Anuncia-se o fim dos mestrados integrados na
maioria dos cursos, com particular impacto nas engenharias. Tendo a criação da
figura de mestrado integrado sido uma especificidade portuguesa na paisagem
europeia pós processo de Bolonha, seria de festejar esta normalização. Contudo,
a forma como são simplesmente extintos, vai provocar reverberações no sistema
de ensino superior, atenuando ainda mais a diferenciação entre o universitário
e o politécnico e esvaziando os mestrados dos politécnicos e das universidades
mais pequenas (do interior) em benefício das grandes universidades da corda do
Minho a Lisboa.
A proposta de revisão da legislação de graus e
diplomas diz seguir as recomendações da OCDE e visar (a) reforçar a capacidade
de I&D+i, (b) estimular a diversificação do sistema de ensino superior, (c)
reforçar as condições de emprego científico e (d) continuar a estimular a
internacionalização. Talvez por a proposta estar datada de 9 dias depois da
versão preliminar do relatório da OCDE, não foram consideradas sugestões
importantes do painel de peritos internacionais. Mais grave é a distância entre
os objetivos e as medidas propostas.
A recomendação mais veemente e recorrente no
relatório da OCDE é o reforço da diversificação do nosso ensino superior. Tendo
nós já uma maior percentagem da coorte a completar a via dita “regular” do
ensino secundário (que encaminha os jovens para o ensino superior) do que a
Inglaterra, o crescimento e diversidade dos estudantes está garantida. O
problema detetado é a nossa tendência para uma via única e mais tradicional de
ensino superior. Para reorientar um sistema complexo de instituições autónomas,
mais do que normas rígidas são necessários estímulos que guiem o sistema no
sentido de servir melhor os estudantes e contribuir para o necessário ganho de
competitividade do país.
A OCDE viu universidades a ocupar o espaço natural
de institutos politécnicos e sentiu a pressão destes para reforçarem o seu foco
em investigação e obterem o direito e concederem o grau de doutor. Recomenda
por isso que o quadro regulamentar da aprovação de ciclos de estudos de
licenciatura seja revisto no sentido de garantir o seu alinhamento com a missão
das instituições em cada setor. E sugere que os institutos politécnicos sejam
autorizados a conceder o grau de doutor de forma cuidadosamente controlada (a)
em campos de investigação aplicada orientada para a prática, (b) em
instituições que tenham demonstrado claramente a alta qualidade do ensino, (c)
onde haja um forte racional da economia regional, e (d) onde haja colaboração
com centros já existentes de treino doutoral. Quase tudo se perdeu na urgência
de fazer uma grande reforma.
Para garantir a diversidade e a excelência de cada
tipo de ensino superior, é crucial que a entrada se faça com grande clareza de
objetivos. Cursos de TeSP (Técnico Superior Profissional), cursos de
Licenciatura politécnica e cursos de Licenciatura universitária devem ter
orientação e objetivos diferentes e esta realidade deve ser bem compreendida
pelos estudantes, pelas famílias e pelos empregadores. Já é possível atualmente
perceber algumas diferenças na retórica regulamentar mas tudo se perde quando
chegamos ao terreno. Temos estudantes a entrar em cursos TeSP só para chegarem
a uma licenciatura sem terem a formação básica exigida; temos licenciaturas em
universidades que até a OCDE reconheceu deverem passar para o setor
politécnico; temos licenciados pelos institutos politécnicos a seguirem em
grupo para mestrado universitário. Seria preciso tornar mais claro para todos
os interessados que a entrada no mercado de trabalho para um TeSP representa uma
formação de 3 semestres em sala de aula (seguida de um semestre de estágio em
posto de trabalho), portanto uma componente educativa geral muito curta seguida
de uma formação profissional a desembocar no estágio. A licenciatura
politécnica ainda que de cariz profissionalizante, implica um período de 6
semestres em sala de aula (que pode já incluir um estágio). A componente de
educação mais geral é mais longa e, necessariamente, mais sólida. Esperar-se-ia
que todos os licenciados pelos institutos politécnicos entrassem de imediato
num posto de trabalho e só depois eventualmente procurassem uma especialização
em mestrado politécnico. A opção por um percurso universitário significa a
decisão de, previsivelmente, a entrada na vida ativa ser atrasada de 2 anos
mais. Em geral a licenciatura universitária não tem uma preocupação direta com
a formação para um posto de trabalho, sendo essa preocupação diferida para o
mestrado universitário subsequente. O estudante que opta por uma licenciatura
universitária (ou por um mestrado integrado) está a tomar a decisão de iniciar
a vida ativa 10 (ou mais) semestres depois. Os períodos educativos em sala de
aula de 3, 6 e 10 semestres marcam bem as intenções diferentes destas opções
que o jovem tem de fazer à entrada no ensino superior. Mas se esta visão é
pouco clara hoje, ela será ainda menos percetível no quadro legal agora
proposto. O fim da maioria dos mestrados integrados terá o efeito de destruir a
noção de que há dois percursos diferentes e de duração diferente nas engenharias,
por exemplo. Mas voltarei a este problema mais abaixo.
Depois de uma definição muito genérica da
licenciatura, a regulamentação atual apenas especifica que, no ensino
politécnico, se deve valorizar especialmente a formação que visa uma atividade
de caráter profissional. A omissão desta orientação para a licenciatura
universitária terá de significar a ausência desta preocupação. Portanto a
licenciatura universitária é uma espécie de “estudo geral” numa área ampla de
conhecimento. O estudante que pretenda, como normalmente acontece, sair com
algum tipo de habilitação mais diretamente aplicável no mercado de trabalho
terá de procurar um ciclo de estudos adicional, normalmente um mestrado. E será
provavelmente um mestrado universitário porque lhe falta a formação
profissionalizante que carateriza os licenciados politécnicos que seguem ali
para mestrado de especialização. Nada é alterado nesta descrição das
licenciaturas na proposta agora em discussão.
Quanto à descrição do mestrado, a nova
regulamentação procura ser mais específica estabelecendo que no ensino
universitário o mestre deve ter adquirido uma especialização de natureza
académica com recurso à atividade de investigação, de inovação ou de
aprofundamento de competências profissionais. No ensino politécnico, o mestre
deve ter adquirido uma especialização de natureza profissional com recurso à
atividade de investigação baseada na prática. Que ninguém saiba bem o que é
esta “investigação baseada na prática” e que não existam hábitos e normas
consensuais na comunidade académica explica talvez porque ninguém se preocupou
com estes detalhes. Vão ser esquecidos por não serem descodificados pelo
leitor, seja ele o docente da instituição que vai desenhar um curso, seja a
A3ES que o vai acreditar ou os peritos que esta vai convidar para os seus
painéis.
As grandes escolas de engenharia têm procurado
afirmar a intenção propedêutica do primeiro ciclo (licenciatura) mantendo um
reforço das áreas disciplinares básicas de suporte ao desenvolvimento da área específica
em causa. O enorme sucesso em anos recentes de duplas titulações em Física e
Matemática (em Espanha) ou da Engenharia Física (em Portugal) apontam para o
reconhecimento crescente do valor dos conhecimentos científicos básicos, desde
que abordados numa perspetiva de resolução de problemas. O sucesso dos antigos
licenciados em engenharia para trabalhar em áreas muito diversas e
frequentemente distantes do objetivo nominal do curso era um sinal deste valor
de uma forte educação básica com grande ambição na matemática, na física e
noutras disciplinas de ciência fundamental. Apesar desta realidade que apenas
marca a maturidade do nosso sistema de ensino superior e a crescente
sofisticação do nosso mercado de trabalho, não deixam de existir fatores de competição
pela atenção dos candidatos ao acesso que levam as instituições a uma
criatividade quase sem limites na denominação dos cursos que lhes apresentam.
Uma licenciatura em “estudos gerais” ou em
“ciências da engenharia” não é coisa muito apelativa para jovens e,
especialmente, para as famílias preocupadas na preparação de um bom futuro para
os seus. Por esta razão, são já poucas as licenciaturas universitárias cuja
designação sugere uma formação base sólida. A alternativa de parecer dar em 3
anos uma formação de engenheiro universitário (de 5 anos) é muito atrativa e
foi adotada por quase todos. Só os mestrados integrados escapavam a esta
operação de marketing e, mantendo o seu primeiro ciclo intacto na solidez da
educação científica básica, arrastavam a organização curricular e a exigência
das outras licenciaturas com designações mais “comerciais”. Tudo isto se
perderá e, lentamente, a organização curricular das licenciaturas
universitárias tenderá para se ajustar à designação profissionalizante que vão
adotar para satisfazer o apetite dos candidatos.
Mas, será este o objetivo desta reforma cirúrgica?
Terá o legislador a intenção de, discretamente, encurtar os percursos
universitários de 5 para 3 anos? Escaparão apenas os cursos que conduzem a
profissões protegidas por diretivas europeias! Estaremos a cumprir o objetivo
“economicista” de que a Reforma de Bolonha foi tão acusada anos atrás? Acabarão
os estudantes por pagar propinas livres nos novos mestrados que ficam isentos
do limite legal de cerca de mil euros? Terá o legislador a intenção de
suavemente acabar com os cursos universitários, encaminhando todos os
estudantes para cursos de licenciatura profissionalizante de 3 anos?
Não creio que seja o caminho mais recomendável e
seguramente não é esta a recomendação dos peritos da OCDE. Quando temos já
perto de 50% dos nossos jovens a chegar ao ensino superior, teremos toda a
vantagem em convidar a maioria dos candidatos a ingressar num percurso com
profissionalização mais rápida, de 3 ou 6 semestres, mas não devemos extinguir
ou deixar o mercado abandonar os percursos universitários mais longos e
exigentes. Convidemos os institutos politécnicos a ser claros na organização de
cursos de TeSP e de Licenciatura que facilitem uma entrada imediata no mercado
de trabalho a um nível apropriado. Criemos condições para que os
intelectualmente mais ambiciosos possam prosseguir um percurso mais exigente,
cientificamente mais profundo e mais longo. Vamos garantir que, com toda a
transparência, estudantes e famílias compreendam os diferentes objetivos de uma
licenciatura universitária e de uma licenciatura politécnica.
Hoje, o número de graus académicos de mestre
concedidos anualmente é cerca de metade do número de graus de licenciado. Isto
significa que mais de metade dos estudantes entram na vida ativa ao fim da
licenciatura, alguns regressando mais tarde para o mestrado. Em comparação
internacional, poderá ser desejável que ainda mais licenciados entrem na vida
ativa antes de regressar aos bancos da escola para uma especialização,
atualização ou reorientação profissional, mas isto pode ser conseguido sem
destruir a solidez da educação inicial universitária.
José Ferreira
Gomes
Universidade do Porto;
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