O
subsistema politécnico do ensino superior foi introduzido em Portugal em 1973
pela reforma de Veiga Simão, atribuindo então os institutos politécnicos (e as
escolas normais superiores) o grau de bacharel. A proposta inicial apresentada
pelo então jovem ministro da educação de Marcelo Caetano em 1971, foi discutida
na Assembleia Nacional nos primeiros meses de 1973 e publicada como Lei em 25
de julho desse ano. Esta lei de bases foi de imediato desenvolvida por um
decreto que criou uma rede de novas universidades, de institutos politécnicos e
de escolas normais superiores cobrindo todo o país. A nossa rede atual não
difere muito daquele plano inicial apesar de os institutos politécnicos só
terem de facto sido estabelecidos nos anos de 1980 no quadro do processo de
recuperação económica após a intervenção do FMI em 1977 e 1983.
A
massificação tardia do nosso ensino superior na década de 1985-95 permitiu aos
institutos politécnicos estabelecerem-se e crescerem, havendo sempre estudantes
qualquer que fosse a sua localização. As velhas e novas universidades eram
incapazes (ou não queriam) crescer ao ritmo exigido por uma procura que seguia
ao ritmo de perto de 15% ao ano. Por 1995, o ensino politécnico público tinha
já 30% dos estudantes no ensino público, mas esta percentagem continuou a
crescer até 2002. Em números absolutos, 2002 é também o último ano de
crescimento continuado do número de estudantes nas universidades, um
crescimento que vinha de pelo menos 1940, a uma taxa média anual de cerca de
6%. Com a viragem do milénio começam as dificuldades das instituições que
subitamente se deram conta de que o crescimento perpétuo não estava garantido.
Ao mesmo tempo o crescimento económico que se tinha mantido bastante firme ao
longo do último meio século parava subitamente por 1995 sem que a população e
os políticos se dessem realmente conta dessa nova realidade ou conseguissem
corrigir o rumo. É o tempo do famoso pântano.
A criação
de novas instituições de ensino superior era a ambição de todas as cidades de
média dimensão e as decisões foram o resultado de negociações políticas e
eleitorais nem sempre bem fundamentadas. Só com o início da competição pelos
estudantes é que se notou a fragilidade de algumas decisões. Mas, os locais de
menor pressão demográfica onde as instituições têm mais dificuldade em atrair
estudantes são também aqueles onde elas são mais relevantes para o
desenvolvimento regional. Ao encontrarem esta autojustificação, têm de se
adaptar a uma nova missão, o que nem sempre tem sido fácil, nem é facilitado
por um modelo de governança muito dependente da corporação docente.
Apesar do
sucesso dos diplomados com licenciaturas politécnicas, não podemos deixar de
notar uma certa incompreensão dos estudantes, das famílias e dos empregadores
em relação à diferente missão e aos diferentes objetivos de universidades e
institutos politécnicos. Ao longo destes mais de 30 anos, foram muito escassas
as políticas de apoio à diferenciação, ficando o modelo universitário como
objetivo único, como ideal de suposta excelência. Foi muito raro que os
institutos politécnicos assumissem, por sua iniciativa, uma política de
recrutamento e de formação do seu corpo docente consequente com esta desejada
aproximação à universidade. Os seus estudantes também procuravam mais o saber
fazer imediato do que uma base académica sólida e nem sempre imediatamente
relevante para as profissões. Nem os bacharelatos de três anos poderiam dar um
estímulo diferente sem defraudar completamente a aspiração de empregabilidade
dos seus graduados.
Com a
massificação do acesso ao ensino superior que levou a que
tenhamos hoje 40% da coorte de 20 anos no ensino superior e sendo já seguro,
com a criação dos TeSP (cursos de Técnico Superior Profissional), que os 50%
serão atingidos em poucos anos, estamos obrigados a fazer uma reavaliação do
posicionamento do serviço público de ensino superior. Quando, em 1979, foi
criado o Estatuto da Carreira Docente do Ensino Universitário, o escalão
docente máximo foi equiparado ao das carreiras judicial e militar. As
universidades tinham cerca de 80 000 estudantes, um número que hoje quase
quintuplicou, o que ajuda a explicar a perda progressiva de posição relativa
dos docentes universitários. Esta realidade põe as nossas instituições muito
longe da competição internacional por talentos que alguns países praticam e que
pode generalizar-se associada à mobilidade crescente da população em geral. Na
Irlanda, tornou-se possível, com autorização caso a caso, ultrapassar o salário
do chefe do governo (€190 000 por ano) e o académico mais bem pago era o
vice-diretor de um instituto interuniversitário, um russo de nascimento, com
€337 000 anuais. (Previsivelmente, o sindicato dos docentes universitários
irlandeses opõe-se dizendo que pagar salários altos a um pequeno número de
professores não é a solução.) Portugal é provavelmente o único país do mundo
onde todos os estudantes do ensino superior têm em todas as suas aulas docentes
doutorados com obrigação de fazerem investigação. Será possível manter esta
situação e manter uma grelha salarial única e bastante apertada?
Todos os
países desenvolvidos têm algum modelo de diferenciação, em geral muito forte,
da sua oferta de ensino superior. Espanha tem os ciclos curtos em escolas
secundárias como via de continuação para os estudantes que terminam o
secundário pela via profissional. A França mantém as suas Grandes
Écoles de elite com entrada muito seletiva e os ciclos curtos também
seletivos, enquanto as universidades são em geral obrigadas a aceitar todos os
candidatos com o efeito de que o insucesso e abandono são altíssimos nos
primeiros anos. O Governo Macron está a tentar corrigir situação. O sistema
científico está tradicionalmente ligado às universidades e a algumas
poucas Grandes Écoles. Os candidatos às Grandes Écoles ficam
2 anos em alguns liceus onde preparam o concurso de entrada na escola de elite
e, nesse liceu, não há atividade de investigação. Na Holanda, 2/3 dos
estudantes estão no equivalente ao nosso ensino politécnico com raros docentes
doutorados e quase sem investigação. No Reino Unido, os ciclos curtos estão
fora das universidades e as universidades têm condições de funcionamento e de
reconhecimento social muito diferente. O sistema britânico é um caso único na
Europa de forte reconhecimento pelos estudantes e pelos empregadores das
grandes diferenças de seletividade, conteúdo e ambição académica e da missão
das diferentes universidades. Com a reclassificação, em 1994, dos antigos
politécnicos em universidades, a concorrência entre elas aumentou, reforçando
ainda mais a perceção da sua diferenciação. Nos Estados Unidos, 2/3 dos
estudantes estão em Community Colleges, em cursos de 2 anos, alguns
preparando a sua transferência para cursos universitários de 4 anos, sem
qualquer investigação e muitas universidades assumem também não ter
investigação.
Até
quando deveremos manter a pretensão de um sistema binário que foi o sonho
inicial de Veiga Simão e parecia consolidado no virar do milénio? Assistimos
hoje a algumas cedências e poderá ser preferível assumir o seu fim para gerir
mais eficazmente um sistema único que sirva melhor as necessidades dos
portugueses. Não faz mais sentido pensar no ensino superior como se a única via
fosse a velha licenciatura que era, não só única, mas também o primeiro e
último ciclo de ensino superior. Note-se que os mestrados (à americana) forma
criados em 1980 pelo ministro Vítor Crespo e que os doutoramentos só começaram
a um ritmo significativo depois da adesão à então CEE, em 1985. A população
estudantil que hoje procura o ensino superior é muito mais diversa. As funções
que os graduados vão desempenhar na sociedade vão muito para além da
administração pública e das velhas profissões liberais. As ofertas de ensino
superior são hoje muito diferenciadas e todos os estados procuram acentuar e
tornar mais transparentes e compreensíveis estas diferenças. A criação
dos ciclos curtos de TeSP em 2014 estava nesta
linha. Algum descrédito que aqui ou ali aflora em relação à licenciatura tem
muito a ver com a quebra da expectativa de que o grau possa garantir a carta de
alforria de outrora. Temos de manter e aumentar a diferenciação e a
transparência da oferta, mas teremos de manter um sistema binário? Depois dos
acidentes do percurso dos últimos anos, talvez seja mais eficaz redesenhar uma
nova arquitetura institucional.
Várias
medidas legislativas recentes contrariaram o desenvolvimento e a compreensão
das diferenças entre o universitário e o politécnico:
A. Adaptação
ao Processo de Bolonha (2006)
B. Revisão
dos estatutos de carreira docente (2009)
A. A
restruturação dos graus académicos feita em 2006 para fazer a adaptação ao
processo de Bolonha foi apressada e pouco refletida. A generalidade dos países
fez as suas reformas de acordo com o que entenderam necessário, sem alterar o
significado dos antigos graus académicos ou criando novas designações. Portugal
seguiu o caminho fácil de promover o ciclo de 3 anos dos institutos
politécnicos de bacharelato a licenciatura e reduzir as licenciaturas de longuíssima
tradição universitária a 3 anos sem ser claro se tinham um objetivo terminal,
profissionalizante (politécnico) ou se deviam manter o objetivo de continuar
estudos por mais tempo conformando-se com a tradição universitária. Mais de dez
anos depois não são ainda claros os objetivos de algumas licenciaturas
universitárias. Para evitar essa dificuldade, inventou-se o Mestrado Integrado
(MI) que garantia às grandes escolas de engenharia (e profissões universitárias
mais tradicionais de Medicina, Arquitetura, Farmácia) a manutenção do modelo
anterior. Como este MI só foi permitido às universidades e apenas quando a
atividade de investigação fosse mais relevante, este transformou-se em etiqueta
de prestígio. Os primeiros ciclos das mesmas áreas disciplinares assumiram
inicialmente a designação de Ciências de Engenharia para obstar á confusão de
que fossem tomadas como qualificação profissional. Mas, como estas designações
não são muito atraentes para os jovens candidatos ao Concurso Nacional de
Acesso, foram-se convertendo em Licenciaturas com uma designação profissional,
mesmo quando não é esse o objetivo assumido. Tudo isto criou uma razoável
confusão nas ordens profissionais cuja função de defesa do interesse público
face ao exercício autónomo de uma profissão ficou ainda mais reduzida. No seio
dos estudantes e até nos empregadores, a opacidade destes graus é total, o que
resulta na desvalorização do diploma, fragilizando ainda mais os graduados de
primeira geração que aspiravam a usar o título como cartão de entrada num novo
meio social.
B. A revisão
dos estatutos de carreira docente de 2009 eliminou quase completamente as
diferenças entre o universitário e o politécnico. Nas condições impostas para a
abertura de concursos para que todos os lugares docentes passassem para
doutorados numa meia dúzia de anos, o efeito previsto era a dispensa de uns
5000 docentes a tempo inteiro não doutorados (ou com doutoramentos obtidos sob
a pressão de prazos curtos) e a sua substituição por jovens doutores graduados pelas
universidades nos últimos anos e, já na altura, sem destino óbvio pelo
desacerto entre os seus interesses e aspirações e as necessidades e propostas
das empresas. Estes doutorados mais jovens e, em alguns casos, muito
competitivos iriam levar para os institutos politécnicos uma cultura de
investigação e uma aspiração a que estes adotassem a cultura das universidades
de onde acabavam de sair. As alterações subsequentes deste estatuto, evitaram a
saída da grande maioria dos docentes que tiveram um tempo mais longo para se
doutorarem e ficaram com a sua vaga garantida sem concurso. Os doutorados mais
jovens não tiveram a sua oportunidade e foram mantidos nas seis maiores
universidades com pós-doutoramentos repetidos e alguns poucos contratos de
trabalho temporário. O resultado relevante para esta discussão é que num
período curto o número de docentes do ensino superior a competir por fundos
para investigação terá subido uns 50% enquanto os milhares de pós-doutorados e
contratados também procuravam a sua sorte. Nominalmente, ficamos com o sistema
de ensino superior com as melhores qualificações formais do mundo. Não está
feita a avaliação do impacto final desta requalificação muito rápida do seu
pessoal sobre a cultura dos institutos politécnicos, nem no aspeto dos
resultados da investigação nem nos objetivos do ensino ministrado. A quase
única diferença entre as duas carreiras docentes é que no universitário o
número máximo de horas semanais de docência é de 9 e no politécnico é de 12.
Apesar desta diferença significativa, não há diferença entre o rácio discente:
docente num e noutro subsistema (ficando em cerca de 15, tal como na média das
universidades da OCDE ou da UE) o que aproxima muito os custos médios do
pessoal docente por estudante num e noutro subsistema.
C. A
proposta de extinção dos mestrados integrados de engenharia poderá parecer a
simples abolição de uma peculiaridade portuguesa, mas fará desaparecer uma das
poucas características visíveis que distingue os dois subsistemas. E, mais
importante, só num curso desenhado para 5 anos é que há disponibilidade para
iniciar com disciplinas básicas de matemática, física, química ou biologia e
para aceitar estas disciplinas a um alto nível de exigência. Em larga medida,
esta formação básica é o pré-requisito para a entrada nos campos de aplicação
especializados de cada engenharia. A norma em muito países é uma licenciatura
focada na continuação de estudos seguida de um mestrado da especialidade.
Parece normal que Portugal seguisse esta norma, mas não se vêm sinais disso. A
alternativa é uma competição por candidatos anunciando uma licenciatura (no
Concurso Nacional de Acesso) que pareça suficientemente atrativa pelo seu cariz
profissionalizante. Não serão visíveis as diferenças para a oferta politécnica.
D. A
autorização da oferta de doutoramentos sujeita apenas à sua acreditação pela
Agência A3ES não foi sugerido pelos peritos da OCDE que analisaram recentemente
o nosso sistema de ensino superior, mas parece ser a opção do Governo. Haveria
certamente espaço de melhoria na regulamentação dos doutoramentos, mas a
concretização da proposta feita será o golpe final no sistema binário.
O sistema
binário é a opção mais comum por facilitar a compreensão da enorme diversidade
da oferta educativa hoje incluída no ensino superior. Um tipo único de
instituições será uma originalidade que, sem outros cuidados, tornará o nosso
ensino superior demasiado caro e demasiado mau. Em qualquer caso não servirá
bem os portugueses. Urge repensar o sistema e construir um modelo que
ultrapasse os erros cometidos no passado e as distrações do presente.
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