sexta-feira, 11 de outubro de 2024

A Novíssima Agenda Educativa

Nos anos mais recentes, tivemos notícia da queda de Portugal nas avaliações internacionais da aprendizagem dos alunos. Depois da pandemia tivéramos a boa notícia de que, mesmo sem aulas presenciais, tudo correra bem. Isto foi a verdade oficial até chegarem as comparações internacionais que mostraram que todos os países tinham tido impactos negativos e que Portugal, com um período de encerramento das escolas muito longo, tinha piores resultados. Programas de recuperação foram anunciados, mas todos os sinais vão no sentido de mostrar que o seu sucesso é muito limitado. Em 2023/24, dezenas de milhar de alunos estiveram sem professor de algumas disciplinas durante todo o ano escolar. A realidade da falta de jovens professores para compensar as aposentações dos mais velhos irrompeu como grande surpresa, ainda que estivesse anunciada há bastantes anos. Note-se que isto acontece enquanto, no último decénio, as escolas secundárias públicas perdem 26 mil alunos e as privadas ganham 8 mil. E que o ganho das escolas privadas neste decénio não se dá na via regular (ou científico-humanística) dirigida à preparação do acesso ao ensino superior que se mantém quase constante.
No ano de 2022/23, a percentagem de alunos da via científico-humanística do ensino secundário a frequentar escolas privadas foi de 11% na média nacional, com 20% na Grande Lisboa e na Área Metropolitana do Porto; em Lisboa, cidade e concelho, chegava a 30%. Para os alunos da via profissional no setor privado, a média nacional chega a 41% e é de 64% para os “cursos de aprendizagem”, “planos próprios” e “CEF”, chegando esta última a perto de 90% na Região Norte. Dez anos antes estas percentagens eram de 21% e 6,5%, com 12% para a Região Norte. A realidade é que a escola pública segurou os alunos da via científico-humanística, enquanto excluía aqueles que optavam pelas vias profissionalizantes. A bandeira política de defesa intransigente da "escola pública" como escola inclusiva e promotor social interessa apenas para a via mais académica focada na preparação para o ensino superior. Parece que o valor social da "escola pública" diminui à medida que nos afastamos da via mais académica ou que envolvemos jovens socialmente mais frágeis. De facto, a defesa de uma "escola pública" inclusiva, exclui os mais frágeis. A avaliação das políticas educativas seguidas no ciclo político de 2015 a 2024 permite discernir (i) um primeiro objetivo de reduzir o conteúdo curricular e fazer desaparecer os exames no ensino básico e secundário e (ii) um segundo objetivo de garantir o eterno crescimento quantitativo do ensino superior e da ciência. Num primeiro tempo, estes objetivos aparecem como muito benevolentes para estudantes (e jovens cientistas) e também para os docentes (e investigadores seniores) e para as lideranças das respetivas instituições educativas. Ao fim de quase uma década, a bondade destas políticas é posta em dúvida por todos os parceiros, pelos estudantes que anteveem um futuro de frustração no mercado de emprego, e pelas instituições cujos líderes começam a sentir o desencanto de um caminho fácil, mas sem destino. Até a chegada da pandemia de COVID19 foi saudada como (iii) uma oportunidade para acelerar uma benéfica transição tecnológica definitiva da vida em sala de aula que foi aclamada pelos impactos positivos que teria na aprendizagem. Infelizmente, todas estas expectativas chocaram rapidamente com uma realidade bem diferente, caindo por terra o mundo virtual que fora construído.
Nas comparações internacionais, a aprendizagem no ensino básico iniciou uma trajetória descendente depois de uma subida sustentada ao longo de perto de 20 anos. Dificilmente encontraremos outra causa senão as alterações no currículo e o abandono de exames considerados como relevantes por alunos, pais e professores. Apesar de termos uma despesa pública elevada (quando medida em percentagem do PIB), os resultados são desanimadores.
A falta de professores a algumas disciplinas foi recebida como grande surpresa depois de ter sido reduzido o número de alunos por turma e de terem sido extintos alguns contratos de associação com escolas privadas, o que levou ao desemprego professores pela falência de entidades privadas. E, convém lembrar que estas medidas foram justificadas pelo excesso de capacidade do setor estatal, mesmo aceitando que o custo para o estado iria subir porque o custo por turma contratada era menor do que o custo de uma turma no sistema estatal. Temos agora de enfrentar a real falta de professores. A imagem da profissão é muito negativa pela presença quase diária nos meios de comunicação social, jornais, rádio e TV, do desencanto dos profissionais e, principalmente, dos seus responsáveis sindicais. Neste ambiente, quem poderá optar por se juntar à classe, mesmo sabendo que não há desemprego nem risco de extinção do posto de trabalho. E que os salários são, no início da carreira, um pouco menores do que a média europeia, medida pelo PIB per capita, mas que no fim da carreira são confortavelmente mais elevados.
Seguramente, a vida nas escolas estatais é dificultada pela primazia dos direitos dos alunos e dos seus pais e pela obrigação de reter na sala de aula mesmo aqueles que já desistiram da escola. E o acompanhamento dos percursos alternativos, profissional ou de "educação e formação", é muito diferente do percurso dito "regular" do antigo liceu. E a muito criticada, mas plenamente adotada, "Nova Gestão Pública" da vida escolar exige o registo minucioso de todo o percurso de professores e alunos destruindo, a tradicional autonomia do professor enquanto profissional responsável e respeitado. As principais críticas dos professores ao seu dia-a-dia na escola referem-se justamente a toda esta burocracia, mas não se vê ainda como haverá coragem para suavizar estes processos burocráticos que apenas funcionam como defesa da escola e do professor contra eventuais acusações de má prática. No ensino superior, mantém-se o paradigma do crescimento, ainda que esteja a receber coortes mais reduzidas pela queda da natalidade. No acesso, alargou-se um sistema de cotas, primeiro para candidatos provenientes da via profissional (ainda que esta não se proponha preparar os jovens para o acesso direto a uma licenciatura) e depois para os beneficiários da Ação Social. Em qualquer destes casos a cota definida é arbitrária e não se propõe um acompanhamento para avaliar se estes candidatos se vão integrar bem no seu percurso no ensino superior ou vão ser vítimas frustradas pela sua impreparação.
Depois de um pico de 2500 doutoramentos em 2013/14, este número tem oscilado entre 2100 e 2300 nos anos mais recentes. Estes números estão bastante acima da capacidade de absorção destes graduados. Analisando os números oficiais de doutorados em atividade em Portugal, cerca de um terço dos graduados anualmente estarão a sair para o estrageiro. Mesmo assim, o número restante é muito superior às necessidades de renovação de pessoal no sistema académico (entre 500 e 1000 anualmente). Compreende-se assim a pressão exercida pela Comissão Europeia para evitar o financiamento de bolsas de doutoramento por fundos estruturais, pressão já exercida no ciclo de financiamento anterior e agora repetida. No ciclo anterior o resultado foi uma pequena diminuição no número de bolsas financiadas; agora, o governo português teve de aceitar que cerca de metade das bolsas fossem concedidas para projetos desenvolvidos em ambiente não académico. Esta opção pode ser muito positiva, se a qualidade da formação doutoral for bem acompanhada, muito para além dos requisitos formais da A3ES (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior). Ou muito negativa se deixar passar para a sociedade a ideia de que um doutorando é um estagiário sem custo salarial e que a carta doutoral não garante uma competência superior.
Curiosamente, a realidade espanhola, com 11259 doutorados em 2022, é muito próxima da portuguesa, feita a correção para a diferença de população. Como em Portugal e noutros países, há problemas de estabilização destes doutorados em carreiras científicas dentro do setor académico ou empresarial. Para isso, o número de doutorados anuais é excessivo e o problema ainda é agravado pela imigração da América de língua espanhola. Mais de 50% dos doutorados em atividade no país estão fora da investigação. Em conclusão, a taxa de emprego é alta, mas fora do seu setor de especialização e aquém das suas expectativas. Deve notar-se que o número de doutores formados anualmente hoje pode ser maior que o número de licenciados há 50 anos. Não se pode estranhar que muitos vão ocupar funções profissionais anteriormente ocupadas por simples licenciados. Se o grau académico funcionar como sinalizador da competência e das potencialidades do graduado, então o doutorado de hoje estará apto a servir nos mais diversos postos dentro da economia. Mas, para que não haja frustração do empregador e do doutorado em busca de emprego, é necessário que a formação doutoral seja repensada. Esta breve resenha da evolução recente do nosso sistema educativo deixa pistas para a definição de uma nova agenda focada na qualidade da experiência educativa e na preocupação de que o percurso educativo contribua para a futura felicidade do educando e evite o risco de frustração.
 José Ferreira Gomes
Reitor da Universidade da Maia
In: O Economista - Anuário da Economia Portuguesa · 1 out 2024,

segunda-feira, 17 de junho de 2024

O sistema universitário português no pós-25 de abril

Resumo
Portugal fez no último meio século a chamada universalização do ensino superior, isto é, o acesso dos jovens ao ensino superior passou de uns 2% para mais de 50% da coorte. Para esta transformação muito contribuíram as chamadas universidades novas concebidas pela reforma do sistema educativo do Ministro da Educação, José Veiga Simão, já no ocaso do Estado Novo.
A alfabetização dos jovens só foi completada em finais da década de 1950 e foi necessário esperar pela reforma de Veiga Simão para dispersar por todo o país a educação para além dos 4 primeiros anos de escolaridade básica. Já entrado no século XXI, foi necessário tornar o ensino secundário obrigatório para que a frequência deste nível de ensino chegasse ao típico de muitos países europeus e até ultrapassasse alguns dos nossos parceiros mais imediatos.
O ensino superior manteve um crescimento a um ritmo constante ao longo de todo o século XX. Só o estatuto de carreira docente de 1979 e os fundos europeus que fluíram a partir da década de 1980 criaram universidades de investigação comparáveis às dos nossos parceiros europeus. Para que mais de 50% da coorte jovem seja acolhida no ensino superior, exige-se uma diversidade de percursos que tem sido muito difícil estabilizar.
A universalização do acesso ao ensino superior
Assistimos no último meio século ao abandono de um ensino superior elitista, com pouco mais de 1% da população jovem, e a sua universalização (entendida como chegando a mais de 50% da coorte jovem). Na evolução da população universitária podemos reconhecer três fases. A primeira, de 1975 a 1985, em que continua o anterior crescimento lento, mas sustentado. O decénio de 1985-95 assiste a uma explosão no acesso em que o número de estudantes de licenciatura ultrapassa o espanhol, mas com enorme pressão sobre as velhas instituições. Esta realidade leva à abertura do escape para universidades privadas criadas muitas vezes sem docentes nem salas de aula ou laboratórios. Chegou-se à situação extrema de haver maior número de estudantes a entrar em instituições privadas do que nas estatais.
Foi também nesta fase que as universidades do estado começaram um programa de construção de novos edifícios dimensionados para a nova realidade, enquanto contratavam novos docentes e lhes ofereciam oportunidades de doutoramento, mesmo no país, o que era uma novidade. Numa fase inicial, a maioria das velhas universidades resistiam à admissão de mais estudantes com receio de que isso significasse uma perda da capacidade intelectual dos estudantes admitidos e uma baixa da qualidade do ensino. O que começou por exigir alguma pressão externa, enraizou-se na cultura das próprias instituições que passaram a ver no crescimento um sinal de sucesso e, para cada docente, uma oportunidade de contratação de colaboradores que iriam valorizar a sua área de especialidade e dar-lhe maior prestígio, mais artigos e maior visibilidade. Na resposta a esta procura acrescida, os institutos politécnicos tiveram um papel relevante. Tinham sido pensados em quase todas as sedes de distrito, em 1973. Vinte anos depois, já instalados, todos viram a sua oferta educativa satisfeita pelos muitos candidatos que não encontravam vaga na sua área de residência e se dispunham a deslocar-se para qualquer outro ponto do país. Criou-se assim a ilusão de que qualquer localização era boa para uma universidade ou instituto politécnico porque os estudantes aí chegariam, apesar da grande queda da natalidade ocorrida ao longo da segunda metade do século com o progressivo abandono da agricultura e a busca de atividade nalgumas regiões mais industrializadas e nos serviços que cresciam nas cidades maiores. Neste mesmo período, também as instituições privadas viam a sua oferta plenamente satisfeita. A oferta privada manteve-se quase exclusivamente nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, as regiões com mais procura não satisfeita pelo estado.
O crescimento que vinha desde o princípio do século e que foi dramático nos anos de 1985-95 estancou subitamente por volta do ano 2000. Os efeitos foram dramáticos com todas as instituições, estatais e privadas a competir pela atração dos estudantes que tinham desaparecido. Seria já o efeito da queda da natalidade.
Depois do ano 2000 foi ainda possível compensar a queda demográfica de 1 a 2% ao ano com a abertura do ensino superior a “novos públicos” para utilizar a linguagem oficial. Primeiro, foi o acesso simplificado dos maiores de 25 anos, logo convertido em maiores de 23 anos. Mais tarde surgiu o argumento de que seria injusto obrigar os estudantes que tinham optado pela via profissionalizante no 10º ano de escolaridade a demonstrar competências semelhantes às dos colegas que tinham optado pela via de preparação para o superior. Num raciocínio que desvalorizou a importância da preparação académica para o acesso aos cursos superiores, também não se curou de saber se haveria maior empregabilidade ou melhor remuneração na opção de transição direta do ensino secundário profissionalizante para o mundo do trabalho.
O resultado desta política de crescimento da população jovem a prosseguir estudos pela via académica do ensino secundário para uma qualquer licenciatura veio a provocar o desajuste que hoje se observa de excesso de licenciados que são obrigados a emigrar para países do centro da Europa. De facto, temos uma maior percentagem de jovens a frequentar uma licenciatura do que outros países europeus como a Espanha, a França ou a Alemanha e temos uma economia em crescimento demasiado lento para criar os empregos a que eles aspiram. Em contrapartida, temos uma enorme falta de trabalhadores “não qualificados”, isto é, em funções tradicionalmente executadas por trabalhadores que iniciavam o seu treino quando eram muito jovens, sem qualquer qualificação profissional prévia. Esses jovens permanecem hoje na escola até aos 18 anos e, nessa altura, não aceitam a condição do velho “aprendiz”; por outro lado, as empresas (e a legislação) já evoluíram no sentido de não quererem aceitar estes aprendizes menos jovens. A solução encontrada e muitas vezes aplaudida é o recrutamento de imigrantes, legais ou não, disponíveis para aceitar remunerações baixas e condições de vida infra-humanas.
O atraso português
O ensino básico e secundário sofria de um atraso secular desde o século XVIII. De facto, o número de alunos existentes em 1759, data da expulsão e encerramento dos colégios jesuítas, só veio a ser recuperado na década de 1930. Se considerarmos que a população tinha no entretanto triplicado, a recuperação do estado anterior terá ocorrido ainda mais tarde. A baixa participação no ensino superior resultava das barreiras económicas no acesso e, principalmente, na frequência do ensino pós-primário, dos 11 aos 17 anos. Se a cobertura do primeiro ciclo (ou primário) era universal desde os finais da década de 1950, o prosseguimento de estudos só era possível nos grandes centros, nas capitais de distrito e pouco mais, e, mesmo aí, com barreiras económicas relevantes.
Até à chegada de José Veiga Simão ao Ministério da Educação em 1970, o ensino superior português era constituído pela antiga Universidade de Coimbra, pelas duas universidades de Lisboa e do Porto criadas logo em 1911 pela jovem República e pela Universidade Técnica de Lisboa criada em 1930 pela reunião de várias escolas profissionalizantes anteriormente dependentes dos ministérios setoriais (ao estilo francês). O crescimento lento, mas sustentado, ao longo de todo o século XX criou uma pressão crescente nas universidades com espaços muito exíguos e antigos e com quadros docentes muito limitados, ainda herdados do período de fortíssima contenção orçamental dos anos iniciais do Estado Novo. As condições de trabalho de estudantes e de professores nessas universidades eram difíceis. Os espaços exíguos. Um corpo docente desequilibrado, mal remunerado, geralmente em múltiplo emprego para sobreviver e raramente envolvido em algo a que pudéssemos chamar investigação. Alguns dos investigadores mais ativos e promissores tinham sido expulsos das universidades a seguir à eleição presidencial de 1949 e noutras “limpezas” posteriores.
A evolução do número de estudantes no ensino superior na figura acima deve ser comparada com a realidade noutros países. Mesmo o Reino Unido , ainda a fechar um império onde o sol nunca se punha, em 1962/63, tinha 118 000 estudantes universitários o que coincide, em termos proporcionais, com a população universitária portuguesa na mesma época. Com duas diferenças importantes. Por um lado, o ensino pós-secundário tinha no Reino Unido na mesma altura cerca de 98 000 estudantes, mais de metade em escolas de formação de professores e por outro, estes números são tirados do relatório parlamentar que levou à grande expansão do sistema universitário como resposta ao avanço da realidade norte-americana. Nos Estados Unidos, a grande expansão fora impulsionada pela chamada GI Bill de 1944, a lei que oferecia uma formação profissional ou superior aos homens desmobilizados da guerra na Europa e no Pacífico. Nos anos seguintes a percentagem de jovens no ensino superior passou de menos de 5% para mais de 35% e continuou a subir. Na Califórnia, o Plano Diretor de 1960 estabeleceu que 12,5% dos alunos que terminem o secundário devem ter acesso à University of California, UC, (a uma rede hoje com 10 universidades de investigação), e uma cota adicional de 27,5% devem ter lugar na California State University, CSU, (uma rede universitária estadual hoje em 23 locais e quase sem investigação ). Os Community Colleges, também do Estado da Califórnia, são hoje 116 e oferecem cursos de 2 anos que vão desde preparatórios para a UC ou a CSU até formações sem qualquer ambição académica. O ensino privado com fins lucrativos tem, na Califórnia, cerca de 11% dos estudantes.
Um ensino superior europeu
A rede universitária planeada por Veiga Simão veio a ser concretizada decénios mais tarde com alguns ajustes feitos pela pressão política do momento, nunca com o estudo e o planeamento do projeto inicial. A rede de universidades estatais foi completada a partir de 1980 com uma rede de institutos politécnicos. Acresce uma rede de instituições privadas especialmente em Lisboa e Porto e algumas a norte do Porto. Dos 446 000 estudantes inscritos em 2022/23, 20% estão em instituições privadas. A preferência pelo ensino universitário resulta em 63% dos estudantes em cursos deste tipo (ou com esta designação). Adicionalmente, as licenciaturas e mestrados do ensino politécnico têm 32% dos estudantes inscritos e os 5% restantes estão em cursos TeSP (Técnicos Superiores Profissionais).
Com mais de 50% da coorte jovem a chegar ao ensino superior, temos hoje um sistema muito comparável a qualquer sistema europeu ou norte americano. A percentagem de jovens a entrar numa licenciatura (ou mestrado integrado) é já superior à dos nossos parceiros mais próximos. Até há poucos anos tínhamos a rede estatal de universidades e de institutos politécnicos com as suas faculdades dispersas pelas cidades antigas (Coimbra, Lisboa e Porto) ou com campus bem estabelecidos e bem dimensionados noutras cidades. Evitava-se ou impedia-se a dispersão de cursos ou de faculdades para tentar reforçar uma cultura académica entre um conjunto numeroso e cientificamente diverso de estudantes. Para os institutos politécnicos estatais, a localização foi sempre mais flexível tentando satisfazer interesses dos autarcas ou das populações. O conceito de sistema binário, universitário e politécnico, nunca foi bem interiorizado pelos governantes (nem pela população), tratando as duas redes de universidades e de institutos politécnicos como complementares. Só em Coimbra, Lisboa e Porto era oferecida aos candidatos a escolha entre os dois subsistemas. A filosofia parece ser a de que onde houvesse um instituto politécnico, a população estava servida, não precisando de uma universidade. E vice-versa. Nesta visão, seria indiferente optar pelo ensino universitário ou politécnico. Se esta era a visão externa, os docentes interiorizavam bem a mesma visão desenhando cursos e adotando programas em tudo similares, desde que fossem aceitáveis pelos estudantes que conseguiam atrair. Só os cursos TeSP foram concebidos desde o início, em 2014, como localizáveis fora das sedes dos respetivos institutos politécnicos e assim tem acontecido com uma grande dispersão da sua oferta.
O modelo californiano é estudado em todo o mundo pela sua conceção muito clara e pela sua estabilidade ao longo de mais de 60 anos. A realidade nos países europeus segue modelos com alguns traços similares. Não é seguro que aceitemos em Portugal uma filosofia próxima desta. Assistimos nos últimos anos a uma dispersão de campus de universidades e de institutos politécnicos do estado e aceitamos o conceito de faculdades policêntricas a distâncias que impedem a integração de docentes ou de estudantes. Não estaremos a prejudicar a qualidade da experiência dos estudantes que se pretende uma experiência de aprendizagem e de formação da personalidade dos jovens adultos que são o nosso público mais tradicional?
O ensino superior começa na alta idade média europeia como instrumento de formação dos administradores da Igreja e do Estado. Na refundação pós-revolução francesa, ganha em França a preocupação com a formação dos novos profissionais necessários ao Estado na guerra e na paz. Na Alemanha, Humboldt prefere uma universidade criadora de conhecimento e, só secundariamente, formadora de profissionais. É esta a versão inspiradora das grandes fundações universitárias norte-americanas e das principais universidades estaduais, mas sempre complementadas por universidades “de ensino” sem grande aspiração na investigação e por Community Colleges orientados para a formação profissional e a entrada mais rápida (cursos de 2 anos) no mercado de trabalho. Na Europa, mantém-se a hesitação entre a ênfase na formação profissional mais curta e a educação em ambiente de investigação com um impacto de profissionalização mais longo. O mesmo se pode dizer da rede institucional californiana que é invejada noutras latitudes, mas raramente imitada. Num Estado com perto de 40 milhões de habitantes, a University of California tem menos de 300 000 estudantes, muitos de outros estados (25% em Berkeley e 17% na média de todos os seus campus). Em contrapartida, a rede de Community Colleges tem 2,1 milhões.
Investigação académica
O sistema científico português tem raízes nos esforços feitos no IAC, Instituto de Alta Cultura, 1952-76 e no INIC, Instituto Nacional de Investigação Científica, que lhe sucedeu 1976-1997. Com meios muito limitados até à chegada dos fundos comunitários, foi feita a formação de sucessivas gerações de doutorados no estrangeiro e iniciada a avaliação científica com painéis internacionais. Por volta de 1990, é incentivada a criação de instituições de investigação, sempre dentro das universidades ou dirigidas pelos seus docentes, mas independentes da sua hierarquia. Criou-se um curioso sistema em que uma pretensa autonomia universitária convive bem com uma organização da investigação quase totalmente independente e comandada por uma agência de financiamento pouco previsível e nunca articulada com reitores nem o seu Conselho de Reitores. Na mesma época foram criados Centros Tecnológicos em grande proximidade com as empresas e, se alguns falharam, outros terão dado um contributo importante para a modernização e a competitividade internacional de indústrias tradicionais como as do vestuário e do calçado. A evolução da investigação académica nos últimos decénios é bem medida pelo número de doutoramentos concluídos nas nossas universidades:
1971 – 1980 29 por ano
1981 – 1990 125 por ano (4,3x)
1991 – 2000 382 por ano (3,1x)
2001 – 2010 1020 por ano (2,7x)
2011 – 2019 2129 por ano (2,1x)
Os doutorados foram inicialmente absorvidos pela docência nas universidades e depois pelos institutos politécnicos e universidades privadas quando o RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior) lhes impôs esta exigência para o corpo docente. A partir de 2010 tornou-se claro que haveria uma crise de emprego de doutorados porque a economia não evoluía ao ritmo e com a componente de inovação correspondente. Como o financiamento das bolsas de doutoramento depende muito dos fundos comunitários, a Comissão Europeia tentou impor restrições no Portugal2020 e, no Portugal2030 exigiu que a maioria dos doutoramentos fosse feita em ambiente não académico. Esta exigência é compreensível, mas não sabemos ainda que sucesso poderão ter num ambiente empresarial sem grandes empresas e onde as pequenas e médias empresas não têm, em geral, capacidade para fazer e incorporar a investigação com algum significado académico.
O indicador normalmente usado para comparar a investigação académica dos países é o número anual médio de publicações por milhão de habitantes que é mostrado na figura para o período 1987-2016 .
Ressalta o facto de, neste indicador, termos ultrapassado já outros países europeus, primeiro a Grécia e a Itália, depois a média da UE28, incluindo a Alemanha e a França. Que tenhamos ultrapassado países fortemente industrializados, merece alguma reflexão para compreendermos o que falhará para que este investimento não tenha ainda em Portugal retorno visível na economia. Como académicos, temos de estar preocupados com a sustentabilidade deste esforço continuado de investimento público e como poderemos continuar a justificar este esforço perante as solicitações alternativas do estado social ou do investimento em infraestruturas públicas pelo governo central ou pelo poder autárquico. Na realidade, o valor da dotação orçamental pública para investigação teve um máximo de 0,85% do PIB em 2009, mas está nos anos mais recentes abaixo de 0,7%.
Súmula final
O impulso porventura mais relevante para a modernização do ensino superior do pós-25 de abril foi o estatuto da carreira docente universitária de 1979 (preparado e consensualizado pelo Ministro Valente de Oliveira, embora publicado já no governo de Maria de Lurdes Pintassilgo). Foi este estatuto e o prémio remuneratório associado à “dedicação exclusiva” que profissionalizou a docência universitária, quase abolindo o pluriemprego que até aí era a norma e reduzindo o tempo de docência a 6 a 9 horas semanais, extinguindo o pagamento das horas letivas “extraordinárias”.
A gestão universitária foi regulada em princípios de 1976 pela Lei Sottomayor Cardia que terminou a anarquia autogestionária que vigorara desde a revolução de 1974. Na realidade, esta lei transferiu o poder académico de um pequeno número de catedráticos idosos que detinham a muito limitada autonomia universitária do Estado Novo para um número já apreciável de jovens regressados do estrangeiro com os seus doutoramentos.
O sistema educativo português recuperou nos últimos 40 anos o atraso que acumulara desde a segunda metade do século XVIII. Em frequência de licenciaturas, ultrapassamos mesmo os nossos vizinhos mais imediatos como a Espanha, França e Alemanha. Mantemos um atraso importante na frequência da via mais profissionalizante, os cursos TeSP que foram criados em 2014, mas ainda não foram plenamente aceites por alguns setores da sociedade (entenda-se alguns setores partidários) e foram algo desvirtuados pelos institutos politécnicos que os apresentam como uma via de acesso simplificado a licenciaturas.
A nossa oferta educativa superior tem, formalmente, a diversidade necessária para uma participação superior a 50% da coorte jovem. Na realidade, estamos longe desse desiderato por não serem reconhecidas diferenças significativas entre algumas licenciaturas politécnicas e universitárias. As diferenças são muitas vezes escassas e não são compreendidas pelos estudantes, pelas famílias e pelos empregadores. A situação é agravada pelo requisito de atividade de investigação para todos os docentes do ensino superior.
O sistema científico manteve um nível muito incipiente até à adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia e ao benefício dos fundos a que essa adesão deu acesso. Infelizmente, mantém ainda uma grande dependência desses fundos, o que cria um alto risco se os fundos atribuídos a Portugal diminuírem ou tiverem de ser desviados para outras áreas socialmente mais imediatas. O atual sistema científico está ainda limitado quase exclusivamente ao ensino superior, daí resultando um desempenho razoável em indicadores como o número de publicações por milhão de habitantes, mas com um baixo impacto económico.
Nos últimos anos, o sistema científico foi ganhando novas camadas institucionais, mantendo a dependência de base nas unidades de investigação quase exclusivamente dependentes do pessoal das instituições de ensino superior. E essa complexificação da malha institucional ocorreu sem aumento de despesa pública. A medida da despesa privada tem de ser vista com alguma prudência porque está demasiado ligada a benefícios fiscais sem que o tipo de atividade e os resultados sejam devidamente verificados. Pelas empresas que surgem nos primeiros lugares da despesa em investigação, podemos imaginar que se tratará, na visão mais benévola, do que poderíamos classificar como “desenvolvimento experimental”.
Resta-nos a esperança de que a iniciativa dos doutoramentos em ambiente não académico que nos foi imposta pela União Europeia no acordo de criação do Portugal2030 e a futura gestão nacional do sistema científico force a uma maior atividade de inovação social e tecnológica nas empresas produtoras de bens transacionáveis. Esta reconversão será algo dolorosa, mas poderá dar um maior reconhecimento social e daí uma maior sustentabilidade do sistema científico a longo prazo.
Apresentado no colóquio "50 anos de Mudança e Inovação: As Novas Universidades no Contexto da Democratização Portuguesa", Universidade do Minho, 17 de abril de 2024

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Uma agenda para o MECI, Ministro da Educação, Ciência e Inovação

A presente legislatura apresenta enormes desafios ao governo, um governo em maioria relativa tendo sempre de negociar votos. Um parlamento muito dividido e com três grandes bancadas em competição por uma oportunidade de ganharem com uma próxima eleição. Medidas estruturantes correm sempre o risco de serem adulteradas pela competição para a satisfação de fações do eleitorado numa visão de curto prazo. Dificilmente serão ultrapassadas as lógicas da popularidade imediata. Nesta situação, o governo está obrigado a uma gestão furtiva da realidade.
Depois da rotura financeira de 2011, passaram-se 13 anos de surpreendente sabedoria financeira, mesmo do lado parlamentar normalmente mais avesso a essa prudência. Essa fase parece ter terminado com o excedente orçamental de 2023, algo que já não se via desde os tempos do outro senhor, no pré-25 de abril. A euforia daí resultante abriu novas expectativas a todos os grupos sociais dependentes do estado. Ligando esta realidade à quebra do investimento público nos últimos anos, dificilmente será agora contida a competição das várias corporações, sempre invocando a melhoria de um estado social que chegou à rotura, especialmente visível na saúde e na educação. Acresce que as condições de segurança externa entraram numa época de incerteza como não se via nos últimos 80 anos.
Governar sem maioria parlamentar e numa conjuntura financeira muito estreita só será viável se a opinião pública compreender bem a realidade e a necessidade de medidas que, a prazo, produzirão um crescimento económico que virá a permitir então satisfazer as expectativas presentes. De facto, os bons resultados financeiros dos últimos anos só foram possíveis com impostos indiretos que substituíram os diretos e levando o investimento público a mínimos de sempre. Tudo isto num modo bem discreto que só se sente mais tarde. Mais recentemente o estado beneficiou das receitas “imprevistas” do pico de inflação que tocou a todos, deixando no seu rasto todas as justas reivindicações de reposição das posições anteriores. Estes artifícios esgotaram-se e o sucesso deste governo depende de encontrar um novo caminho que mantenha os eleitores adormecidos e os parlamentares imobilizados. Uma receita quase impossível.
Os desafios enfrentados na educação que se pretende universal até aos 18 anos são muito pesados. (i) Conseguir oferecer a todos um lugar em creche e pré-escola; (ii) melhorar a diversidade de percurso escolar de modo a satisfazer todos os alunos; (iii) discretamente, ajustar o percurso dos alunos de modo a recuperar as aprendizagens que se perderam nos últimos anos, segundo todos os estudos internacionais; (iv) melhorar a vida profissional dos professores de modo a que se foquem nos seus alunos e menos na burocracia escolar e no ativismo na rua; (v) repensar a transferência de competências para os municípios para assegurar a autonomia da gestão escolar sem que se agrave a dependência partidária. Tudo isto a conseguir discretamente sem a promessa de resultados imediatos que são impossíveis.
A configuração do governo procurou a ligação do ensino superior ao secundário, algo que sempre desagrada aos reitores e aos líderes do aparelho científico que sentem perder alguma influência. O sinal é que se pretende estimular a passagem do secundário ao superior com toda a necessária diversidade de percursos. Depois, a presença da Inovação significará a necessidade de melhorar o retorno económico da despesa pública com a investigação. Fica fora desta integração a formação profissional pré e pós-18 anos, mantendo-se os conflitos surdos com o setor educativo. A integração desta interface fica adiada, ainda que a premência desta ligação já se manifeste nas estratégias políticas de outros países europeus.
1. As condicionantes políticas
2. As condicionantes financeiras
3. As prioridades na Educação, 3-18 anos
4. As prioridades na Educação, pós 18 anos
5. As prioridades na Ciência
6. As prioridades na Inovação
1. As condicionantes políticas
Passamos há pouco de um Parlamento com uma maioria absoluta de apoio ao governo para um Parlamento muito balcanizado, com forte competição entre os dois grandes partidos da oposição e os seis partidos mais pequenos e quase irrelevantes na contagem dos votos a terem de fazer todos os dias prova de vida para não passarem à irrelevância definitiva. Recordemos o episódio de maio de 2019, da ameaça de demissão do então primeiro-ministro se fosse aprovada no parlamento a recuperação do tempo de serviço dos professores. Essa crise foi evitada pelo recuo do (então) único grande partido da oposição que receou ir para eleições com a vitimização do governo pela “irresponsabilidade financeira” da oposição. A rotura financeira de 2011 estava ainda muito viva na memória dos eleitores. Esta memória poderá não ser hoje suficiente para impedir a formação de “maiorias negativas” entre os dois grandes partidos da oposição. E a famosa linha vermelha que pretenderá isolar o terceiro maior partido corre sempre o risco de ser insuficiente para evitar o contágio se as sondagens derem alento a quem consiga usar o poder dos seus votos.
2. As condicionantes financeiras
Pesa ainda a enorme dívida pública e privada que foi acumulada no último meio século e, especialmente, com a resposta à crise financeira de 2008, uma resposta dita keynesiana e pretensamente recomendada pela Comissão Europeia. O superavit conseguido para as contas públicas em 2023, o primeiro depois de 1974, criou uma euforia despesista bem consolidada na campanha eleitoral de 2024 em que todas a reivindicações reprimidas no último decénio afloraram e obtiveram acolhimento dos partidos em competição eleitoral. Vinga hoje a convicção de que pode ser corrigida a contenção salarial do último decénio. No ensino básico e secundário, a comparação internacional (em fração do PIB per capita) mostra que os professores do ensino básico e secundário estão relativamente mal pagos no início da carreira, mas acima da norma nos escalões finais. Por isso a disputa se faz nesse terreno para garantir que quase todos cheguem ao topo para se reformarem nessa posição mais confortável. E, para estes professores mais velhos, a escola de hoje não tem grande semelhança à escola socialmente mais seletiva em que entraram há 30 ou 40 anos. Mesmo no ensino superior, onde não há ainda sinais de reivindicações salariais, os vencimentos perderam cerca de 50% do seu valor, se vistos pela paridade conseguida em 1979 com o judiciário. Em boa verdade, a docência no ensino superior cresceu desde então dez vezes, de 1800 para 18000 professores, enquanto o número de juízes também cresceu muito, mas é hoje de (apenas) 1800. Grosseiramente, os vencimentos dos docentes acompanharam a subida geral dos preços, enquanto os vencimentos dos juízes acompanharam o enriquecimento real do país (com um PIB per capita a duplicar, se medido a preços constantes).
Nas instituições estatais, o custo por estudante do ensino superior mantém-se razoavelmente alinhado com os nossos parceiros da OCDE com produto per capita semelhante. Já o custo para a educação não superior é um pouco mais alto. Este quadro mostra a dificuldade que os próximos governos vão ter para fazer alguma recuperação salarial de docentes (e investigadores) e para melhorar os sempre escassos orçamentos das universidades estatais. O mesmo se pode dizer da despesa pública com a investigação que hoje é quase totalmente canalisada para as instituições de ensino superior.
3. As prioridades na Educação, 3-18 anos
São bem conhecidos os problemas que têm sido apontados neste setor educativo, a qualidade das aprendizagens, a falta de docentes e a universalização da oferta de atendimento das crianças em creche e em pré-escolar. A pacificação da corporação docente poderá ser um pré-requisito para a resolução dos outros problemas, mas a sua resolução é ainda mais complexa.
A falta de professores é o problema mais óbvio e que, infelizmente, sendo totalmente previsível, não foi tratado em antecipação. Há muito que, para um jovem de 18 anos, a opção por uma vida profissional no ensino é colocada como último recurso. Ao contrário de outros países europeus, esta carreira profissional não é mais mal remunerada nem implica maiores riscos do que as alternativas. Mas a imagem pública dos professores não poderia ser pior. As notícias diárias são de permanente conflitualidade e de testemunhos públicos de péssimas condições de trabalho. Nenhuma outra profissão cultiva uma tal imagem pública e, contudo, facilmente poderemos identificar alternativas mais duras, inseguras e mal remuneradas. Nos próximos anos, não será possível ultrapassar esta imagem pública porque se trata de uma autoimagem muito sentida por uma maioria de professores, mas também pelo aparecimento de líderes sindicais que hoje disputam entre si a liderança de cadernos reivindicativos longos e complexos. A falta de professores foi agravada pela política de organização escolar de turmas mais pequenas, mesmo sabendo-se que isso contribui pouco para a melhoria das aprendizagens. Numa época de baixa demográfica, há uma oportunidade para diminuir o número de turmas, atenuando o efeito da escassez de graduados na formação de professores. Pelos últimos resultados estatísticos disponíveis, o rácio aluno por professor global no ensino público baixou de 10,9 (em 2014/15) para 8,6 em 2021/22. Deve-se notar-se que a média deste rácio na União Europeia está próxima dos 14 e que no Reino Unido e nos Países Baixos chega 18 ou 19. A simples baixa do rácio em Portugal criou uma necessidade da ordem de grandeza dos 28000 professores. Sabendo-se da dificuldade de renovação geracional de muitos professores, não há nenhuma razão para criar esta carência adicional. Isto era verdade, mesmo que não tivéssemos alunos sem professor ao longo de muitos meses, o que provoca o pânico nas famílias que se vêm obrigadas a procurar escolas privadas.
No ensino básico e secundário, a grande prioridade imediata deveria ser a recuperação da qualidade das aprendizagens que todas as avaliações internacionais mostram estar em perda. Tudo indica que as reversões e as “inovações” dos últimos 8 anos causaram danos que têm de ser recuperados. Agora, terá de se encontrar o caminho da recuperação com a mínima alteração regulamentar de programas e processos de avaliação externa (exames). A recuperação do impacto da pandemia em alguns grupos será já demasiado tardia, mas há necessidades permanentes de reforço do acompanhamento dos alunos com maiores dificuldades e será mais eficaz trabalhar com turmas maiores canalizando os recursos humanos dispensados para acorrer a esta carência. A recuperação da paz laboral é mais difícil. O pedido de “recuperação do tempo perdido” pelos professores durante a intervenção da Troika é compreensível, mas o seu custo em salários e, ainda mais, em reformas a cargo da Caixa Geral de Aposentações, tem claramente assustado os últimos governos. E a concessão desta pretensão irá também reforçar os pedidos de outras categorias profissionais, começando pela saúde e pela defesa e segurança.
4. As prioridades na Educação, pós 18 anos
No pós-18 anos só o ensino superior está sob a tutela do MECI, embora a fronteira entre o ensino superior e algum tipo de formação profissional se tenha esbatido nos últimos anos. Tem sido notada a injustiça social de canalizar mais financiamento público para os jovens que optam pelo ensino superior do que para aqueles que optam pela entrada imediata no mercado de trabalho. E uma política de imigração terá de atender também às necessidades de educação e de formação profissional dos imigrantes que na maioria são relativamente jovens. Na transição para a educação superior, estão abertas três opções, um curso TeSP (técnico superior profissional), uma licenciatura politécnica ou uma licenciatura universitária (inserida num mestrado integrado em alguns poucos casos). A diferenciação entre as licenciaturas universitárias e as politécnicas é pouco percebida por estudantes e empregadores, ainda que haja grandes diferenças porque diferentes são os candidatos que as escolhem. Os cursos TeSP deveriam ser vistos como uma via de entrada mais rápida no mercado de trabalho, mas são geralmente tratados como uma via adicional de acesso a licenciatura para candidatos que não atingiram o padrão escolar exigido.
A universidade do ancien régime era uma escola de formação de profissionais (Direito Canónico e Civil, Teologia, Medicina, ...). Na transição decorrente da Revolução Francesa, afirmaram-se duas vias. Na Alemanha, Humboldt protagoniza a construção da universidade de investigação que lhe dará a liderança científica e industrial até à 2ª Guerra e é também adotada nas grandes universidades americanas que tomam a liderança depois da Guerra. Na França, Napoleão está mais preocupado com os profissionais necessários à guerra e ao progresso material e as Grandes Écoles de engenharia mantêm até hoje um enorme prestígio social e impõem uma fortíssima seleção académica no acesso. Portugal seguiu, também nesta área, a cultura francesa, mas com um discurso intelectual de universidade – Torre de Marfim onde se cultivaria o conhecimento, independentemente da sua utilidade e da sorte dos graduados. Este discurso não se coaduna com a realidade, especialmente depois de adotarmos a chamada universalização do acesso ao ensino superior com mais de 50% da coorte jovem. Há geralmente acordo quanto à necessidade de oferecer um ensino superior muito diversificado, mas a realidade regulamentar aponta no sentido inverso. O grande desígnio desta legislatura deveria ser a criação de incentivos à diferenciação real dos percursos educativos e de uma maior transparência para que as famílias e os empregadores compreendam os objetivos e a utilidade profissional desses percursos educativos. Sim, o país precisa de uma forte estrutura científica, mas não pode esquecer o encaminhamento profissional da maioria dos estudantes do ensino superior.
A grande preocupação dos responsáveis das instituições estatais é a garantia de uma dotação orçamental crescente que permita a absorção de um número crescente de investigadores e as proteja da ameaça de uma queda demográfica a breve prazo. As instituições fora da corda litoral Braga – Setúbal já sentem a queda demográfica há duas décadas e aspiram a ter dotações garantidas e que os estudantes internacionais que consigam atrair para uma primeira inscrição sejam considerados para financiamento estatal. As queixas dos atrasos na obtenção de vistos para estudo são recorrentes e provavelmente difíceis de corrigir enquanto não houver uma política de imigração clara. De facto, muitos destes estudantes parece estarem mais interessados num visto do que num grau académico. Há 30 anos que se discute a adoção de uma fórmula de financiamento das instituições estatais e há sempre acordo quanto à necessidade de considerar o número de estudantes e alguns fatores de qualidade, mas o objetivo não tem sido fácil de concretizar. Muito recentemente, em 13 de março de 2024, houve o anúncio de uma nova fórmula que terá sido testada antes da sua publicação. A disponibilidade para aumentar as dotações de algumas universidades e de alguns institutos politécnicos terá satisfeito algumas ambições mais imediatas, mas não resolveu os problemas de base. Não é seguro que esta nova fórmula tenha mais sucesso do que a fórmula anterior de 2006 que nunca pode ser plenamente aplicada (nem seriamente considerada para efeitos da gestão interna das instituições). Algumas dúvidas mantêm-se em aberto. Deverão considerar-se todos os estudantes inscritos, independentemente da nacionalidade, residência ou frequência efetiva? O fator de custo por aluno deve corresponder à média estimada para todas as instituições ou deve atender às diferenças de dimensão do corpo estudantil ou à natureza do corpo docente (com professores em dedicação exclusiva ou em tempo integral/parcial)? Que fatores de qualidade devem ser considerados, como devem ser medidos e, posteriormente, auditados? Devem apoiar-se as mais débeis para a sua melhoria ou premiar as mais bem-sucedidas? Ao falar de prioridades deste MECI, não se podem omitir as melhorias legislativas que foram pensadas recentemente. Com um parlamento muito mais dividido, é prudente analisar bem o que pode ser assumido como objetivo atual e o que deve ser deixado para mais tarde. As carreiras docentes do setor estatal precisam de uma simplificação, mas é uma área que move muitos interesses e muitas oportunidades de protagonismo parlamentar. Talvez a primeira decisão seja sobre a manutenção de duas carreiras separadas para a docência e a investigação ou uma carreira única, mais flexível, que permita o ajuste às duas funções sempre muito intrincadas dentro do ensino superior. Poderá ser mais fácil encarar as instituições privadas, onde todos reconhecem a necessidade de um quadro geral de carreira académica que dê alguma dignidade e transparência às categorias docentes.
O RJIES, Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, prometia uma avaliação ao fim de cinco anos, um desiderato impossível porque nessa altura não se podia conhecer ainda o resultado da sua aplicação. Hoje conhecem-se muitos entorses que ele alimentou, mas, pela recente discussão pública, pelo que foi dito e escrito e pelo que nunca foi aflorado, não parece que o tema seja menos controverso e que haja ambiente político para o considerar. Um dos temas mais discutidos é o sistema de eleição dos reitores (e presidentes). Para este feito, o Conselho Geral transformou-se num colégio de grandes eleitores. Nos países onde existe um Conselho Geral como órgão de topo do governo de uma universidade, a grande maioria dos seus membros é escolhida por agentes externos, tendo assim uma verdadeira independência para exercer o seu mandato na interpretação pessoal do que será o interesse público, dentro da lei que é criada pelo órgão político competente. Não é esta a nossa experiência, nem poderia ser com membros eleitos pelas corporações internas que depois cooptam os membros externos de modo a não alterar o equilíbrio dos interesses internos. O CRUP e muitos intervenientes na discussão pública do ano passado favorecem uma eleição do reitor por um órgão interno ou com maior peso das corporações internas, deixando ao Conselho Geral outras funções consideradas menos relevantes. O risco de partidarização destas eleições aumentará muito para além dos sinais já existentes de listas de cor partidária razoavelmente visível. É esta a experiência espanhola de eleição do reitor pelo universo das corporações internas com ponderações pré-definidas. Tudo recomenda que a grande revisão do RJIES não seja tomada como prioridade imediata.
5. As prioridades na Ciência
Desde a adesão à CEE, depois União Europeia, Portugal soube utilizar os fundos disponibilizados para expandir o sistema nacional de ciência e tecnologia (SNCT). Uma medida comum do sucesso de um sistema académico de investigação é o número de artigos publicados e este indicador é encorajador. No último decénio, ultrapassamos não só os nossos parceiros do sul da Europa, Grécia, Itália, Espanha, mas também alguns países fortemente industrializados como a França e a Alemanha. Esta realidade merece a nossa auto-congratulação, mas também uma reflexão sobre a utilidade da estratégia que vem sendo seguida. O nosso sistema científico do ensino superior é dos maiores da Europa em número de investigadores por milhão de habitantes, embora o financiamento não tenha crescido ao mesmo ritmo e a precariedade de muitos alimente a dependência dos professores mais velhos e iniba a busca de caminhos de maior risco e inovação. Com este longo treino em dependência, não é de esperar que estejam preparados para assumir o risco quando finalmente (alguns) ganharem a autonomia com o provimento num lugar de carreira. Pode recear-se que, para alguns, a segurança finalmente assegurada seja mais o conforto de uma reta final desimpedida para uma reforma mais confortável.
Na formação doutoral, poderemos ter prolongado por demasiado tempo a estratégia de crescimento de uma base académica, atrasando uma política de efetiva entrada de doutorados no tecido empresarial. Neste quadro o sucesso em alguns indicadores pode esconder que outros países já ultrapassaram esta fase para exigir outro tipo de resultados. Com um SNCT demasiado voltado para dentro da academia, é legítimo recear pela sua sustentabilidade por várias razões.
(i) Nos últimos anos as condições de trabalho dos investigadores pioraram devido ao crescimento do sistema científico em número de investigadores e da criação de novas camadas institucionais sem um aumento da despesa pública (apesar de as finanças públicas terem atravessado um período de relativo desafogo).
(ii) A sociedade virá a pedir um maior retorno económico do investimento feito na ciência ao longo de muitos anos, com o risco de que os fundos, sempre escassos, sejam desviados para áreas do estado social.
(iii) A enorme incerteza quanto ao futuro da Europa em termos de segurança ou de um simples alargamento porá em risco o grande volume de fundos disponibilizados a Portugal nos últimos anos, criando uma situação a que o orçamento de estado terá dificuldade em responder.
O SNCT está baseado nas unidades de investigação ligadas às universidades estatais e, agora, também aos institutos politécnicos e universidades privadas. Estas unidades são quase totalmente independentes das hierarquias institucionais. Manteve-se por quase 30 anos um conflito latente entre os responsáveis políticos nacionais e os reitores por estes resistirem à contratação de todos os doutorados sem garantias de que o financiamento viesse a considerar algo mais do que os números de estudantes de graduação. Este modelo baseado em unidades de investigação autónomas foi criado no início da década de 1990, numa altura em que poucos reitores tinham um percurso científico digno de nota e a investigação estava longe das suas preocupações. Mantém-se, apesar de hoje todos os reitores de universidades estatais e privadas e também os presidentes de institutos politécnicos estarem plenamente cientes da necessidade de as suas instituições mostrarem um bom desempenho científica. Acresce que este divórcio entre a gestão do ensino e da investigação enfraquece a motivação para a contratação dos docentes e investigadores mais promissores e para criar as melhores condições de trabalho aos docentes e investigadores mais produtivos e internacionalmente competitivos.
Todo o edifício que foi muito útil no século passado, precisava de uma fortíssima intervenção de reconstrução, mas com todos os cuidados para preservar todas as suas funcionalidades e não criar descontinuidades. Também o processo de avaliação tem problemas graves, tendo mais as caraterísticas de um concurso de beleza (no conceito dos economistas) do que dar um bom ponto de partida para decisões de financiamento. Isto é muito mais grave hoje porque tem consequências automáticas na acreditação de cursos e de instituições. Se as pressões políticas do financiamento eram já insuportáveis, as pressões institucionais pelo receio das consequências na acreditação tornam a finalização do processo simplesmente ingerível. Esta crítica e antevisão pessimista não implicam que o processo de avaliação em curso deva ser interrompido. Terá de ser mantido, enquanto o seu desfecho é avaliado pelas suas consequências na viabilidade financeira das unidades (e laboratórios associados e todas as outras instituições que foram sendo criadas) e nas acreditações futuras. E estes próximos anos deverão permitir, com a comunidade, repensar o redesenho do SNCT.
6. As prioridades na Inovação
A experiência inicial da década de 1990 de desenvolvimento dual de um sistema científico académico e um sistema de inovação ou apoio tecnológico ao tecido industrial foi bem-sucedido. Os centros tecnológicos tiveram destinos bem diferentes, mas os bem-sucedidos deram ao país um excelente retorno ao investimento total. Com algum atraso, entramos depois na onda de apoio a startups baseadas no pessoal académico e em jovens graduados. É um caminho necessário que terá de ser avaliado a seu tempo. Entre nós como noutros países, a tutela da inovação tem oscilado entre a educação (e a educação superior) e a economia. A tutela mista da ANI, Agência Nacional de Inovação, não se tem mostrado uma boa solução. Raramente, se consegue um bom alinhamento de objetivos e de financiamento.
A ANI tem o estatuto de sociedade anónima, tendo como sócios a FCT pelo lado da educação e o IAPMEI pelo lado da Economia. Dois institutos públicos criam uma sociedade anónima para fugir ao controlo das Finanças, com o risco de uma menor transparência. Provavelmente, nenhum dos acionistas assume o objeto de intervenção da ANI como seu. Na realidade, temos dois ministros a dar instruções por entrepostas pessoas, sendo preciso um grande esforço para conseguir coerência e responsabilização política. Em alternativa, teremos uma ANI livre para definir os seus objetivos e conseguir uma dotação orçamental que lhe permita realizar a missão assumida.
O MECI irá provavelmente desenvolver uma política de inovação própria para influenciar as estratégias de investigação das instituições de ensino superior e das suas periferias. Podemos esperar que tenha êxito no reforço de uma perspetiva de prémio para os académicos que consigam aliar o reconhecimento do êxito no impacto académico internacional com o sucesso no impacto económico e social dos seus resultados académicos de maior nota. Mas isto exige uma ênfase diferente do processo de avaliação da ciência que se faz em todo o sistema de ensino superior, talvez se aproximando do que foi introduzido pelos ingleses com algum sucesso e também com um módico de controvérsia.
Campus Universitário da Maia, 4 de junho de 2024
José Ferreira Gomes

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Presidente do Colégio Universitário (APESP)

Não conseguirei evitar pôr neste cargo uma perspetiva pessoal do que são as universidades privadas em Portugal: Elas prestam um serviço público e estão por isso obrigadas a obter do Governo o reconhecimento do interesse público (Artº.13º, nº 1) e a renovar cada 10 anos este reconhecimento. E este reconhecimento “determina a sua integração no sistema de ensino superior”. É isto que queria aqui sublinhar. Tomarei esta integração como objetivo central deste meu mandato. A integração é hoje muito imperfeita, talvez por haver ainda preconceitos derivados dos anos de crescimento eufórico e nem sempre bem refletido. É tempo de ultrapassarmos esta fase porque os estabelecimentos atingiram agora a idade adulta e comportam-se como tal.
O diário espanhol Cinco Días[1] reportava recentemente o que via como um benefício da concorrência entre a universidade pública e a privada: Dos 3.613 mestrados oferecidos em Espanha só 875 eram de universidades privadas com um valor médio das propinas de 11.500€, enquanto as propinas médias no setor estatal são de 2.500€. Apesar de muito mais caros, um quarto da oferta total tem já quase metade do número de estudantes de mestrado. O número médio de estudantes em cada mestrado estatal é de 50, enquanto nas privadas é de 126. Esta manifesta preferência pelos mestrados das universidades privadas só pode resultar da perceção, confirmada pelas estatísticas oficiais do INE espanhol, de que os graduados do setor privado têm maior empregabilidade e melhores salários.
E o jornal Cinco Días escrevia ainda...
“Longe de ser um problema, a crescente competição das universidades privadas em relação às universidades públicas deveria servir como estímulo para ajudar a melhorar a qualidade do sistema educacional na Espanha e elevar os critérios de rigor e formação dos estudantes. O objetivo final, tanto das instituições públicas quanto das privadas, deve ser beneficiar não apenas os seus diplomados que pretendem diferenciar-se no mercado, mas também contribuir com prestígio e conhecimento para toda a sociedade espanhola.”
Globalmente, o número de estudantes nas universidades espanholas[2] quase não variou de 2000/01 para 2020/21, mas as universidades privadas cresceram de menos de 10% para mais de 20% do número total de estudantes. Cerca de 200.000 estudantes “transferiram-se” das universidades estatais para as privadas!
Portugal seguiu um caminho diferente. O ensino universitário privado cresceu aqui devido à incapacidade de o sistema estatal responder à explosão da procura estudantil por volta de 1990, numa época em que o ensino privado era ainda inexpressivo em toda a Europa Ocidental. Desde então, a oferta privada parece ter estabilizado em Portugal com uma cota de cerca de 20%, enquanto continua a crescer em países como a Espanha e a França ultrapassando aí esta nossa cota de mercado. Esta realidade é relativamente nova e não parece ter sido ainda bem assimilada pela opinião publicada e pelos decisores políticos. Em Portugal, o sistema educativo estatal está claramente a perder terreno no básico e secundário; no superior, a baixa das propinas no estatal não tirou estudantes ao privado. Pelo contrário, a cota de estudantes nos estabelecimentos privados tem crescido lentamente desde 2015. Temos de aceitar que haverá razões bastante sérias para que seja esta a opção dos estudantes e das famílias. E já não é a falta de vagas...
Apesar de quase todos estarem de acordo com a necessidade de aumentar a diversidade da oferta de educação superior, a regulação e os estímulos estatais apontam todos no sentido da uniformidade. Universidades e politécnicos, estatais e privados obedecem a normas comuns, são forçados a fazer acreditar os seus cursos na mesma agência e vão buscar financiamento a uma única entidade de financiamento da investigação. Na área do financiamento da investigação, o estado parece ter já desistido de estimular alguma diferenciação, mantendo concursos comuns e júris únicos para estabelecimentos universitários e politécnicos. Os estabelecimentos estatais e os privados concorrem no mesmo terreno de jogo, mas este tem estado bastante inclinado e ninguém duvida para onde correm as águas. O estado não tem sabido separar o seu papel de proprietário do papel de regulador de todo o sistema. Na área da acreditação, a Agência forma Comissões de Avaliação Externa, CAE, com algumas diferenças para cursos universitários e politécnicos, mas dificilmente se dirá que se caminha para a diversidade. Pelo contrário, poderá pensar-se que se caminha em sentido inverso, apenas dando tempo para que as instituições façam o seu caminho para o modelo único. As universidades estatais e privadas estão submetidas aos mesmos reguladores e o objetivo implícito é que adotem um mesmo modelo. O pedido ostensivo de que cada instituição defina a sua missão e a sua estratégia de longo prazo parece ser mais um sinal da má consciência política do que um objetivo real. De facto, não foram criados indicadores que possam estimular cada instituição a definir o seu perfil e a apresentar-se ao público como buscando a excelência nesse seu espaço de intervenção.
As universidades privadas atingiram hoje um estado de maturidade que merece registo. Da explosão inicial que todos (no setor estatal e privado) pensavam prosseguir sem qualquer limite, tiveram de atravessar a partir de 1996 duas longas décadas de emagrecimento (na cota de mercado). Retomaram depois um lento crescimento que parece ser de consolidação. Na comparação internacional com Espanha e França, pode esperar-se que esta consolidação prossiga na medida em que consigam responder melhor às necessidades dos estudantes. De facto, os estabelecimentos privados poderão ser mais ágeis a adaptar-se às mudanças na economia e no mercado de emprego e à flexibilidade da vida estudantil. O ensino superior estatal tende a fechar-se, reduzindo o número de professores convidados do meio profissional externo. Ao longo dos últimos anos, os profissionais ativos que davam uma pequena contribuição no ensino foram sendo dispensados. A Medicina é provavelmente o caso em que o contrário poderá ter ocorrido pela proximidade aos hospitais de base e porque a maioria dos docentes das áreas clínicas começam pela carreira hospitalar e só mais tarde transitam ou acumulam a carreira universitária. As universidades privadas tendem a manter um maior número de profissionais ativos. Esta caraterística que é vista pela A3ES, e pelo quadro legal vigente, como uma fragilidade pode trazer vantagens aos futuros diplomados na sua entrada no mercado de trabalho. Há espaço de melhoria da legislação e das orientações dadas aos membros das CAEs para equilibrar a componente mais académica e de continuidade do processo educativo com uma melhor exposição à realidade do setor de atividade em que o estudante pretende vir a fazer a sua vida profissional.
É muito importante notar que as universidades privadas não são escolas de ricos que pelas más razões ali foram parar. A sua cota de beneficiários da Ação Social é próxima da média das instituições estatais. Para muitos, a articulação entre o trabalho e o estudo só é possível nos estabelecimentos privados e, tendo experiência de vida profissional, escolhem formações que sabem ser-lhes úteis para o seu desenvolvimento profissional e pessoal. Para a maioria das áreas de educação e formação está aqui a razão do crescimento da cota de estudantes a optar pelo privado. Não há diferença para o que está a acontecer em Espanha e em França. Uma educação superior que recebe mais de 50% dos jovens precisa desta postura para os receber e encaminhar para um caminho que não seja a frustração e a emigração. Para ativos que regressam aos bancos universitários para abrir novas perspetivas de carreira, é também aqui que encontram um percurso mais adaptado às suas necessidades.
Haverá também espaço de trabalho para prestigiar a carreira dos docentes de universidade privada. Embora as condições contratuais devam continuar regidas pela regulamentação geral do contrato de trabalho, como já está a acontecer em várias universidades-fundação ainda que estatais, há aspetos de significado académico que devem ser regulados para dar densidade ao previsto na legislação e para dar sentido à integração de todas as universidades, estatais e privadas num sistema nacional de educação superior. Não aspiramos à opção espanhola de um sistema centralizado de acreditação de todos os docentes universitários (e são todos, de carreira ou não), mas uma regulação mínima daria um merecido prestígio a muitos docentes plenamente dedicados aos seus estudantes e à investigação.
Senhor Ministro, Senhor Presidente da APESP, termino dando-lhes a certeza de que tentarei trabalhar com todos os reitores das universidades privadas para que estas mereçam a plena integração no sistema nacional de ensino superior e confio que a APESP saberá acompanhar este esforço e que o Senhor Ministro estará disponível para nos ouvir e dar plenas condições para que isso aconteça a exemplo do que acontece na Europa.
Na posse como Presidente do Colégio Universitário da APESP
Lisboa e Culturgest, 13 de maio de 2024
[1] “Os benefícios da concorrência entre a universidade pública e privada”, Diário Cinco Días, 16 de maio de 2022. https://cincodias.elpais.com/hemeroteca/2022-05-16/
[2] https://www.universidadsi.es/mev-el-creciente-protagonismo-del-sistema-universitario-privado-en-espana/

sábado, 30 de dezembro de 2023

O Ensino Superior e o Desenvolvimento (o livro, FFMS)

Portugal está a perder «muitos dos seus melhores»
O país está a perder «muitos dos seus melhores» estudantes para a emigração e não apenas após a licenciatura. Já há muitos jovens a sair de Portugal quando acabam o secundário, alerta José Ferreira Gomes, reitor da Universidade da Maia. «Só um maior crescimento económico poderá inverter esta tendência, mas o país não parece ter acordado para esta realidade», defende nesta entrevista, o autor do novo livro «Ensino Superior e Desenvolvimento».
Quais são os grandes desafios que enfrenta o sistema universitário nacional?
Estando nós a caminho de ter 60% da coorte jovem a chegar ao ensino superior, o desafio é servir bem esta população e o país. Para isso, é necessário garantir uma grande diversidade de formas e de objetivos, sempre de alta qualidade. Esta qualidade deve ser avaliada por servir bem os objetivos dos jovens que o procuram. Para alguns, isso significa uma maior ambição académica. Para outros uma iniciação profissional pós-secundária, mais diferenciada que o ensino obrigatório.
As cotas de acesso ao superior para grupos mais carenciados da sociedade – que o Governo quer começar a testar já este ano - vão de facto garantir uma maior igualdade no acesso à educação?
A experiência proposta para este ano é realista, mas precisa de ser acompanhada no sentido de evitar oportunismo de alguns grupos e de verificar que a cota beneficiada corresponde a jovens com potencial que vão desenvolver no superior. Deve dizer-se que o ensino superior não é capaz de compensar as falhas do ensino básico e secundário ao abandonar muitos jovens menos motivados para a vida escolar e sem meios para pagar as explicações (muitas vezes com professores do ensino estatal). É preciso atacar o problema no acesso e acompanhar estes estudantes depois de entrarem nos cursos de sua escolha para decidir se a cota agora arbitrada é demasiado baixa ou demasiado alta). É também preciso que as escolas básicas e secundárias façam melhor o seu trabalho.
Com mais de 50% dos jovens a passar pelos bancos das instituições superiores, temos de nos preocupar muito mais com o seu espaço no mercado de trabalho, porque o custo social do desajuste seria enorme e está já à vista de todos.
O atual conceito de universidade, que procura responder às necessidades de desenvolvimento do país, começou com a revolução industrial. As universidades devem continuar a cumprir essa função, adaptando a sua oferta às necessidades do mercado?
O ensino superior sempre esteve focado no «mercado» porque era essa a preocupação das famílias, mesmo quando os estudantes pareciam desinteressados do seu futuro. Desde a idade média que as universidades formavam quadros para a administração eclesiástica e do estado, com uma Medicina em formato de profissão liberal. A recreação das universidades no século XIX, alarga o âmbito para dar atenção às ciências num ideal de busca do conhecimento puro, mas os graduados continuaram a preocupar-se com o seu espaço no mercado de trabalho. Hoje, com mais de 50% dos jovens a passar pelos bancos das instituições superiores, temos de nos preocupar muito mais com o seu espaço no mercado de trabalho, porque o custo social do desajuste seria enorme e está já à vista de todos.
As universidades nacionais continuam a ter uma baixa notoriedade nos principais rankings internacionais. O atual sistema de financiamento é em parte responsável por estes resultados? O que deve mudar?
O financiamento das universidades e institutos politécnicos estatais é quase exclusivamente histórico. Qualquer alteração vai dar ganhadores e perdedores e será muito duro para estes porque a despesa é essencialmente salarial e qualquer corte permanente exige o redimensionamento da instituição.
Um financiamento histórico não cria estímulos para a melhoria nem dá orientações para o desenvolvimento das instituições. Não dá estímulos para ensinar melhor nem para investigar mais! Da qualidade das aprendizagens não temos nenhuma medida direta, mas apenas perceções genéricas e sempre otimistas. Da quantidade da investigação académica temos dados e estamos na banda superior em número de investigadores nas universidades e em número de artigos publicados. Infelizmente, a notoriedade depende do impacto académico desses artigos e do seu impacto social e económico e nestes indicadores não saímos muito bem. Sim, temos de mudar o sistema de financiamento das instituições de ensino superior, clarificando bem as suas diferentes missões e reformar o sistema científico.
O financiamento das universidades e institutos politécnicos estatais é quase exclusivamente histórico. E isso não cria estímulos para a melhoria nem dá orientações para o desenvolvimento das instituições.
Faz sentido, que continuem a existir numerus clausus em cursos onde há carências de profissionais – como é o caso da medicina, que garante recursos valiosos num país em acelerado envelhecimento?
A Medicina não se ensina só em sala de aula. Se as salas de aula podem hoje crescer porque temos pessoal qualificado para a docência, a formação hospitalar depende da capacidade de acolhimento das estruturas hospitalares e de saúde extra-hospitalar. Esta capacidade nunca foi avaliada e por isso é hoje o principal espaço de conflito. O número de médicos que se formam anualmente não é baixo em comparação internacional, mas temos de nos precaver para um provável incremento da emigração face a uma situação económica que se tem degradado tornando cada vez mais difícil pagar salários competitivos aos médicos (como a outros profissionais com acesso ao mercado internacional).
Como podemos reter em Portugal os melhores alunos, garantindo assim que o investimento na sua formação serve o desenvolvimento do país?
Estão hoje a sair alguns dos melhores alunos logo no fim do secundário. Depois de completar a licenciatura, o mestrado ou o doutoramento, saem os mais ambiciosos, aqueles que estão dispostos a correr maiores riscos. O país perde muitos dos seus melhores. Só um maior crescimento económico poderá inverter esta tendência, mas o país não parece ter acordado para esta realidade. É mais compensador politicamente acudir às dificuldades imediatas do que investir para aumentar a riqueza futura. Sem isso aumentará a pobreza e a necessidade de lhe acudir.
A capacidade das nossas empresas para absorver o conhecimento produzido nas universidades é limitado (…). Esta transferência direta depende das grandes empresas e, em Portugal há poucas e são mal vistas.
A associação das universidades à indústria e às empresas pode ser uma solução para uma maior inovação e retenção de talento?
Sim, é desejável uma maior proximidade entre as universidades e as empresas. Os institutos politécnicos, se se mantiver a decisão política de terem uma missão diferente, terão também um papel importante, mas distinto. O primeiro meio para esta interação e para o benefício das empresas é pela absorção dos graduados que ali são empregados para desenvolverem todo o seu potencial. A capacidade das nossas empresas para absorver o conhecimento produzido nas universidades é limitado, mas os doutorados que entrem numa empresa têm de ir preparados para ali criarem valor que justifique a sua remuneração. Em todo o mundo, esta transferência direta depende das grandes empresas e, em Portugal, há poucas e são mal vistas. Mais recentemente, há a esperança de que as start up de natureza tecnológica poderão absorver doutorados e temos já experiências interessantes. Resta assegurar que essas empresas, quando bem-sucedidas, se mantenham com emprego em Portugal e há sinais de que isso é difícil.
Que impacto podem ter as universidades no desenvolvimento do país e das regiões, sobretudo para o interior do país?
O ensino superior não é capaz, só por si, de desenvolver as regiões em perda demográfica. É verdade que consegue fixar lá população e dinamizar a economia pela despesa desses residentes, ainda que temporários, mas isso representa um esforço, uma despesa do Estado ao financiar as instituições e das famílias que deslocam para ali os seus jovens estudantes. E a garantia de que estes se fixem nessas regiões é escassa se, em paralelo, não forem lançadas políticas de atração de empregadores. Temos poucos exemplos bem-sucedidos e demasiado limitados. Há um quarto de século que as instituições de ensino superior do arco «interior» de Viana do Castelo a Faro, assim como as fixadas nas regiões autónomas, dependem do sistema de números clausus que força estudantes de Lisboa, do Porto e do Minho a procurarem essas alternativas. O problema está bem identificado, mas não houve nenhuma política consequente e eficaz na criação de emprego nessas regiões.
José Ferreira Gomes, reitor da Universidade da Maia e ex-secretário de Estado do Ensino Superior e da Ciência. Autor do livro «Ensino Superior e Desenvolvimento», ISBN: 978-989-9153-17-2, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, Abril 2023 (https://ffms.pt/pt-pt/atualmentes/portugal-esta-perder-muitos-dos-seus-melhores)