas e mestrados do subsistema universitário e do subsistema
politécnico têm de ser diferentes nos seus conteúdos e objetivos também os
novos doutoramentos politécnicos deverão vir a ser diferentes. Como o Relatório
reconhece, Portugal não tem poucos doutoramentos. O que precisa é de doutorados
mais próximos da sua realidade económica e social. Para que venham a ser
respeitados na sociedade, dando um contributo reconhecido para o seu desenvolvimento,
criando valor para essa sociedade, é crucial que sejamos ainda mais exigentes
com estes novos doutorados, com o perfil de formação e com a capacitação para
resolver problemas e inovar. Na avaliação das unidades de investigação FCT em
curso perde-se uma oportunidade de marcar este novo território. Missões
diferentes exigem critérios diferentes e painéis de avaliação diferentes que
desenvolvam noções diferentes de excelência. Ao propor uma avaliação única
vamos de facto propor critérios únicos e incentivar ainda mais a deriva académica
de todo o sistema. É importante ter programas de financiamento de projetos
separados, mas não chega. A promessa de financiamento convoca narrativas de
objetivos ajustados aos olhos de quem vai financiar, mas isso é pouco. É necessário
criar uma nova cultura de qualidade focada nos novos objetivos e a avaliação
das pessoas e das instituições é o momento definidor por excelência. Temos os
meios humanos, temos os equipamentos, temos alguns bons investigadores, mas
apontamos a todos a investigação universitária como meta única de excelência.
Nestas condições, quem acredita que iremos ter doutoramentos diferentes, mais
ajustados às necessidades do país?
Este relatório é um instrumento político. Os governos recorrem
normalmente a “avaliações internacionais” quando querem ver reforçada uma
agenda que encontra oposição interna. As encomendas à OCDE não deixam de cumprir
esta função, embora nem sempre seja claro o objetivo inicial. O relatório agora
divulgado merece uma leitura cuidada porque dá uma visão externa do nosso
sistema de educação superior e de investigação e inovação. Se o recomendado
aumento de despesa pública com a educação superior e a investigação vai
certamente agradar ao MCTES, não é óbvio que seja suficiente para lhe dar a
força que tem faltado neste período de exclusão do seu ministério da política
expansionista do governo. O registo de que a despesa pública com todo o setor
terá recomeçado a crescer é curioso por aparecer quando o CRUP e o CCISP
registam o incumprimento de um acordo com o governo que apenas prometia manter
as dotações de 2016. A fortíssima recomendação de que seja criado um sistema de
financiamento por objetivos é uma imposição da lei de financiamento de 2003 que
este governo não quis cumprir apesar de haver uma proposta já acordada com o
CRUP e o CCISP que mostrava a viabilidade de convergência de todas as instituições
com um período de transição de apenas 5 anos.
José Ferreira Gomes
Professor da Universidade do Porto;
ex-secretário de Estado do Ensino Superior no XIX e XX governos
In: Jornal Público, 20 de fevereiro de 2018
Professor da Universidade do Porto;
ex-secretário de Estado do Ensino Superior no XIX e XX governos
In: Jornal Público, 20 de fevereiro de 2018