domingo, 30 de outubro de 2022

Como avaliar a educação

O recente estudo apresentado pela Fundação Belmiro de Azevedo sobre Impacto do Professor nas Aprendizagens do Aluno[1] impressionou muitos comentadores, pela conclusão de que As características dos professores disponíveis nas bases administrativas, como a antiguidade, posição na carreira, formação e tipo de contrato, não estão correlacionadas de forma sistemática com os valores acrescentados dos professores. Isto sugere que, se as colocações e as progressões na carreira fossem feitas por um sistema aleatório, uma simples roleta, os alunos não seriam em nada afetados. Vemos que o modelo de gestão dos docentes ignora o seu impacto no progresso dos seus alunos. Outra leitura é que todo o edifício de gestão do corpo docente da escola estatal terá sido desenhado para servir os professores (e os seus sindicatos), ignorando os alunos. E, contudo, este estudo demonstra como outros mecanismos de seleção dos professores poderiam ter um enorme efeito no sucesso dos alunos, especialmente dos socialmente mais frágeis.
Compreensivelmente, não se ouviu qualquer comentário do lado do Ministério da Educação. Poucas semanas depois anuncia-se[2] uma mudança na colocação dos professores que parece apenas focada na “vida dos professores”, sem uma palavra sobre o seu impacto na vida dos alunos. O processo de colocação continua centralizado em Lisboa e dependente das “caraterísticas dos professores disponíveis nas bases administrativas” que já se sabe não estarem correlacionadas com o impacto dos professores sobre a aprendizagem dos alunos. O futuro dos alunos continua ausente destas decisões.
Nos últimos 20 anos, os sistemas educativos foram criando sistemas formais de controlo e de avaliação da qualidade, com o objetivo de normalização ou de uniformização, para que todos os professores e todas as escolas adotem os mesmos procedimentos conforme uma norma explicita ou implicitamente definida pelo avaliador. Do ensino básico ao superior, copiam-se métodos criados para assegurar que um produto industrial está conforme determinadas especificações e, por isso, deve merecer a confiança do consumidor. Ao contrário do consumidor de um produto industrial cujo uso é, em geral, limitado no tempo, a educação de um jovem vai moldar a personalidade e desenvolver capacidades que o acompanharão por toda a vida. Nem ele nem a sua família sabem avaliar a curto prazo o sucesso do processo educativo. Ao contrário de um produto industrial, não pode ser substituído se falhar. O percurso educativo é único e irrepetível para cada pessoa.
Para o ensino básico e secundário, os estudos de comparação internacional[3] são os mais relevantes e foram progressivamente ganho aceitação entre nós. A Avaliação Externa das escolas é da responsabilidade da Inspeção-Geral da Educação e Ciência desde 2006. Tem uma função importante de acompanhar os procedimentos, mas não considera a aprendizagem dos alunos nem o seu sucesso futuro no percurso educativo ou no emprego. Os chamados rankings das escolas começaram a ser publicados há 20 anos depois de uma disputa entre a imprensa e o ministério pelo acesso aos resultados dos exames. A comparabilidade depende de haver provas bem calibradas e outros dados socioeconómicos. A extinção dos exames de fim de ciclo em 2016 quebra uma já longa série e dificulta as comparações. A falta de dados socioeconómicos dos alunos das escolas privadas também impossibilita uma verdadeira comparação destas escolas, impossibilitando a desconvolução do resultado final em função da condição socioeconómica das famílias. E também inviabiliza a extensão do trabalho sobre o valor acrescentado do professor sobre o desempenho dos alunos.
Também no ensino superior pesam todas as limitações dos sistemas de qualidade, de avaliação e de acreditação. As tentativas de avaliar as aprendizagens têm sido fortemente repelidas pelas instituições com o argumento de que iriam induzir uma indesejável normalização dos currículos[4] . Os sistemas mais fortemente desregulados sentem maior necessidade de encarar o problema. É o caso das instituições “for profit” norte-americanas que usam o sistema federal de bolsas de estudos (Pell grants) para se financiarem. E alguns países da América Latina de que um bom exemplo é o famoso “provão”[5] brasileiro, ou ENADE[6] , Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes, feito por amostragem dos estudantes do primeiro e último ano do curso, que já sobreviveu a muita contestação política (e mesmo a promessas eleitorais de extinção) com quatro presidentes do Governo Federal.
Na Europa, mantém-se a norma da avaliação de procedimentos, que parece ser suficiente por a desregulação ser, em geral, muito parcial e relativamente recente. Em Portugal (e, também, pouco depois, em Espanha), a autonomia das universidades foi assumida na constituição de 1976 e regulamentada por lei de 1988. Efetivamente, a desregulação nasce da convulsão social (vulgo PREC) subsequente à revolução de 1974 e mantém-se até hoje a permanente tensão entre as instituições e os governos. Nos outros países da Europa ocidental, o ensino superior continua maioritariamente estatal, embora tenham sido criados mecanismos para afastar a gestão corrente da tutela imediata dos governos. Merece especial menção a criação de “conselhos gerais” na Dinamarca e na Áustria em 2004 e em Portugal em 2007. Aqueles maioritariamente externos à universidade, este controlado pelos eleitos internos. Na Holanda, a experiência com a autogestão durou 12 anos, optando-se na década de 1980 por um sistema híbrido de Reitor académico de eleição interna e Presidente de nomeação externa.
Também as nossas escolas precisam de maior liberdade para gerir o seu pessoal e o seu plano de ação, para serem depois avaliadas pelos resultados. Os passos dados neste sentido têm sido tímidos por duas ordens de razões. De um lado há o receio dos professores de que uma tutela mais próxima lhes venha a restringir a liberdade e os direitos laborais. Acresce o receio de que a devolução da gestão de Lisboa para as escolas reduza muito o poder sindical e do partido que o controla. Por outro lado, há o receio nunca expresso de que a devolução da tutela e do poder de contratação aos eleitos municipais venha a partidarizar a gestão escolar e a fragilizar ainda mais a aprendizagem dos alunos. Este problema seria evitado pela criação de estruturas intermédias leves que distanciem o poder partidário da vida quotidiana da escola. Mas a tradição portuguesa é muito frágil nesta área como é demonstrado pelo processo de criação dos agrupamentos de escolas em que os conselhos gerais anteriores foram extintos sem uma simples notificação e os protestos não chegaram ao espaço público.
Nos próximos anos, vai-se dar uma grande renovação do pessoal docente por reforma da geração que acompanhou a expansão do ensino obrigatório para o nono e, depois, para o décimo segundo ano. Seria uma excelente oportunidade para melhorar a formação e a seleção dos novos professores. Se depois soubermos melhorar a gestão do sistema escolar e de cada escola, teremos condições para dar um enorme passo na melhoria dos resultados do nosso sistema educativo.
 José Ferreira Gomes
Reitor da Universidade da Maia
In: O Economista2021, p. 104-106,

[1] O Impacto do Professor nas Aprendizagens do Aluno: Estimativas para Portugal, Ana Balcão Reis, Carmo Seabra, Luís Catela Nunes, Pedro Carneiro** Pedro Freitas, Rodrigo Ferreira, EDULOG, Junho de 2021, https://www.edulog.pt/storage/app/uploads/public/60d/5a3/31d/60d5a331d8bf4706882738.pdf
[2] “Governo quer permitir acesso dos professores ao quadro de escola logo no início da carreira”, Jornal Público, 2 de julho de 2021
[3] https://www.iniciativaeducacao.org/pt/ed-on/ed-on-estatisticas/avaliacoes-internacionais
[4] https://www.oecd.org/education/skills-beyond-school/AHELOFSReportVolume1.pdf
[5] https://www.educabrasil.com.br/provao-exame-nacional-de-cursos/
[6] https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/enade

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