quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Educação: Agenda para a legislatura


Se a legislatura anterior assumiu as reversões como grande objetivo estratégico, a legislatura que agora se inicia não poderá deixar de assumir a reversão de algumas reversões, tais foram os dislates da anterior. E poderá fazê-lo de forma mais discreta para não chocar os mais fiéis do credo vigente; os portugueses não deixarão de apreciar o grande mérito de quem retome um percurso antigo de consolidação da educação e formação e da ciência.
Na educação tivemos um ministro (felizmente) sempre ausente, mas sobrou o excesso de energia dos secretários de estado. A educação precisa de uma gestão serena que evite as grandes revoluções destrutivas, porque a reconstrução é sempre mais lenta e difícil. Uma enorme comunidade de escolas, professores e alunos não se gere com guinadas bruscas, mas com pequenos toques que a levem a melhores resultados a prazo. A aprendizagem decorre do trabalho na sala de aula e não precisamos de mais estado e de um estado mais intrusivo na vida da sala de aula. Fala-se em autonomia das escolas, mas criam-se mais regulamentos nacionais, transformando os diretores e os professores em burocratas que podem dispensar o conhecimento das suas disciplinas, mas têm de se dedicar diariamente à exegese dos ditames emanados de Lisboa.
Uma enorme contradição da legislatura anterior foi o combate frontal ao ensino privado com a pretensa autonomização das escolas estatais. Será só a propriedade privada que se combate ou será a sua autonomia pedagógica que se enfrenta? Diversos estudos mostraram que o financiamento estatal do ensino em escolas privadas (contratos de associação) era vantajoso economicamente, mesmo comparando apenas os custos de funcionamento e esquecendo o investimento. Ninguém pôs em dúvida a qualidade do ensino. O problema da segregação social das escolas privadas (sem financiamento estatal) também não existe no caso dos contratos de associação. Acessoriamente, foi usado o argumento de que “já não seria necessário”, porque o estado tinha contruído escolas novas ou ampliadas na vizinhança, num claro desperdício de dinheiro público; ou que haveria professores excedentários, o que veio a verificar-se não ser verdade para as áreas disciplinares relevante. Resta o argumento da força do estado enquanto soberano e no uso da sua posição dominante no mercado.
A opinião dos portugueses é bem expressa pelos resultados: temos um ensino privado em crescimento sustentado ao longo de muitos anos, temos lutadores do ensino estatal com os filhos em escolas privadas (sempre pelas melhores das razões imagináveis). Comparando com os países mais próximos, temos uma maior estatização. A Inglaterra e alguns estados norte-americanos concluíram que as escolas do estado seriam melhor geridas por entidades privadas (em geral, não lucrativas) e fazem a sua conversão progressiva no sentido de disporem de uma rede de serviço público educativo com gestão privada e financiamento estatal. Os mecanismos de controlo da qualidade em todos os seus aspetos são aí fortíssimos e mais livres de intervir do que quando o controlador era também o regulador e o proprietário. Em Portugal, faz-se o caminho inverso, mesmo sem justificação pela eficácia nem pela eficiência. Os resultados não vão ser melhores nem mais baratos.
No processo de ensino, a grande bandeira foi a flexibilidade curricular com que, em teoria, todos têm de estar de acordo. Todos menos quase todos os professores porque estes conhecem melhor as implicações imediatas e mediatas desses slogans benfazejos. Faria sentido que uma política estatizante desse maior autonomia curricular às escolas e aos professores? Poderia uma maior autonomia curricular acompanhada de uma baixa da avaliação externa dos alunos conduzir a melhores aprendizagens? Já temos a experiência nos cursos profissionais (do ensino secundário) onde a liberdade efetiva é quase total e a avaliação externa dos alunos nunca existiu. Há certamente excelentes escolas e excelentes resultados, mas ninguém sabe o que acontece na grande maioria e ninguém se preocupa. Será que os alunos das vias profissionais estão a ter o melhor encaminhamento para uma vida adulta plenamente realizada? Não mereceriam maior atenção? Não mereceriam que os políticos, que conhecem ao pormenor a via “regular” e a discutem acaloradamente, também lhes dessem uns minutos de atenção? Igualmente importante seria compreender o que acontece aos alunos que não chegam a completar uma qualquer via do ensino secundário, mas, também aqui, não parece ser problema que mereça grande atenção de governantes e de parlamentares.
Com a generalização do ensino obrigatório até aos 18 anos, deixamos de ter o aprendiz informal que era a opção de muitos que não encontravam um ambiente acolhedor na escola. Aos 18 anos, é demasiado tarde para iniciar o percurso de aprendiz. Nem o jovem aceitará facilmente tal condição nesta idade, nem as empresas (na generalidade) estão hoje disponíveis para admitir aprendizes sem qualquer experiência de trabalho. O percurso alternativo é uma vida de marginalidade. Se não tivermos muita atenção à relação de todos os jovens com a escola, poderemos estar a excluir demasiados jovens de um percurso que leve à sua realização individual e a criar problemas sociais graves. Estarão as nossas escolas a oferecer a panóplia de perfis profissionais de que a sociedade precisa? Não são conhecidos e, muito menos, discutidos estudos do que deverá ser esta oferta formativa, mas os eventuais erros terão um custo elevado e efeitos a curto e a longo prazo.
A extinção dos exames de fim de ciclo deixa as escolas, os professores e os alunos no desconhecimento do seu desempenho escolar. A medida política foi desenhada com esse fim. Foi também alimentada a campanha para acabar com o exame final do secundário “regular” (porque as outras vias já não têm nenhum instrumento de comparação nacional das aprendizagens). As justificações apresentadas são pura falácia, seja pelo impacto psicológico sobre os alunos, seja pelo risco de reprovação. A melhoria do sucesso escolar deve ser tratada com outros instrumentos, desde a melhoria do ensino e do apoio aos alunos em risco, até à formação dos professores para lidarem com turmas mais heterogéneas. O que não devemos é ignorar que os alunos não são todos iguais e que têm também objetivos diferentes (que vão construindo ao longo do seu percurso). Sim, o sistema educativo tem uma função seletiva e salienta aqueles com melhor desempenho. É assim que se combate a reprodução geracional dos privilégios herdados. Eliminando o sistema tradicional de diplomas seletivos, serão os mais frágeis que sofrem. Em alternativa ao diploma, funcionam as redes sociais de apoio à entrada nas melhores posições laborais dos oriundos de famílias melhor posicionadas. Será um retrocesso enorme em relação ao caminho para a igualdade de oportunidades que trilhámos ao longo de muitos anos.
Se olharmos à nossa volta, facilmente encontramos as falhas que teremos de colmatar para nos aproximarmos dos países mais avançados social e economicamente. No quadro é apresentado graficamente o nível da população jovem em vários países da União Europeia. Note-se que o nível ISCED 3-4 usado pela OCDE corresponde ao diploma do ensino secundário “regular” ou profissional; os níveis 5-8 corresponde a diplomas do ensino superior e os níveis 0-2 aos que não atingiram o secundário.  A nossa falha é bem visível: Uma enorme faixa de população sem o secundário e uma carência de população com o secundário, especialmente pela via profissional. A causa deste atraso é conhecida. Só no início deste século fomos capazes de diversificar a oferta educativa das nossas escolas públicas, uma transição sabida como necessária, mas sempre adiada por pressão ideológica em favor de uma pretensa igualdade. Mantendo um canal único nas nossas escolas secundárias, alimentámos um enorme abandono que se reflete no escândalo daquele quadro. A oferta académica não correspondia às necessidades e às aspirações de muitos que acabavam por desistir da escola. O esforço de reconversão das escolas foi grande e rápido, depois pressionado pela escolaridade obrigatória até aos 18 anos. Seria agora o momento de desenharmos estratégias de consolidação das ofertas profissionalizantes e de assegurarmos que esta oferta esteja bem alinhada com toda a diversidade de necessidades sociais.
José Ferreira Gomes

Universidade do Porto

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