sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Por um sistema binário de ensino superior

Sim, todos parece concordarem que Portugal precisa de um sistema binário de ensino superior. E no entanto, a natureza binária é sucessivamente enfraquecida, apesar das juras de fidelidade à velha ideia de Veiga Simão. Só uma caraterização simples e bem compreendida por todos pode salvar a desejável diversidade da oferta de ensino superior, habilitando a Agência de Acreditação a regular o sistema.
O tema do sistema binário de ensino superior voltou à discussão pública na sequência da revisão do RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior) e do alargamento das competências legais das instituições politécnicas para outorgarem doutoramentos e poderem assumir a designação de universidade politécnica. A reivindicação da outorga de doutoramentos é relativamente antiga como também o abandono da designação de “instituto politécnico”. Parece ser quase universal o consenso quanto à manutenção do sistema binário de ensino universitário e ensino politécnico, embora todas as reivindicações vão no sentido de esbater as diferenças entre as carreiras docentes e os cursos oferecidos. Será ainda possível caraterizar os vários tipos de ensino superior que justificam a existência de um sistema binário?
Não são consensuais as tentativas de caraterizar o setor politécnico por percursos educativos mais profissionalizantes ou vocacionais e por se interessarem por uma investigação mais aplicada ou dirigida para problemas concretos e imediatos. Muitos cursos desde sempre universitários são construídos em torno de profissões como a Medicina ou a Arquitetura. O crescimento do ensino superior e da investigação académica ali realizada levou os financiadores estatais ou privados a exigir resultados com maior retorno económico, esvaziando a ideia de que a universidade não se preocuparia com a utilidade da sua reflexão. Deveremos então abandonar a pretensão de oferecer percursos eductivos de natureza diferente?
Um jovem que termine o secundário pode hoje continuar o seu percurso escolar por uma de três vias, um curso TeSP (Técnico Superior Profissional), uma licenciatura politécnica ou uma licenciatura universitária. Deverá ser uma escolha livre, ficando ao gosto ou à “vocação” do jovem? Não é esta a realidade em nenhum país desenvolvido e também não é em Portugal, vingando uma motivação mais pragmática. Embora o gosto ou a vocação possam ser fatores relevantes, mais importante é a diferença de objetivos de quem chega ao ensino superior. Para alguns o percurso mais académico que lhes foi oferecido no secundário representou já um esforço a que dificilmente responderam e desejam entrar na vida ativa e ganhar autonomia económica o mais rapidamente possível. Para esses, o curso TeSP permite ocupar um posto de trabalho ao fim de três semestres, começando por um estágio realizado no 4º semestre do curso. E os três semestres de curso têm uma natureza mais técnica e de preparação próxima da profissão que escolheram. Serão em geral menos dependentes dos conteúdos mais abstratos de algumas disciplinas do secundário.
A opção por uma licenciatura politécnica sinaliza a intenção de entrada no mundo do trabalho ao fim de seis semestres (oito no caso da Enfermagem). E exige de forma mais explícita os conhecimentos adquiridos ao longo do secundário e deve valorizar a formação que visa o exercício de uma atividade profissional. Finalmente, uma licenciatura universitária ou um mestrado integrado são desenhados de modo a que o estudante aceite um tempo de formação mais longo de dez a doze semestres. Poderá sempre optar por abandonar o percurso educativo (ou suspendê-lo) no fim da licenciatura, mas a formação estará muito menos focada no exercício imediato de uma profissão.
O mestrado politécnico, se entendido como continuação de uma licenciatura profissionalizante terá a natureza de aprofundamento ou especialização dentro da área profissional respetiva. O mestrado universitário (ou a segunda parte do mestrado integrado) facilitará a inserção profissional e um aprofundamento científico que abra o caminho para um doutoramento na mesma área. Os mestrados, universitários ou politécnicos, podem ainda assumir a função de requalificação ou reorientação profissional para pessoas com um percurso profissional. Serão então peças de educação contínua desenhadas para adultos, normalmente mais curtos ou em regime pós-laboral e com pedagogias diferentes das usadas com jovens adultos em dedicação exclusiva ao estudo. Estes mestrados podem ainda ser decompostos em microcredenciais para que os interessados possam optar pelas mais relevantes ou acumular sucessivamente e ao seu ritmo de vida.
Maia, 4 de janeiro de 2025

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

RJIES, ainda o sistema binário

No Portugal de hoje, todos os que refletem sobre o ensino superior pensam que o sistema binário é o melhor para o país, para os estudantes e para os empregadores. Na realidade, temos hoje um sistema ternário porque, para além da opção entre uma licenciatura universitária e uma licenciatura politécnica, existe ainda a opção por um curso TeSP, Técnico Superior Profissional. O acordo é universal, mas os docentes politécnicos sempre sentiram o desconforto de se verem como uma segunda classe. Esta reação tem uma longa história e teve cedências sucessivas do poder político sem que tenha havido políticas de consolidação da natureza binária (ou ternária na última década). Que resta hoje da obrigação estatal de oferecer percursos diversificados para responder à enorme diversidade dos candidatos agora admitidos ao ensino superior e à diversidade ainda maior das atividades profissionais que os seus diplomados irão escolher ao longo da vida? Muito pouco.
Ao repensar a lei de organização do ensino superior português, parece haver consenso sobre a conservação de um sistema binário. E, contudo, todas as alterações vão no sentido de enfraquecer ainda mais esta diferenciação. A questão deveria pôr-se de forma mais aguda nas áreas de educação e formação como as engenharias que existem nos dois subsistemas, mas não parece ser o caso. A sociedade (empregadores) compreende mal as diferenças, talvez porque estas não têm sido bem marcadas, quer do lado politécnico, quer do lado universitário; as famílias e os estudantes escolhem o politécnico ou a universidade percebida como de maior prestígio, isto é com maior nota de acesso, embora a proximidade da residência possa ser mais importante face aos elevados custos de deslocação; os docentes têm carreiras cada vez mais próximas; a estratégia de investigação dos docentes vai procurar validação e financiamento à mesma entidade, a FCT; e aqui os concursos admitem projetos originários do ensino universitário ou politécnico, não sendo valorizada qualquer diferença entre ambos. Estaremos com esta prática a cumprir a lei que desde as origens tentava sugerir algumas diferenças? Haverá diferenças entre os dois subsistemas universitário e politécnico apenas porque isso é afirmado na lei de bases quando depois ninguém reconhece as diferenças?
Como chegamos aqui
Originalmente, na proposta de Veiga Simão de 1973, o ensino politécnico tinha apenas cursos curtos de três anos e não se falava em investigação. Aquando da criação efetiva do ensino politécnico no início dos anos de 1980, manteve-se o objetivo de cursos curtos e não tocou na investigação. As escolas mais antigas que foram integradas nos novos institutos politécnicos não tinham investigação. Tudo parecia em perfeita harmonia.
A primeira reivindicação foi a de alongar o percurso educativo do bacharelato de 3 anos para chegar à velha licenciatura de 4 a 6 anos. Os docentes vinham de um grau universitário e começaram a ter alguma experiência de investigação num dos antigos mestrados que eram o requisito de entrada na docência politécnica, e só muito raramente num doutoramento. Muito naturalmente, tentaram replicar os planos curriculares universitários que conheciam e sentiram-se limitados num ciclo curto. Foi assim que no início dos anos de 1990, começaram a oferecer “licenciaturas bietápicas” um eufemismo para algo equivalente a uma licenciatura universitária (pré-Bolonha), o curso universitário universal do século XX. Na fase de explosão da procura de finais dos anos de 1980, alguns institutos politécnicos bateram-se pela conversão em universidade por uma questão de prestígio, sempre com apoio das forças políticas regionais. E que poderia o governo da república oferecer a uma cidade do interior que tivesse alguma sonoridade e fosse mais barato que uma universidade? Alguns, poucos, decidiram começar a recrutar docentes doutorados ou a doutorar os mais jovens, embora outros o rejeitassem porque os docentes seniores eram apenas licenciados. Quando pediam financiamento para a investigação, os responsáveis políticos sugeriam que se poderiam associar às então novas unidades de investigação universitárias e concorrer aos financiamentos FCT.
A carreira docente do ensino politécnico manteve uma estrutura muito incipiente até 2009, com os docentes mais velhos sem doutoramento e, portanto, sem qualquer iniciação à investigação. Alguns mais novos aspiravam a fazer o percurso completo dos colegas universitários, enquanto lhes estava vedado o equiparável ao catedrático. Aquando da reforma dita de Bolonha em 2007, venceram a resistência inicial do então ministro Mariano Gago à oferta dos novos mestrados e conseguiram uma oferta educativa com as mesmas designações do universitário e os graduados passaram a ter total equivalência aos universitários. Um licenciado politécnico (pós-Bolonha) passou a ser obrigatoriamente aceite num mestrado universitário, apesar de se manter nos documentos legais a pretensão de que os ciclos de estudos politécnicos teriam uma intenção profissional, diferente dos universitários. A partir da mesma época tornou-se claro que a docência por doutorados era um importante fator de prestígio e deu-se uma corrida a doutoramentos, havendo apoios e dispensas de serviço para alguns velhos docentes. As universidades espanholas foram a opção de muitos, levando a que o número de portugueses a doutorar-se em Espanha nessa época chegasse a 100 vezes o número de espanhóis em Portugal. A nova carreira docente de 2009 deu aos docentes politécnicos um percurso quase homólogo do universitário. Para além de uma pequena diferença salarial na categoria de entrada, a maior diferença é a obrigação de aceitarem 6 a 12 horas semanais de lecionação, enquanto os colegas universitários apenas têm 6 a 9 horas. Note-se que esta diferença tem pouco impacto no número médio de alunos por docente em cada um dos dois subsistemas.
Restou a marca diferenciadora “politécnica”, a não acreditação de doutoramentos e as 6 a 12 horas. A batalha seguinte foi a autorização para a acreditação de doutoramentos, curiosamente conseguida na lei regulamentar antes de introduzida na lei de bases. Se ia haver doutoramentos, faltava a etiqueta de universidade. Tinham batalhado longamente pela designação de “university of applied sciences”, uma designação adotada em alguns países europeus para a designação de apresentação internacional e nunca na língua própria. As conquistas anteriores tinham sido tão fáceis que esta designação já parecia insuficiente e começou a defesa da designação de “universidade politécnica” à semelhança das universidades espanholas de prestígio e especializadas nas engenharias. Ficaremos por aqui? Dou já por adquirida a equivalência total das carreiras docentes com agregações feitas também no setor politécnico.
O ponto a que chegamos
O Ministério da Educação faz agora uma proposta de lei de revisão do RJIES (Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior) enquanto os vários partidos parlamentares preparam também os seus projetos de lei. Não vai ser um processo simples com a carga ideológica que alguns partidos tentam associar às opções da lei original de 2007. Todos concordarão em algumas limitações da lei atual, mas dificilmente haverá grandes acordos quanto à direção a imprimir nesta revisão. Corre-se o risco de a ideologia ser muito mais importante do que o interesse público. Poucos tentarão analisar o que deve ser alterado para melhor servir a população, estudantes e famílias. Menos ainda serão aqueles que tentarão fazer alguma análise comparativa internacional para escolher um caminho que sirva melhor esse interesse público.
Desde a sua criação, todos os incentivos práticos foram no sentido de atenuar a diferenciação, apesar das juras de fidelidade ao sistema binário feitas por políticos, presidentes, docentes e alunos. Os institutos politécnicos foram incentivados a melhorar a sua atividade no sentido da aproximação das universidades com a criação de grupos e unidades de investigação que se poderiam financiar na FCT pelos mesmos critérios e com os mesmos painéis de avaliação das universidades. Mais tarde, incentivaram a sua participação em doutoramentos em associação com universidades portuguesas (e até com estrangeiras se houvesse alguma dificuldade com as portuguesas). O destino final previsível foi a autorização para criarem os seus próprios doutoramentos. E o critério legal de competência investigativa para acreditação de um doutoramento continua ainda a ser incompreensível ao falar-se em unidades de investigação próprias. Mas também é aceitável uma unidade supostamente multidisciplinar, ainda que cientificamente muito frágil em todas as disciplinas, ou então associações de instituições, mesmo antes de estar demonstrada a coesão dessa associação e, especialmente, o ambiente que cada aluno de doutoramento vai experienciar. Mais grave, a responsabilidade académica pela qualidade do doutoramento recai num conselho científico onde o conjunto de membros ativos na investigação pode ser ultraminoritário. No caso de associações o escrutínio científico furta-se a cada uma e a todas as instituições.
Nunca houve qualquer acordo sobre o tipo de investigação a promover no setor politécnico, usando-se termos como “investigação aplicada” e “investigação orientada” totalmente vazios de sentido legal ou de significado consensual na linguagem comum em ciência. O primeiro governo António Costa ainda tentou alargar o conceito de I&D do Manual de Frascati da OCDE, “incluindo um leque alargado de atividades de investigação derivadas da curiosidade científica a atividades baseadas na prática e orientadas para o aperfeiçoamento profissional”, mas rapidamente abandonou a ideia pela dificuldade de a fazer aceitar pela comunidade politécnica.
Chegamos assim a um ponto onde temos licenciaturas e mestrados com ligeiras diferenças na definição legal, mas um terceiro ciclo, o doutoramento, com uma única definição de conceito, ainda que possa escapar à regulamentação quando decorra em ambiente não académico. Deve ser claro que esta realidade legislativa não pode guiar a A3ES na imposição de uma diferenciação entre o que se espera de um docente e dos ensinos universitário e politécnico. Só podemos esperar que o sistema politécnico continue a deslizar para uma aparente imitação do universitário. Digo aparente porque, a realidade, pode ter enormes diferenças. Pensemos em cursos de engenharia de uma dada especialidade, um (A) numa das universidades mais procuradas de Lisboa ou Porto, e o outro (B) num instituto politécnico dos menos procurados pelos candidatos. Entre estes dois extremos poderão encontrar-se todos os graus intermédios, em universidades ou institutos politécnicos. A instituição (A) vai receber estudantes com muito bom desempenho nas disciplinas centrais do ensino secundário, provavelmente com classificações superiores a 16 em Matemática e Física. A instituição (B) vai receber poucos ou nenhum candidato selecionado pelo concurso nacional de acesso e terá estudantes com percursos anteriores em cursos TeSP, maiores de 23 anos ou admitidos por outros concursos locais. A grande maioria destes terá uma matemática e uma física a nível pouco superior ao do nono ano. O sucesso académico nas duas instituições será provavelmente semelhante, com as instituições a serem consequentes com a sua política de acesso, ajustando a ambição dos cursos à realidade dos estudantes admitidos. A enorme diferença estará nos objetivos propostos em cada uma das instituições para os seus licenciados. Compreensivelmente, na instituição (B) raramente se irá além da matemática e física do 12º ano.
Não ponho a questão da utilidade social, para Portugal, de cada um dos cursos de engenharia. O que deve ser evidente é que as competências dos diplomados nos dois cursos são muito diferentes. Ao emitirmos o mesmo diploma nos dois casos, estamos e desvalorizar o próprio diploma pela sua menor utilidade no momento do recrutamento.
Como se define um sistema binário
A lei de bases de reforma do sistema educativo de 1973 declara que “O ensino superior é assegurado por Universidades, Institutos Politécnicos, Escolas Normais Superiores e outros estabelecimentos equiparados.” E ainda que “1. Os estabelecimentos universitários conferem os graus de bacharel, de licenciado e de doutor. 2. Os Institutos Politécnicos, as Escolas Normais Superiores e os estabelecimentos equiparados conferem o grau de bacharel. 3. Aos graus de bacharel e de licenciado, quando incluam determinados grupos de disciplinas, podem corresponder títulos profissionais.“ Não há tentativa de descrever o tipo de ensino que seria oferecido em cada tipo de instituições.
Desde então, as leis de bases e as leis subsequentes tentam explicitar com pouco sucesso o tipo de ensino e de investigação no setor universitário e no setor politécnico. E podemos recorrer aos chamados descritores de Dublin que poderão ajudar, mas também são suscetíveis de interpretação ambígua por não iniciados. Possívelmente, o mais eficaz será fixarmo-nos na duração do ciclo ou ciclos de estudos que deve facilitar à entrada no mercado de trabalho e construir a partir daí os percursos escolares que melhor poderão levar a esse resultado, à plena aptidão para entrar no mundo do trabalho na melhor posição possível.
A um jovem que tenha terminado o ensino secundário, é hoje proposta a escolha entre três percursos, (i) um curso TeSP, (ii) uma licenciatura politécnica e (iii) um mestrado integrado ou uma licenciatura universitária seguida de mestrado. Para algumas áreas mais procuradas, a escolha é imposta pelo desempenho escolar do candidato. Para a maioria das áreas a escolha é livre e depende da disponibilidade do jovem para continuar um percurso escolar menos ou mais longo na dependência económica da família. No primeiro caso um estudante de TeSP que poderá ter algumas fragilidades no ensino secundário, é proposto um percurso de 3 semestres, seguido do estágio de um semestre já num posto de trabalho real. O plano curricular e as propostas de conteúdos terão de ser tais que o estudante se adapte rapidamente ao posto de trabalho, seguramente com uma formação estreita e relativamente pouco flexível. No segundo caso, um estudante de licenciatura politécnica terá um percurso de 6 semestres que lhe permite uma formação mais alargada e aprofundada para uma melhor compreensão dos problemas que vai enfrentar no posto de trabalho e uma maior flexibilidade para eventuais mudanças de percurso profissional. Por fim, o estudante que opte por um mestrado integrado de 10 a 12 semestres ou por uma licenciatura seguida de mestrado, estará disponível para uma formação inicial mais teórica ou desligada da realidade do posto de trabalho a que aspira e terá provavelmente mais flexibilidade para ajustes posteriores do seu percurso profissional.
Esta descrição refere-se aos ciclos de estudos de formação inicial de jovens adultos. A formação ao longo da vida de pessoas com experiência profissional poderá envolver a frequência de ciclos de estudos de TeSP, licenciatura, mestrado ou doutoramento, mas estes deverão ser organizados com propostas curriculares diferentes e com pedagogias adaptadas a adultos. Particularmente, quer as universidades, quer os politécnicos poderão desenhar mestrados para este público, o que é hoje quase inexistente em Portugal. O mesmo se diga para os doutoramentos, podendo adultos com experiência profissional procurar uma especialização de alto nível com um doutoramento que será normalmente de índole profissional avançada. Mais do que definir o tipo de ensino e os seus objetivos, deixa-se aos docentes e à instituição de ensino superior a definição detalhada do percurso e dos objetivos de cada etapa do trabalho proposto para que os grandes objetivos sejam atingidos ao fim do tempo prescrito. Neste quadro em que o ciclo de estudos é caraterizado pelos grandes objetivos finais, deveremos corresponsabilizar a instituição de ensino superior e também o candidato ao acesso pela preparação necessária para o seu início e sucesso. Isto significa que o processo de seleção dos candidatos a cada ciclo de estudos em cada instituição deverá ser definido pela instituição com eventual imposição de uma preparação adicional do candidato, de um curso propedêutico (sem a admissão garantida) ou alguma formação adicional extraordinária no período inicial de frequência, depois de admitido.
Neste modelo de definição do sistema binário (ou ternário), cabe à Agência de Acreditação a certificação de que os pontos críticos da admissão dos candidatos e as competências finais para entrada num posto de trabalho são devidamente geridas pela instituição de ensino superior. Mais do que a avaliação de pré-requisitos e de procedimentos, a Agência deverá certificar os resultados, as competências para entrada num posto de trabalho e a boa preparação inicial para admissão ao ciclo de estudos e sucesso subsequente.
Não poderemos fugir aqui do comentário à obrigação de investigação dos docentes que hoje é quase universal para docentes de licenciatura, mestrado e doutoramento, do setor politécnico ou universitário. Para estes ciclos de estudos, estão definidas percentagens de docência por docentes de carreira que se presume satisfazerem mínimos apropriados de desempenho na qualidade do ensino e da investigação. A docência remanescente deverá ser feita por especialistas, incluindo profissionais experientes e destacados pelo reconhecimento do seu exercício profissional. Para cursos TeSP, exige-se docência competente nas áreas respetivas e uma grande proximidade do exercício profissional para as unidades curriculares de índole técnica.
Quanto vale o sistema binário atual
No sistema binário atual há diferenciação, pelo menos formal, das instituições, dos cursos oferecidos e da carreira dos seus docentes. A realidade é que qualquer destes três aspetos foi muito enfraquecido ao longo dos últimos decénios. Começando com a criação de institutos politécnicos, foi rapidamente permitido às universidades já estabelecidas a criação de unidades orgânicas com a natureza de escolas politécnicas. Aquando da integração da formação em enfermagem no ensino superior, em 2007, a norma foi serem integradas em institutos politécnicos quando existentes na mesma localidade ou em universidades quando tal condição não fosse satisfeita. Em Lisboa, Coimbra e Porto, o governo de então não teve força política suficiente para aplicar aquele princípio e manteve as escolas de enfermagem não integradas até que a sua exigência de integração nas universidades está agora a ser satisfeita. Por este princípio, outras escolas politécnicas dos respetivos institutos poderão requere a sua integração nas universidades locais. Esta realidade traduz-se em que um licenciado ou mestre em enfermagem poderá ter um diploma emitido por uma universidade ou por um instituto politécnico. O mesmo acontece, por exemplo, com um licenciado ou mestre numa engenharia sem que haja nenhuma diferenciação na inscrição numa ordem profissional. E as duas ordens ainda existentes perderam a sua diferenciação em função dos percursos académicos.
Concluímos que nunca houve a preocupação de que o diploma de graduação que vai ser apresentado ao empregador refletisse a natureza do percurso académico. Mesmo muito descaraterizado, o sistema binário atual oferece uma escolha em todo o país. Os alunos com perfil mais académico mais inclinados para um percurso académico mais longo optam pelo universitário; aqueles que preferem a rápida entrada no mercado de trabalho procuram o politécnico, em licenciatura ou curso TeSP. Infelizmente, o percurso TeSP é visto por muitos institutos politécnicos como um canal adicional de acesso a licenciaturas para os candidatos que não satisfaçam os requisitos mínimos de acesso. Não só permite um canal adicional como pode permitir ultrapassar algumas disciplinas iniciais da licenciatura que representariam maior desafio.
Esta realidade transparece na grande percentagem de diplomados TeSP que prosseguem estudos, muito maior do que em Espanha ou França onde o mercado de trabalho é o destino imediato dominante e o valor do curso é bem percebido pelos estudantes, pelas famílias e pelos empregadores.
Que vai mudar com o fim do sistema binário
No imediato, apenas mudam as condições de carreira dos docentes, um pequeno acerto na remuneração dos professores adjuntos e uma redução do período letivo de 12 para 9 horas semanais. Como o rácio docente/discente já não reflete este maior esforço docente, o aumento de custos será pequeno. As atuais diferenças de custo entre cursos similares em universidade ou instituto politécnico são mais o resultado de o pessoal docente universitário ser mais velho e haver mais docentes no topo da carreira. A diferença entre os custos unitários dos estudantes no universitário e no politécnico refletem mais as diferenças de posição na carreira que tenderão a esbater-se nos próximos anos com a renovação do corpo docente e as promoções. Deve ser claro que vamos ter um sistema de ensino superior muito caro na utilização de recursos humanos porque nenhum país impõe que todos os docentes de todas as instituições de ensino superior sejam investigadores ativos. Utilizar mais docentes, significa que, tendencialmente, se vão manter salários comparativamente muito baixos e que o financiamento da investigação terá de ser repartido por mais aspirantes a investigador. Qualquer destas limitações é já hoje sentida. Na comparação entre carreiras especiais da função pública, os académicos perderam já uns 50% desde 1979. E é bem conhecida a dificílima gestão financeira da FCT sempre dependente de alguma sobra da execução do Orçamento de Estado ou dos fundos de Bruxelas. Teremos um ensino superior caro, mas de baixos salários e mal financiado na investigação.
Mais do que diferenças no desenho curricular, a diversidade da oferta atual é induzida pela grande diversidade na formação prévia dos alunos. A maioria daqueles que não passaram pelo Concurso Nacional de Acesso tem falhas em áreas disciplinares importantes que forçam que o curso superior que frequentam se ajuste, especialmente quando a maioria dos seus alunos está nestas condições. Com o fim do sistema binário, aumentará o esforço para que todas as licenciaturas pareçam semelhantes, mas isto não será novidade porque a A3ES já hoje não tem norma habilitante legal para impor uma grande diferenciação. As diferentes culturas são repassadas pelas Comissões de Avaliação Externa, CAE, com docentes dos respetivos subsetores. Deverá esta prática ser mantida se for ainda mais descaraterizado ou terminar formalmente o sistema binário? Se for abandonada e as CAEs forem formadas por docentes experientes, quer sejam do universitário, quer sejam do politécnico, regressarão as queixas de que estão as grandes instituições, leia-se universidades, a tutelar as mais pequenas e mais frágeis. Na acreditação de doutoramentos vai haver certamente queixas se, como será de esperar, todos ou a maioria dos membros das CAEs forem recrutados nas universidades com doutoramentos mais bem estabelecidos. Todas as licenciaturas parecerão iguais, mantendo-se as grandes diferenças resultantes das escolhas dos candidatos. Nos grandes centros do litoral, manter-se-á uma procura pelas instituições com maior prestígio embora a perceção de prestígio pelos empregadores continue a ser mais suave do que, por exemplo em Espanha. A França mantém enormes diferenças de prestígio entre as universidades massificadas e as muito seletivas Grandes Écoles de engenharia, medicina e negócios e o sistema de concurso para a admissão nestas continua a manter uma forte diferenciação.
À laia de conclusão
Ainda valerá a pena lutar na defesa do sistema binário? Na configuração política atual, dificilmente poderá essa luta sair vitoriosa. Ficará para a história como um último esforço para defender o interesse público com um sistema que devia ter sido mantido e muito melhorado. No passado, a natureza binária foi sendo enfraquecida progressivamente com pequenos passos tendo como fim nunca expresso um sistema unitário de ensino superior. Temos hoje um ensino básico e secundário com um relativamente baixo índice de abandono precoce, mas com maus indicadores de resultados. Em comparação internacional (OCDE), os indicadores de “literacia”, de “numeracia” e de “resolução adaptativa de problemas” da população adulta, mesmo da mais jovem, são assustadores, ficando Portugal no último lugar. A indicação mais chocante do recente relatório oficial para Portugal foi que, na literacia, os adultos com ensino superior em Portugal obtiveram resultados inferiores aos dos adultos com ensino secundário na Finlândia . Espera-se que estes resultados tenham servido de alerta forte para os responsáveis, depois de os últimos estudos PISA terem apontado no mesmo sentido.
A maioria dos países tem sistemas de ensino superior diferenciados, sendo essa diferenciação bem percebida por candidatos, famílias e empregadores. O nosso modelo tende para um tipo único de instituições com um corpo único de docentes e apenas os cursos TeSP marcam uma opção diferenciada de percurso (inicial) no ensino superior. Esta realidade cria um sistema muito caro e mau por não servir a diversidade estudantil. Não serve os mais ambiciosos (e mais capazes) que deveriam ser desafiados com um percurso academicamente competitivo aos melhores níveis internacionais. Não serve os candidatos mais pragmáticos que procuram uma rápida entrada no mercado de trabalho porque são aliciados a prosseguir num percurso demasiado longo. Não serve a sociedade porque oferece um perfil único de formação, pelo menos na aparência. A única fonte visível de diferenciação provém do Concurso Nacional de Acesso, enquanto a procura estudantil se mantiver elevada, o que tende a diminuir no futuro próximo.
Desistindo-se de um sistema binário (ou ternário com a inclusão dos cursos TeSP), resta a esperança de que um sistema com (i) um único tipo de instituições e (ii) um único tipo de docentes ainda (iii) ofereça um maior desafio para os estudantes mais ambiciosos academicamente e (iv) uma maior proximidade à prática profissional para os estudantes mais pragmáticos nos seus objetivos de formação. Poderá esperar-se que também se consiga um modelo de avaliação docente que (v) estimule uns a uma maior proximidade dos estuantes e (vi) outros a uma maior competitividade internacional. A nossa história dos últimos decénios não é promissora em qualquer destes possíveis canais de diferenciação, mas podemos sempre alimentar alguma esperança.
Maia, 24/jan/2025
Publicado em O Observador, 25 de janeiro de 2025
José Ferreira Gomes, Reitor da Universidade da Maia, Secretário de Estado do Ensino Superior no XIX e também da Ciência no XX Governo Constitucional

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Assim elegi o chanceler de Oxford

No final de novembro foi anunciado que o novo chanceler da Universidade de Oxford para um mandato de 10 anos seria Lord Hague of Richmond. Tive a honra de ser um dos 23000 votantes e de fazê-lo pela primeira vez por ser a primeira eleição via internet. A minha qualidade de aluno de doutoramento em Oxford nos idos de 1970 deu-me este direito que exerci com muito prazer. A eleição decorreu em duas etapas, passando à segunda volta cinco candidatos. Lord Hague, ex-Presidente da Câmara dos Comuns e ex-ministro dos estrangeiros, conservador, venceu nesta segunda fase vários ex-políticos e duas presidentes de colégio em Oxford. Um corpo eleitoral tão vasto tem direitos eletivos para o chanceler e para o Professor de poesia, este escolhido para um mandato de quatro anos desde 1708.
Na realidade o poder executivo de topo pertence ao vice-chanceler que é escolhido por um pequeno search committee, por sua vez escolhido pelo Conselho, um órgão de governo de 25 elementos onde se incluem 4 externos e dois alunos. O Vice-chanceler preside a este Conselho que detém o poder real. Na realidade o poder está muito descentralizado pelos colégios que são os detentores do enorme património que faz andar a Universidade.
Porque votei Hague? Em quem havia de votar se da multidão de candidatos na primeira fase não conhecia nenhum. E dos cinco que passaram à segunda fase, só conhecia dois nomes de políticos com visibilidade internacional. Chegou-me bastante informação sobre os candidatos, extensos currículos e propostas de boas intenções. Vários currículos denotavam um percurso académico e de gestão académica em colégios de Oxford ou na presidência de outras universidades britânicas, mas isto não era suficiente para que eu julgasse conhecê-los. Dos percursos políticos, não conhecia muito mais, mas os nomes eram familiares. Tive de escolher entre um dos familiares!
O meu voto não é, na realidade muito importante porque o Chanceler é uma figura de representação sem poder real no funcionamento da Universidade. Esta é de facto uma federação de colégios cujos interesses e visões estratégicas se encontram no todo-poderoso Conselho.
Na proposta do Ministro da Educação, Ciência e Inovação, MECI, para a revisão do RJIES (Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior), o reitor (ou presidente de politécnico) é eleito por sufrágio universal ponderado, onde os interesses gerais (externos à universidade ou politécnico) são representados pelo voto dos antigos alunos com um peso mínimo de 25%. Muitos antigos alunos sentirão uma grande honra em votar como eu em Oxford, mas não terão razões mais fortes para escolher A ou B do que eu tive em relação a Oxford.
Nos Estados Unidos, a grande maioria das universidades, e das universidades de grande prestígio internacional, são propriedade dos estados e têm um Conselho de Curadores que gere de facto a universidade. Assim se mantém um bom distanciamento do poder político de turno, mesmo com curadores nomeados pelo governador do estado e com o parlamento estadual a interferir frequentemente na vida da instituição ao votar a sua dotação orçamental e ao forçar decisões ao gosto das ideologias políticas dominantes. Os mandatos dos curadores são normalmente longos, podem ser de 10 anos, e as nomeações são desfasadas para que o órgão mantenha memória. E, obviamente, é este conselho de curadores que escolhe livremente o reitor da universidade. Se em Oxford há dois estudantes num Conselho de 25 membros, nos conselhos de curadores norte-americanos há normalmente um.
A experiência com os conselhos gerais das instituições portuguesas funcionou mal, como fora previsto. Poderiam ser melhorados mudando a forma de escolha dos seus membros. Prefere-se a revolução, começando uma nova experiência que convidará nova revolução num futuro não muito distante. Tal como o miniparlamento constituído em conselho geral atual não podia manter-se muitos anos, também me atrevo a prever que a vida do novo sistema eletivo não chegará aos 17 anos de idade do anterior. E a escolha não é do MECI. Parece haver um certo acordo generalizado na transição para este sufrágio universal ponderado que foi bem testado em Espanha nos últimos quarenta anos. Ninguém se terá perguntado se queremos adotar o domínio partidário ali vigente e que vai agora ser reforçado em Portugal com grande entusiasmo, mesmo dos que sabemos já virem a ser os perdedores.
Maia, 25 de dezembro de 2024

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

A Novíssima Agenda Educativa

Nos anos mais recentes, tivemos notícia da queda de Portugal nas avaliações internacionais da aprendizagem dos alunos. Depois da pandemia tivéramos a boa notícia de que, mesmo sem aulas presenciais, tudo correra bem. Isto foi a verdade oficial até chegarem as comparações internacionais que mostraram que todos os países tinham tido impactos negativos e que Portugal, com um período de encerramento das escolas muito longo, tinha piores resultados. Programas de recuperação foram anunciados, mas todos os sinais vão no sentido de mostrar que o seu sucesso é muito limitado. Em 2023/24, dezenas de milhar de alunos estiveram sem professor de algumas disciplinas durante todo o ano escolar. A realidade da falta de jovens professores para compensar as aposentações dos mais velhos irrompeu como grande surpresa, ainda que estivesse anunciada há bastantes anos. Note-se que isto acontece enquanto, no último decénio, as escolas secundárias públicas perdem 26 mil alunos e as privadas ganham 8 mil. E que o ganho das escolas privadas neste decénio não se dá na via regular (ou científico-humanística) dirigida à preparação do acesso ao ensino superior que se mantém quase constante.
No ano de 2022/23, a percentagem de alunos da via científico-humanística do ensino secundário a frequentar escolas privadas foi de 11% na média nacional, com 20% na Grande Lisboa e na Área Metropolitana do Porto; em Lisboa, cidade e concelho, chegava a 30%. Para os alunos da via profissional no setor privado, a média nacional chega a 41% e é de 64% para os “cursos de aprendizagem”, “planos próprios” e “CEF”, chegando esta última a perto de 90% na Região Norte. Dez anos antes estas percentagens eram de 21% e 6,5%, com 12% para a Região Norte. A realidade é que a escola pública segurou os alunos da via científico-humanística, enquanto excluía aqueles que optavam pelas vias profissionalizantes. A bandeira política de defesa intransigente da "escola pública" como escola inclusiva e promotor social interessa apenas para a via mais académica focada na preparação para o ensino superior. Parece que o valor social da "escola pública" diminui à medida que nos afastamos da via mais académica ou que envolvemos jovens socialmente mais frágeis. De facto, a defesa de uma "escola pública" inclusiva, exclui os mais frágeis. A avaliação das políticas educativas seguidas no ciclo político de 2015 a 2024 permite discernir (i) um primeiro objetivo de reduzir o conteúdo curricular e fazer desaparecer os exames no ensino básico e secundário e (ii) um segundo objetivo de garantir o eterno crescimento quantitativo do ensino superior e da ciência. Num primeiro tempo, estes objetivos aparecem como muito benevolentes para estudantes (e jovens cientistas) e também para os docentes (e investigadores seniores) e para as lideranças das respetivas instituições educativas. Ao fim de quase uma década, a bondade destas políticas é posta em dúvida por todos os parceiros, pelos estudantes que anteveem um futuro de frustração no mercado de emprego, e pelas instituições cujos líderes começam a sentir o desencanto de um caminho fácil, mas sem destino. Até a chegada da pandemia de COVID19 foi saudada como (iii) uma oportunidade para acelerar uma benéfica transição tecnológica definitiva da vida em sala de aula que foi aclamada pelos impactos positivos que teria na aprendizagem. Infelizmente, todas estas expectativas chocaram rapidamente com uma realidade bem diferente, caindo por terra o mundo virtual que fora construído.
Nas comparações internacionais, a aprendizagem no ensino básico iniciou uma trajetória descendente depois de uma subida sustentada ao longo de perto de 20 anos. Dificilmente encontraremos outra causa senão as alterações no currículo e o abandono de exames considerados como relevantes por alunos, pais e professores. Apesar de termos uma despesa pública elevada (quando medida em percentagem do PIB), os resultados são desanimadores.
A falta de professores a algumas disciplinas foi recebida como grande surpresa depois de ter sido reduzido o número de alunos por turma e de terem sido extintos alguns contratos de associação com escolas privadas, o que levou ao desemprego professores pela falência de entidades privadas. E, convém lembrar que estas medidas foram justificadas pelo excesso de capacidade do setor estatal, mesmo aceitando que o custo para o estado iria subir porque o custo por turma contratada era menor do que o custo de uma turma no sistema estatal. Temos agora de enfrentar a real falta de professores. A imagem da profissão é muito negativa pela presença quase diária nos meios de comunicação social, jornais, rádio e TV, do desencanto dos profissionais e, principalmente, dos seus responsáveis sindicais. Neste ambiente, quem poderá optar por se juntar à classe, mesmo sabendo que não há desemprego nem risco de extinção do posto de trabalho. E que os salários são, no início da carreira, um pouco menores do que a média europeia, medida pelo PIB per capita, mas que no fim da carreira são confortavelmente mais elevados.
Seguramente, a vida nas escolas estatais é dificultada pela primazia dos direitos dos alunos e dos seus pais e pela obrigação de reter na sala de aula mesmo aqueles que já desistiram da escola. E o acompanhamento dos percursos alternativos, profissional ou de "educação e formação", é muito diferente do percurso dito "regular" do antigo liceu. E a muito criticada, mas plenamente adotada, "Nova Gestão Pública" da vida escolar exige o registo minucioso de todo o percurso de professores e alunos destruindo, a tradicional autonomia do professor enquanto profissional responsável e respeitado. As principais críticas dos professores ao seu dia-a-dia na escola referem-se justamente a toda esta burocracia, mas não se vê ainda como haverá coragem para suavizar estes processos burocráticos que apenas funcionam como defesa da escola e do professor contra eventuais acusações de má prática. No ensino superior, mantém-se o paradigma do crescimento, ainda que esteja a receber coortes mais reduzidas pela queda da natalidade. No acesso, alargou-se um sistema de cotas, primeiro para candidatos provenientes da via profissional (ainda que esta não se proponha preparar os jovens para o acesso direto a uma licenciatura) e depois para os beneficiários da Ação Social. Em qualquer destes casos a cota definida é arbitrária e não se propõe um acompanhamento para avaliar se estes candidatos se vão integrar bem no seu percurso no ensino superior ou vão ser vítimas frustradas pela sua impreparação.
Depois de um pico de 2500 doutoramentos em 2013/14, este número tem oscilado entre 2100 e 2300 nos anos mais recentes. Estes números estão bastante acima da capacidade de absorção destes graduados. Analisando os números oficiais de doutorados em atividade em Portugal, cerca de um terço dos graduados anualmente estarão a sair para o estrageiro. Mesmo assim, o número restante é muito superior às necessidades de renovação de pessoal no sistema académico (entre 500 e 1000 anualmente). Compreende-se assim a pressão exercida pela Comissão Europeia para evitar o financiamento de bolsas de doutoramento por fundos estruturais, pressão já exercida no ciclo de financiamento anterior e agora repetida. No ciclo anterior o resultado foi uma pequena diminuição no número de bolsas financiadas; agora, o governo português teve de aceitar que cerca de metade das bolsas fossem concedidas para projetos desenvolvidos em ambiente não académico. Esta opção pode ser muito positiva, se a qualidade da formação doutoral for bem acompanhada, muito para além dos requisitos formais da A3ES (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior). Ou muito negativa se deixar passar para a sociedade a ideia de que um doutorando é um estagiário sem custo salarial e que a carta doutoral não garante uma competência superior.
Curiosamente, a realidade espanhola, com 11259 doutorados em 2022, é muito próxima da portuguesa, feita a correção para a diferença de população. Como em Portugal e noutros países, há problemas de estabilização destes doutorados em carreiras científicas dentro do setor académico ou empresarial. Para isso, o número de doutorados anuais é excessivo e o problema ainda é agravado pela imigração da América de língua espanhola. Mais de 50% dos doutorados em atividade no país estão fora da investigação. Em conclusão, a taxa de emprego é alta, mas fora do seu setor de especialização e aquém das suas expectativas. Deve notar-se que o número de doutores formados anualmente hoje pode ser maior que o número de licenciados há 50 anos. Não se pode estranhar que muitos vão ocupar funções profissionais anteriormente ocupadas por simples licenciados. Se o grau académico funcionar como sinalizador da competência e das potencialidades do graduado, então o doutorado de hoje estará apto a servir nos mais diversos postos dentro da economia. Mas, para que não haja frustração do empregador e do doutorado em busca de emprego, é necessário que a formação doutoral seja repensada. Esta breve resenha da evolução recente do nosso sistema educativo deixa pistas para a definição de uma nova agenda focada na qualidade da experiência educativa e na preocupação de que o percurso educativo contribua para a futura felicidade do educando e evite o risco de frustração.
 José Ferreira Gomes
Reitor da Universidade da Maia
In: O Economista - Anuário da Economia Portuguesa · 1 out 2024,

segunda-feira, 17 de junho de 2024

O sistema universitário português no pós-25 de abril

Resumo
Portugal fez no último meio século a chamada universalização do ensino superior, isto é, o acesso dos jovens ao ensino superior passou de uns 2% para mais de 50% da coorte. Para esta transformação muito contribuíram as chamadas universidades novas concebidas pela reforma do sistema educativo do Ministro da Educação, José Veiga Simão, já no ocaso do Estado Novo.
A alfabetização dos jovens só foi completada em finais da década de 1950 e foi necessário esperar pela reforma de Veiga Simão para dispersar por todo o país a educação para além dos 4 primeiros anos de escolaridade básica. Já entrado no século XXI, foi necessário tornar o ensino secundário obrigatório para que a frequência deste nível de ensino chegasse ao típico de muitos países europeus e até ultrapassasse alguns dos nossos parceiros mais imediatos.
O ensino superior manteve um crescimento a um ritmo constante ao longo de todo o século XX. Só o estatuto de carreira docente de 1979 e os fundos europeus que fluíram a partir da década de 1980 criaram universidades de investigação comparáveis às dos nossos parceiros europeus. Para que mais de 50% da coorte jovem seja acolhida no ensino superior, exige-se uma diversidade de percursos que tem sido muito difícil estabilizar.
A universalização do acesso ao ensino superior
Assistimos no último meio século ao abandono de um ensino superior elitista, com pouco mais de 1% da população jovem, e a sua universalização (entendida como chegando a mais de 50% da coorte jovem). Na evolução da população universitária podemos reconhecer três fases. A primeira, de 1975 a 1985, em que continua o anterior crescimento lento, mas sustentado. O decénio de 1985-95 assiste a uma explosão no acesso em que o número de estudantes de licenciatura ultrapassa o espanhol, mas com enorme pressão sobre as velhas instituições. Esta realidade leva à abertura do escape para universidades privadas criadas muitas vezes sem docentes nem salas de aula ou laboratórios. Chegou-se à situação extrema de haver maior número de estudantes a entrar em instituições privadas do que nas estatais.
Foi também nesta fase que as universidades do estado começaram um programa de construção de novos edifícios dimensionados para a nova realidade, enquanto contratavam novos docentes e lhes ofereciam oportunidades de doutoramento, mesmo no país, o que era uma novidade. Numa fase inicial, a maioria das velhas universidades resistiam à admissão de mais estudantes com receio de que isso significasse uma perda da capacidade intelectual dos estudantes admitidos e uma baixa da qualidade do ensino. O que começou por exigir alguma pressão externa, enraizou-se na cultura das próprias instituições que passaram a ver no crescimento um sinal de sucesso e, para cada docente, uma oportunidade de contratação de colaboradores que iriam valorizar a sua área de especialidade e dar-lhe maior prestígio, mais artigos e maior visibilidade. Na resposta a esta procura acrescida, os institutos politécnicos tiveram um papel relevante. Tinham sido pensados em quase todas as sedes de distrito, em 1973. Vinte anos depois, já instalados, todos viram a sua oferta educativa satisfeita pelos muitos candidatos que não encontravam vaga na sua área de residência e se dispunham a deslocar-se para qualquer outro ponto do país. Criou-se assim a ilusão de que qualquer localização era boa para uma universidade ou instituto politécnico porque os estudantes aí chegariam, apesar da grande queda da natalidade ocorrida ao longo da segunda metade do século com o progressivo abandono da agricultura e a busca de atividade nalgumas regiões mais industrializadas e nos serviços que cresciam nas cidades maiores. Neste mesmo período, também as instituições privadas viam a sua oferta plenamente satisfeita. A oferta privada manteve-se quase exclusivamente nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, as regiões com mais procura não satisfeita pelo estado.
O crescimento que vinha desde o princípio do século e que foi dramático nos anos de 1985-95 estancou subitamente por volta do ano 2000. Os efeitos foram dramáticos com todas as instituições, estatais e privadas a competir pela atração dos estudantes que tinham desaparecido. Seria já o efeito da queda da natalidade.
Depois do ano 2000 foi ainda possível compensar a queda demográfica de 1 a 2% ao ano com a abertura do ensino superior a “novos públicos” para utilizar a linguagem oficial. Primeiro, foi o acesso simplificado dos maiores de 25 anos, logo convertido em maiores de 23 anos. Mais tarde surgiu o argumento de que seria injusto obrigar os estudantes que tinham optado pela via profissionalizante no 10º ano de escolaridade a demonstrar competências semelhantes às dos colegas que tinham optado pela via de preparação para o superior. Num raciocínio que desvalorizou a importância da preparação académica para o acesso aos cursos superiores, também não se curou de saber se haveria maior empregabilidade ou melhor remuneração na opção de transição direta do ensino secundário profissionalizante para o mundo do trabalho.
O resultado desta política de crescimento da população jovem a prosseguir estudos pela via académica do ensino secundário para uma qualquer licenciatura veio a provocar o desajuste que hoje se observa de excesso de licenciados que são obrigados a emigrar para países do centro da Europa. De facto, temos uma maior percentagem de jovens a frequentar uma licenciatura do que outros países europeus como a Espanha, a França ou a Alemanha e temos uma economia em crescimento demasiado lento para criar os empregos a que eles aspiram. Em contrapartida, temos uma enorme falta de trabalhadores “não qualificados”, isto é, em funções tradicionalmente executadas por trabalhadores que iniciavam o seu treino quando eram muito jovens, sem qualquer qualificação profissional prévia. Esses jovens permanecem hoje na escola até aos 18 anos e, nessa altura, não aceitam a condição do velho “aprendiz”; por outro lado, as empresas (e a legislação) já evoluíram no sentido de não quererem aceitar estes aprendizes menos jovens. A solução encontrada e muitas vezes aplaudida é o recrutamento de imigrantes, legais ou não, disponíveis para aceitar remunerações baixas e condições de vida infra-humanas.
O atraso português
O ensino básico e secundário sofria de um atraso secular desde o século XVIII. De facto, o número de alunos existentes em 1759, data da expulsão e encerramento dos colégios jesuítas, só veio a ser recuperado na década de 1930. Se considerarmos que a população tinha no entretanto triplicado, a recuperação do estado anterior terá ocorrido ainda mais tarde. A baixa participação no ensino superior resultava das barreiras económicas no acesso e, principalmente, na frequência do ensino pós-primário, dos 11 aos 17 anos. Se a cobertura do primeiro ciclo (ou primário) era universal desde os finais da década de 1950, o prosseguimento de estudos só era possível nos grandes centros, nas capitais de distrito e pouco mais, e, mesmo aí, com barreiras económicas relevantes.
Até à chegada de José Veiga Simão ao Ministério da Educação em 1970, o ensino superior português era constituído pela antiga Universidade de Coimbra, pelas duas universidades de Lisboa e do Porto criadas logo em 1911 pela jovem República e pela Universidade Técnica de Lisboa criada em 1930 pela reunião de várias escolas profissionalizantes anteriormente dependentes dos ministérios setoriais (ao estilo francês). O crescimento lento, mas sustentado, ao longo de todo o século XX criou uma pressão crescente nas universidades com espaços muito exíguos e antigos e com quadros docentes muito limitados, ainda herdados do período de fortíssima contenção orçamental dos anos iniciais do Estado Novo. As condições de trabalho de estudantes e de professores nessas universidades eram difíceis. Os espaços exíguos. Um corpo docente desequilibrado, mal remunerado, geralmente em múltiplo emprego para sobreviver e raramente envolvido em algo a que pudéssemos chamar investigação. Alguns dos investigadores mais ativos e promissores tinham sido expulsos das universidades a seguir à eleição presidencial de 1949 e noutras “limpezas” posteriores.
A evolução do número de estudantes no ensino superior na figura acima deve ser comparada com a realidade noutros países. Mesmo o Reino Unido , ainda a fechar um império onde o sol nunca se punha, em 1962/63, tinha 118 000 estudantes universitários o que coincide, em termos proporcionais, com a população universitária portuguesa na mesma época. Com duas diferenças importantes. Por um lado, o ensino pós-secundário tinha no Reino Unido na mesma altura cerca de 98 000 estudantes, mais de metade em escolas de formação de professores e por outro, estes números são tirados do relatório parlamentar que levou à grande expansão do sistema universitário como resposta ao avanço da realidade norte-americana. Nos Estados Unidos, a grande expansão fora impulsionada pela chamada GI Bill de 1944, a lei que oferecia uma formação profissional ou superior aos homens desmobilizados da guerra na Europa e no Pacífico. Nos anos seguintes a percentagem de jovens no ensino superior passou de menos de 5% para mais de 35% e continuou a subir. Na Califórnia, o Plano Diretor de 1960 estabeleceu que 12,5% dos alunos que terminem o secundário devem ter acesso à University of California, UC, (a uma rede hoje com 10 universidades de investigação), e uma cota adicional de 27,5% devem ter lugar na California State University, CSU, (uma rede universitária estadual hoje em 23 locais e quase sem investigação ). Os Community Colleges, também do Estado da Califórnia, são hoje 116 e oferecem cursos de 2 anos que vão desde preparatórios para a UC ou a CSU até formações sem qualquer ambição académica. O ensino privado com fins lucrativos tem, na Califórnia, cerca de 11% dos estudantes.
Um ensino superior europeu
A rede universitária planeada por Veiga Simão veio a ser concretizada decénios mais tarde com alguns ajustes feitos pela pressão política do momento, nunca com o estudo e o planeamento do projeto inicial. A rede de universidades estatais foi completada a partir de 1980 com uma rede de institutos politécnicos. Acresce uma rede de instituições privadas especialmente em Lisboa e Porto e algumas a norte do Porto. Dos 446 000 estudantes inscritos em 2022/23, 20% estão em instituições privadas. A preferência pelo ensino universitário resulta em 63% dos estudantes em cursos deste tipo (ou com esta designação). Adicionalmente, as licenciaturas e mestrados do ensino politécnico têm 32% dos estudantes inscritos e os 5% restantes estão em cursos TeSP (Técnicos Superiores Profissionais).
Com mais de 50% da coorte jovem a chegar ao ensino superior, temos hoje um sistema muito comparável a qualquer sistema europeu ou norte americano. A percentagem de jovens a entrar numa licenciatura (ou mestrado integrado) é já superior à dos nossos parceiros mais próximos. Até há poucos anos tínhamos a rede estatal de universidades e de institutos politécnicos com as suas faculdades dispersas pelas cidades antigas (Coimbra, Lisboa e Porto) ou com campus bem estabelecidos e bem dimensionados noutras cidades. Evitava-se ou impedia-se a dispersão de cursos ou de faculdades para tentar reforçar uma cultura académica entre um conjunto numeroso e cientificamente diverso de estudantes. Para os institutos politécnicos estatais, a localização foi sempre mais flexível tentando satisfazer interesses dos autarcas ou das populações. O conceito de sistema binário, universitário e politécnico, nunca foi bem interiorizado pelos governantes (nem pela população), tratando as duas redes de universidades e de institutos politécnicos como complementares. Só em Coimbra, Lisboa e Porto era oferecida aos candidatos a escolha entre os dois subsistemas. A filosofia parece ser a de que onde houvesse um instituto politécnico, a população estava servida, não precisando de uma universidade. E vice-versa. Nesta visão, seria indiferente optar pelo ensino universitário ou politécnico. Se esta era a visão externa, os docentes interiorizavam bem a mesma visão desenhando cursos e adotando programas em tudo similares, desde que fossem aceitáveis pelos estudantes que conseguiam atrair. Só os cursos TeSP foram concebidos desde o início, em 2014, como localizáveis fora das sedes dos respetivos institutos politécnicos e assim tem acontecido com uma grande dispersão da sua oferta.
O modelo californiano é estudado em todo o mundo pela sua conceção muito clara e pela sua estabilidade ao longo de mais de 60 anos. A realidade nos países europeus segue modelos com alguns traços similares. Não é seguro que aceitemos em Portugal uma filosofia próxima desta. Assistimos nos últimos anos a uma dispersão de campus de universidades e de institutos politécnicos do estado e aceitamos o conceito de faculdades policêntricas a distâncias que impedem a integração de docentes ou de estudantes. Não estaremos a prejudicar a qualidade da experiência dos estudantes que se pretende uma experiência de aprendizagem e de formação da personalidade dos jovens adultos que são o nosso público mais tradicional?
O ensino superior começa na alta idade média europeia como instrumento de formação dos administradores da Igreja e do Estado. Na refundação pós-revolução francesa, ganha em França a preocupação com a formação dos novos profissionais necessários ao Estado na guerra e na paz. Na Alemanha, Humboldt prefere uma universidade criadora de conhecimento e, só secundariamente, formadora de profissionais. É esta a versão inspiradora das grandes fundações universitárias norte-americanas e das principais universidades estaduais, mas sempre complementadas por universidades “de ensino” sem grande aspiração na investigação e por Community Colleges orientados para a formação profissional e a entrada mais rápida (cursos de 2 anos) no mercado de trabalho. Na Europa, mantém-se a hesitação entre a ênfase na formação profissional mais curta e a educação em ambiente de investigação com um impacto de profissionalização mais longo. O mesmo se pode dizer da rede institucional californiana que é invejada noutras latitudes, mas raramente imitada. Num Estado com perto de 40 milhões de habitantes, a University of California tem menos de 300 000 estudantes, muitos de outros estados (25% em Berkeley e 17% na média de todos os seus campus). Em contrapartida, a rede de Community Colleges tem 2,1 milhões.
Investigação académica
O sistema científico português tem raízes nos esforços feitos no IAC, Instituto de Alta Cultura, 1952-76 e no INIC, Instituto Nacional de Investigação Científica, que lhe sucedeu 1976-1997. Com meios muito limitados até à chegada dos fundos comunitários, foi feita a formação de sucessivas gerações de doutorados no estrangeiro e iniciada a avaliação científica com painéis internacionais. Por volta de 1990, é incentivada a criação de instituições de investigação, sempre dentro das universidades ou dirigidas pelos seus docentes, mas independentes da sua hierarquia. Criou-se um curioso sistema em que uma pretensa autonomia universitária convive bem com uma organização da investigação quase totalmente independente e comandada por uma agência de financiamento pouco previsível e nunca articulada com reitores nem o seu Conselho de Reitores. Na mesma época foram criados Centros Tecnológicos em grande proximidade com as empresas e, se alguns falharam, outros terão dado um contributo importante para a modernização e a competitividade internacional de indústrias tradicionais como as do vestuário e do calçado. A evolução da investigação académica nos últimos decénios é bem medida pelo número de doutoramentos concluídos nas nossas universidades:
1971 – 1980 29 por ano
1981 – 1990 125 por ano (4,3x)
1991 – 2000 382 por ano (3,1x)
2001 – 2010 1020 por ano (2,7x)
2011 – 2019 2129 por ano (2,1x)
Os doutorados foram inicialmente absorvidos pela docência nas universidades e depois pelos institutos politécnicos e universidades privadas quando o RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior) lhes impôs esta exigência para o corpo docente. A partir de 2010 tornou-se claro que haveria uma crise de emprego de doutorados porque a economia não evoluía ao ritmo e com a componente de inovação correspondente. Como o financiamento das bolsas de doutoramento depende muito dos fundos comunitários, a Comissão Europeia tentou impor restrições no Portugal2020 e, no Portugal2030 exigiu que a maioria dos doutoramentos fosse feita em ambiente não académico. Esta exigência é compreensível, mas não sabemos ainda que sucesso poderão ter num ambiente empresarial sem grandes empresas e onde as pequenas e médias empresas não têm, em geral, capacidade para fazer e incorporar a investigação com algum significado académico.
O indicador normalmente usado para comparar a investigação académica dos países é o número anual médio de publicações por milhão de habitantes que é mostrado na figura para o período 1987-2016 .
Ressalta o facto de, neste indicador, termos ultrapassado já outros países europeus, primeiro a Grécia e a Itália, depois a média da UE28, incluindo a Alemanha e a França. Que tenhamos ultrapassado países fortemente industrializados, merece alguma reflexão para compreendermos o que falhará para que este investimento não tenha ainda em Portugal retorno visível na economia. Como académicos, temos de estar preocupados com a sustentabilidade deste esforço continuado de investimento público e como poderemos continuar a justificar este esforço perante as solicitações alternativas do estado social ou do investimento em infraestruturas públicas pelo governo central ou pelo poder autárquico. Na realidade, o valor da dotação orçamental pública para investigação teve um máximo de 0,85% do PIB em 2009, mas está nos anos mais recentes abaixo de 0,7%.
Súmula final
O impulso porventura mais relevante para a modernização do ensino superior do pós-25 de abril foi o estatuto da carreira docente universitária de 1979 (preparado e consensualizado pelo Ministro Valente de Oliveira, embora publicado já no governo de Maria de Lurdes Pintassilgo). Foi este estatuto e o prémio remuneratório associado à “dedicação exclusiva” que profissionalizou a docência universitária, quase abolindo o pluriemprego que até aí era a norma e reduzindo o tempo de docência a 6 a 9 horas semanais, extinguindo o pagamento das horas letivas “extraordinárias”.
A gestão universitária foi regulada em princípios de 1976 pela Lei Sottomayor Cardia que terminou a anarquia autogestionária que vigorara desde a revolução de 1974. Na realidade, esta lei transferiu o poder académico de um pequeno número de catedráticos idosos que detinham a muito limitada autonomia universitária do Estado Novo para um número já apreciável de jovens regressados do estrangeiro com os seus doutoramentos.
O sistema educativo português recuperou nos últimos 40 anos o atraso que acumulara desde a segunda metade do século XVIII. Em frequência de licenciaturas, ultrapassamos mesmo os nossos vizinhos mais imediatos como a Espanha, França e Alemanha. Mantemos um atraso importante na frequência da via mais profissionalizante, os cursos TeSP que foram criados em 2014, mas ainda não foram plenamente aceites por alguns setores da sociedade (entenda-se alguns setores partidários) e foram algo desvirtuados pelos institutos politécnicos que os apresentam como uma via de acesso simplificado a licenciaturas.
A nossa oferta educativa superior tem, formalmente, a diversidade necessária para uma participação superior a 50% da coorte jovem. Na realidade, estamos longe desse desiderato por não serem reconhecidas diferenças significativas entre algumas licenciaturas politécnicas e universitárias. As diferenças são muitas vezes escassas e não são compreendidas pelos estudantes, pelas famílias e pelos empregadores. A situação é agravada pelo requisito de atividade de investigação para todos os docentes do ensino superior.
O sistema científico manteve um nível muito incipiente até à adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia e ao benefício dos fundos a que essa adesão deu acesso. Infelizmente, mantém ainda uma grande dependência desses fundos, o que cria um alto risco se os fundos atribuídos a Portugal diminuírem ou tiverem de ser desviados para outras áreas socialmente mais imediatas. O atual sistema científico está ainda limitado quase exclusivamente ao ensino superior, daí resultando um desempenho razoável em indicadores como o número de publicações por milhão de habitantes, mas com um baixo impacto económico.
Nos últimos anos, o sistema científico foi ganhando novas camadas institucionais, mantendo a dependência de base nas unidades de investigação quase exclusivamente dependentes do pessoal das instituições de ensino superior. E essa complexificação da malha institucional ocorreu sem aumento de despesa pública. A medida da despesa privada tem de ser vista com alguma prudência porque está demasiado ligada a benefícios fiscais sem que o tipo de atividade e os resultados sejam devidamente verificados. Pelas empresas que surgem nos primeiros lugares da despesa em investigação, podemos imaginar que se tratará, na visão mais benévola, do que poderíamos classificar como “desenvolvimento experimental”.
Resta-nos a esperança de que a iniciativa dos doutoramentos em ambiente não académico que nos foi imposta pela União Europeia no acordo de criação do Portugal2030 e a futura gestão nacional do sistema científico force a uma maior atividade de inovação social e tecnológica nas empresas produtoras de bens transacionáveis. Esta reconversão será algo dolorosa, mas poderá dar um maior reconhecimento social e daí uma maior sustentabilidade do sistema científico a longo prazo.
Apresentado no colóquio "50 anos de Mudança e Inovação: As Novas Universidades no Contexto da Democratização Portuguesa", Universidade do Minho, 17 de abril de 2024

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Uma agenda para o MECI, Ministro da Educação, Ciência e Inovação

A presente legislatura apresenta enormes desafios ao governo, um governo em maioria relativa tendo sempre de negociar votos. Um parlamento muito dividido e com três grandes bancadas em competição por uma oportunidade de ganharem com uma próxima eleição. Medidas estruturantes correm sempre o risco de serem adulteradas pela competição para a satisfação de fações do eleitorado numa visão de curto prazo. Dificilmente serão ultrapassadas as lógicas da popularidade imediata. Nesta situação, o governo está obrigado a uma gestão furtiva da realidade.
Depois da rotura financeira de 2011, passaram-se 13 anos de surpreendente sabedoria financeira, mesmo do lado parlamentar normalmente mais avesso a essa prudência. Essa fase parece ter terminado com o excedente orçamental de 2023, algo que já não se via desde os tempos do outro senhor, no pré-25 de abril. A euforia daí resultante abriu novas expectativas a todos os grupos sociais dependentes do estado. Ligando esta realidade à quebra do investimento público nos últimos anos, dificilmente será agora contida a competição das várias corporações, sempre invocando a melhoria de um estado social que chegou à rotura, especialmente visível na saúde e na educação. Acresce que as condições de segurança externa entraram numa época de incerteza como não se via nos últimos 80 anos.
Governar sem maioria parlamentar e numa conjuntura financeira muito estreita só será viável se a opinião pública compreender bem a realidade e a necessidade de medidas que, a prazo, produzirão um crescimento económico que virá a permitir então satisfazer as expectativas presentes. De facto, os bons resultados financeiros dos últimos anos só foram possíveis com impostos indiretos que substituíram os diretos e levando o investimento público a mínimos de sempre. Tudo isto num modo bem discreto que só se sente mais tarde. Mais recentemente o estado beneficiou das receitas “imprevistas” do pico de inflação que tocou a todos, deixando no seu rasto todas as justas reivindicações de reposição das posições anteriores. Estes artifícios esgotaram-se e o sucesso deste governo depende de encontrar um novo caminho que mantenha os eleitores adormecidos e os parlamentares imobilizados. Uma receita quase impossível.
Os desafios enfrentados na educação que se pretende universal até aos 18 anos são muito pesados. (i) Conseguir oferecer a todos um lugar em creche e pré-escola; (ii) melhorar a diversidade de percurso escolar de modo a satisfazer todos os alunos; (iii) discretamente, ajustar o percurso dos alunos de modo a recuperar as aprendizagens que se perderam nos últimos anos, segundo todos os estudos internacionais; (iv) melhorar a vida profissional dos professores de modo a que se foquem nos seus alunos e menos na burocracia escolar e no ativismo na rua; (v) repensar a transferência de competências para os municípios para assegurar a autonomia da gestão escolar sem que se agrave a dependência partidária. Tudo isto a conseguir discretamente sem a promessa de resultados imediatos que são impossíveis.
A configuração do governo procurou a ligação do ensino superior ao secundário, algo que sempre desagrada aos reitores e aos líderes do aparelho científico que sentem perder alguma influência. O sinal é que se pretende estimular a passagem do secundário ao superior com toda a necessária diversidade de percursos. Depois, a presença da Inovação significará a necessidade de melhorar o retorno económico da despesa pública com a investigação. Fica fora desta integração a formação profissional pré e pós-18 anos, mantendo-se os conflitos surdos com o setor educativo. A integração desta interface fica adiada, ainda que a premência desta ligação já se manifeste nas estratégias políticas de outros países europeus.
1. As condicionantes políticas
2. As condicionantes financeiras
3. As prioridades na Educação, 3-18 anos
4. As prioridades na Educação, pós 18 anos
5. As prioridades na Ciência
6. As prioridades na Inovação
1. As condicionantes políticas
Passamos há pouco de um Parlamento com uma maioria absoluta de apoio ao governo para um Parlamento muito balcanizado, com forte competição entre os dois grandes partidos da oposição e os seis partidos mais pequenos e quase irrelevantes na contagem dos votos a terem de fazer todos os dias prova de vida para não passarem à irrelevância definitiva. Recordemos o episódio de maio de 2019, da ameaça de demissão do então primeiro-ministro se fosse aprovada no parlamento a recuperação do tempo de serviço dos professores. Essa crise foi evitada pelo recuo do (então) único grande partido da oposição que receou ir para eleições com a vitimização do governo pela “irresponsabilidade financeira” da oposição. A rotura financeira de 2011 estava ainda muito viva na memória dos eleitores. Esta memória poderá não ser hoje suficiente para impedir a formação de “maiorias negativas” entre os dois grandes partidos da oposição. E a famosa linha vermelha que pretenderá isolar o terceiro maior partido corre sempre o risco de ser insuficiente para evitar o contágio se as sondagens derem alento a quem consiga usar o poder dos seus votos.
2. As condicionantes financeiras
Pesa ainda a enorme dívida pública e privada que foi acumulada no último meio século e, especialmente, com a resposta à crise financeira de 2008, uma resposta dita keynesiana e pretensamente recomendada pela Comissão Europeia. O superavit conseguido para as contas públicas em 2023, o primeiro depois de 1974, criou uma euforia despesista bem consolidada na campanha eleitoral de 2024 em que todas a reivindicações reprimidas no último decénio afloraram e obtiveram acolhimento dos partidos em competição eleitoral. Vinga hoje a convicção de que pode ser corrigida a contenção salarial do último decénio. No ensino básico e secundário, a comparação internacional (em fração do PIB per capita) mostra que os professores do ensino básico e secundário estão relativamente mal pagos no início da carreira, mas acima da norma nos escalões finais. Por isso a disputa se faz nesse terreno para garantir que quase todos cheguem ao topo para se reformarem nessa posição mais confortável. E, para estes professores mais velhos, a escola de hoje não tem grande semelhança à escola socialmente mais seletiva em que entraram há 30 ou 40 anos. Mesmo no ensino superior, onde não há ainda sinais de reivindicações salariais, os vencimentos perderam cerca de 50% do seu valor, se vistos pela paridade conseguida em 1979 com o judiciário. Em boa verdade, a docência no ensino superior cresceu desde então dez vezes, de 1800 para 18000 professores, enquanto o número de juízes também cresceu muito, mas é hoje de (apenas) 1800. Grosseiramente, os vencimentos dos docentes acompanharam a subida geral dos preços, enquanto os vencimentos dos juízes acompanharam o enriquecimento real do país (com um PIB per capita a duplicar, se medido a preços constantes).
Nas instituições estatais, o custo por estudante do ensino superior mantém-se razoavelmente alinhado com os nossos parceiros da OCDE com produto per capita semelhante. Já o custo para a educação não superior é um pouco mais alto. Este quadro mostra a dificuldade que os próximos governos vão ter para fazer alguma recuperação salarial de docentes (e investigadores) e para melhorar os sempre escassos orçamentos das universidades estatais. O mesmo se pode dizer da despesa pública com a investigação que hoje é quase totalmente canalisada para as instituições de ensino superior.
3. As prioridades na Educação, 3-18 anos
São bem conhecidos os problemas que têm sido apontados neste setor educativo, a qualidade das aprendizagens, a falta de docentes e a universalização da oferta de atendimento das crianças em creche e em pré-escolar. A pacificação da corporação docente poderá ser um pré-requisito para a resolução dos outros problemas, mas a sua resolução é ainda mais complexa.
A falta de professores é o problema mais óbvio e que, infelizmente, sendo totalmente previsível, não foi tratado em antecipação. Há muito que, para um jovem de 18 anos, a opção por uma vida profissional no ensino é colocada como último recurso. Ao contrário de outros países europeus, esta carreira profissional não é mais mal remunerada nem implica maiores riscos do que as alternativas. Mas a imagem pública dos professores não poderia ser pior. As notícias diárias são de permanente conflitualidade e de testemunhos públicos de péssimas condições de trabalho. Nenhuma outra profissão cultiva uma tal imagem pública e, contudo, facilmente poderemos identificar alternativas mais duras, inseguras e mal remuneradas. Nos próximos anos, não será possível ultrapassar esta imagem pública porque se trata de uma autoimagem muito sentida por uma maioria de professores, mas também pelo aparecimento de líderes sindicais que hoje disputam entre si a liderança de cadernos reivindicativos longos e complexos. A falta de professores foi agravada pela política de organização escolar de turmas mais pequenas, mesmo sabendo-se que isso contribui pouco para a melhoria das aprendizagens. Numa época de baixa demográfica, há uma oportunidade para diminuir o número de turmas, atenuando o efeito da escassez de graduados na formação de professores. Pelos últimos resultados estatísticos disponíveis, o rácio aluno por professor global no ensino público baixou de 10,9 (em 2014/15) para 8,6 em 2021/22. Deve-se notar-se que a média deste rácio na União Europeia está próxima dos 14 e que no Reino Unido e nos Países Baixos chega 18 ou 19. A simples baixa do rácio em Portugal criou uma necessidade da ordem de grandeza dos 28000 professores. Sabendo-se da dificuldade de renovação geracional de muitos professores, não há nenhuma razão para criar esta carência adicional. Isto era verdade, mesmo que não tivéssemos alunos sem professor ao longo de muitos meses, o que provoca o pânico nas famílias que se vêm obrigadas a procurar escolas privadas.
No ensino básico e secundário, a grande prioridade imediata deveria ser a recuperação da qualidade das aprendizagens que todas as avaliações internacionais mostram estar em perda. Tudo indica que as reversões e as “inovações” dos últimos 8 anos causaram danos que têm de ser recuperados. Agora, terá de se encontrar o caminho da recuperação com a mínima alteração regulamentar de programas e processos de avaliação externa (exames). A recuperação do impacto da pandemia em alguns grupos será já demasiado tardia, mas há necessidades permanentes de reforço do acompanhamento dos alunos com maiores dificuldades e será mais eficaz trabalhar com turmas maiores canalizando os recursos humanos dispensados para acorrer a esta carência. A recuperação da paz laboral é mais difícil. O pedido de “recuperação do tempo perdido” pelos professores durante a intervenção da Troika é compreensível, mas o seu custo em salários e, ainda mais, em reformas a cargo da Caixa Geral de Aposentações, tem claramente assustado os últimos governos. E a concessão desta pretensão irá também reforçar os pedidos de outras categorias profissionais, começando pela saúde e pela defesa e segurança.
4. As prioridades na Educação, pós 18 anos
No pós-18 anos só o ensino superior está sob a tutela do MECI, embora a fronteira entre o ensino superior e algum tipo de formação profissional se tenha esbatido nos últimos anos. Tem sido notada a injustiça social de canalizar mais financiamento público para os jovens que optam pelo ensino superior do que para aqueles que optam pela entrada imediata no mercado de trabalho. E uma política de imigração terá de atender também às necessidades de educação e de formação profissional dos imigrantes que na maioria são relativamente jovens. Na transição para a educação superior, estão abertas três opções, um curso TeSP (técnico superior profissional), uma licenciatura politécnica ou uma licenciatura universitária (inserida num mestrado integrado em alguns poucos casos). A diferenciação entre as licenciaturas universitárias e as politécnicas é pouco percebida por estudantes e empregadores, ainda que haja grandes diferenças porque diferentes são os candidatos que as escolhem. Os cursos TeSP deveriam ser vistos como uma via de entrada mais rápida no mercado de trabalho, mas são geralmente tratados como uma via adicional de acesso a licenciatura para candidatos que não atingiram o padrão escolar exigido.
A universidade do ancien régime era uma escola de formação de profissionais (Direito Canónico e Civil, Teologia, Medicina, ...). Na transição decorrente da Revolução Francesa, afirmaram-se duas vias. Na Alemanha, Humboldt protagoniza a construção da universidade de investigação que lhe dará a liderança científica e industrial até à 2ª Guerra e é também adotada nas grandes universidades americanas que tomam a liderança depois da Guerra. Na França, Napoleão está mais preocupado com os profissionais necessários à guerra e ao progresso material e as Grandes Écoles de engenharia mantêm até hoje um enorme prestígio social e impõem uma fortíssima seleção académica no acesso. Portugal seguiu, também nesta área, a cultura francesa, mas com um discurso intelectual de universidade – Torre de Marfim onde se cultivaria o conhecimento, independentemente da sua utilidade e da sorte dos graduados. Este discurso não se coaduna com a realidade, especialmente depois de adotarmos a chamada universalização do acesso ao ensino superior com mais de 50% da coorte jovem. Há geralmente acordo quanto à necessidade de oferecer um ensino superior muito diversificado, mas a realidade regulamentar aponta no sentido inverso. O grande desígnio desta legislatura deveria ser a criação de incentivos à diferenciação real dos percursos educativos e de uma maior transparência para que as famílias e os empregadores compreendam os objetivos e a utilidade profissional desses percursos educativos. Sim, o país precisa de uma forte estrutura científica, mas não pode esquecer o encaminhamento profissional da maioria dos estudantes do ensino superior.
A grande preocupação dos responsáveis das instituições estatais é a garantia de uma dotação orçamental crescente que permita a absorção de um número crescente de investigadores e as proteja da ameaça de uma queda demográfica a breve prazo. As instituições fora da corda litoral Braga – Setúbal já sentem a queda demográfica há duas décadas e aspiram a ter dotações garantidas e que os estudantes internacionais que consigam atrair para uma primeira inscrição sejam considerados para financiamento estatal. As queixas dos atrasos na obtenção de vistos para estudo são recorrentes e provavelmente difíceis de corrigir enquanto não houver uma política de imigração clara. De facto, muitos destes estudantes parece estarem mais interessados num visto do que num grau académico. Há 30 anos que se discute a adoção de uma fórmula de financiamento das instituições estatais e há sempre acordo quanto à necessidade de considerar o número de estudantes e alguns fatores de qualidade, mas o objetivo não tem sido fácil de concretizar. Muito recentemente, em 13 de março de 2024, houve o anúncio de uma nova fórmula que terá sido testada antes da sua publicação. A disponibilidade para aumentar as dotações de algumas universidades e de alguns institutos politécnicos terá satisfeito algumas ambições mais imediatas, mas não resolveu os problemas de base. Não é seguro que esta nova fórmula tenha mais sucesso do que a fórmula anterior de 2006 que nunca pode ser plenamente aplicada (nem seriamente considerada para efeitos da gestão interna das instituições). Algumas dúvidas mantêm-se em aberto. Deverão considerar-se todos os estudantes inscritos, independentemente da nacionalidade, residência ou frequência efetiva? O fator de custo por aluno deve corresponder à média estimada para todas as instituições ou deve atender às diferenças de dimensão do corpo estudantil ou à natureza do corpo docente (com professores em dedicação exclusiva ou em tempo integral/parcial)? Que fatores de qualidade devem ser considerados, como devem ser medidos e, posteriormente, auditados? Devem apoiar-se as mais débeis para a sua melhoria ou premiar as mais bem-sucedidas? Ao falar de prioridades deste MECI, não se podem omitir as melhorias legislativas que foram pensadas recentemente. Com um parlamento muito mais dividido, é prudente analisar bem o que pode ser assumido como objetivo atual e o que deve ser deixado para mais tarde. As carreiras docentes do setor estatal precisam de uma simplificação, mas é uma área que move muitos interesses e muitas oportunidades de protagonismo parlamentar. Talvez a primeira decisão seja sobre a manutenção de duas carreiras separadas para a docência e a investigação ou uma carreira única, mais flexível, que permita o ajuste às duas funções sempre muito intrincadas dentro do ensino superior. Poderá ser mais fácil encarar as instituições privadas, onde todos reconhecem a necessidade de um quadro geral de carreira académica que dê alguma dignidade e transparência às categorias docentes.
O RJIES, Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, prometia uma avaliação ao fim de cinco anos, um desiderato impossível porque nessa altura não se podia conhecer ainda o resultado da sua aplicação. Hoje conhecem-se muitos entorses que ele alimentou, mas, pela recente discussão pública, pelo que foi dito e escrito e pelo que nunca foi aflorado, não parece que o tema seja menos controverso e que haja ambiente político para o considerar. Um dos temas mais discutidos é o sistema de eleição dos reitores (e presidentes). Para este feito, o Conselho Geral transformou-se num colégio de grandes eleitores. Nos países onde existe um Conselho Geral como órgão de topo do governo de uma universidade, a grande maioria dos seus membros é escolhida por agentes externos, tendo assim uma verdadeira independência para exercer o seu mandato na interpretação pessoal do que será o interesse público, dentro da lei que é criada pelo órgão político competente. Não é esta a nossa experiência, nem poderia ser com membros eleitos pelas corporações internas que depois cooptam os membros externos de modo a não alterar o equilíbrio dos interesses internos. O CRUP e muitos intervenientes na discussão pública do ano passado favorecem uma eleição do reitor por um órgão interno ou com maior peso das corporações internas, deixando ao Conselho Geral outras funções consideradas menos relevantes. O risco de partidarização destas eleições aumentará muito para além dos sinais já existentes de listas de cor partidária razoavelmente visível. É esta a experiência espanhola de eleição do reitor pelo universo das corporações internas com ponderações pré-definidas. Tudo recomenda que a grande revisão do RJIES não seja tomada como prioridade imediata.
5. As prioridades na Ciência
Desde a adesão à CEE, depois União Europeia, Portugal soube utilizar os fundos disponibilizados para expandir o sistema nacional de ciência e tecnologia (SNCT). Uma medida comum do sucesso de um sistema académico de investigação é o número de artigos publicados e este indicador é encorajador. No último decénio, ultrapassamos não só os nossos parceiros do sul da Europa, Grécia, Itália, Espanha, mas também alguns países fortemente industrializados como a França e a Alemanha. Esta realidade merece a nossa auto-congratulação, mas também uma reflexão sobre a utilidade da estratégia que vem sendo seguida. O nosso sistema científico do ensino superior é dos maiores da Europa em número de investigadores por milhão de habitantes, embora o financiamento não tenha crescido ao mesmo ritmo e a precariedade de muitos alimente a dependência dos professores mais velhos e iniba a busca de caminhos de maior risco e inovação. Com este longo treino em dependência, não é de esperar que estejam preparados para assumir o risco quando finalmente (alguns) ganharem a autonomia com o provimento num lugar de carreira. Pode recear-se que, para alguns, a segurança finalmente assegurada seja mais o conforto de uma reta final desimpedida para uma reforma mais confortável.
Na formação doutoral, poderemos ter prolongado por demasiado tempo a estratégia de crescimento de uma base académica, atrasando uma política de efetiva entrada de doutorados no tecido empresarial. Neste quadro o sucesso em alguns indicadores pode esconder que outros países já ultrapassaram esta fase para exigir outro tipo de resultados. Com um SNCT demasiado voltado para dentro da academia, é legítimo recear pela sua sustentabilidade por várias razões.
(i) Nos últimos anos as condições de trabalho dos investigadores pioraram devido ao crescimento do sistema científico em número de investigadores e da criação de novas camadas institucionais sem um aumento da despesa pública (apesar de as finanças públicas terem atravessado um período de relativo desafogo).
(ii) A sociedade virá a pedir um maior retorno económico do investimento feito na ciência ao longo de muitos anos, com o risco de que os fundos, sempre escassos, sejam desviados para áreas do estado social.
(iii) A enorme incerteza quanto ao futuro da Europa em termos de segurança ou de um simples alargamento porá em risco o grande volume de fundos disponibilizados a Portugal nos últimos anos, criando uma situação a que o orçamento de estado terá dificuldade em responder.
O SNCT está baseado nas unidades de investigação ligadas às universidades estatais e, agora, também aos institutos politécnicos e universidades privadas. Estas unidades são quase totalmente independentes das hierarquias institucionais. Manteve-se por quase 30 anos um conflito latente entre os responsáveis políticos nacionais e os reitores por estes resistirem à contratação de todos os doutorados sem garantias de que o financiamento viesse a considerar algo mais do que os números de estudantes de graduação. Este modelo baseado em unidades de investigação autónomas foi criado no início da década de 1990, numa altura em que poucos reitores tinham um percurso científico digno de nota e a investigação estava longe das suas preocupações. Mantém-se, apesar de hoje todos os reitores de universidades estatais e privadas e também os presidentes de institutos politécnicos estarem plenamente cientes da necessidade de as suas instituições mostrarem um bom desempenho científica. Acresce que este divórcio entre a gestão do ensino e da investigação enfraquece a motivação para a contratação dos docentes e investigadores mais promissores e para criar as melhores condições de trabalho aos docentes e investigadores mais produtivos e internacionalmente competitivos.
Todo o edifício que foi muito útil no século passado, precisava de uma fortíssima intervenção de reconstrução, mas com todos os cuidados para preservar todas as suas funcionalidades e não criar descontinuidades. Também o processo de avaliação tem problemas graves, tendo mais as caraterísticas de um concurso de beleza (no conceito dos economistas) do que dar um bom ponto de partida para decisões de financiamento. Isto é muito mais grave hoje porque tem consequências automáticas na acreditação de cursos e de instituições. Se as pressões políticas do financiamento eram já insuportáveis, as pressões institucionais pelo receio das consequências na acreditação tornam a finalização do processo simplesmente ingerível. Esta crítica e antevisão pessimista não implicam que o processo de avaliação em curso deva ser interrompido. Terá de ser mantido, enquanto o seu desfecho é avaliado pelas suas consequências na viabilidade financeira das unidades (e laboratórios associados e todas as outras instituições que foram sendo criadas) e nas acreditações futuras. E estes próximos anos deverão permitir, com a comunidade, repensar o redesenho do SNCT.
6. As prioridades na Inovação
A experiência inicial da década de 1990 de desenvolvimento dual de um sistema científico académico e um sistema de inovação ou apoio tecnológico ao tecido industrial foi bem-sucedido. Os centros tecnológicos tiveram destinos bem diferentes, mas os bem-sucedidos deram ao país um excelente retorno ao investimento total. Com algum atraso, entramos depois na onda de apoio a startups baseadas no pessoal académico e em jovens graduados. É um caminho necessário que terá de ser avaliado a seu tempo. Entre nós como noutros países, a tutela da inovação tem oscilado entre a educação (e a educação superior) e a economia. A tutela mista da ANI, Agência Nacional de Inovação, não se tem mostrado uma boa solução. Raramente, se consegue um bom alinhamento de objetivos e de financiamento.
A ANI tem o estatuto de sociedade anónima, tendo como sócios a FCT pelo lado da educação e o IAPMEI pelo lado da Economia. Dois institutos públicos criam uma sociedade anónima para fugir ao controlo das Finanças, com o risco de uma menor transparência. Provavelmente, nenhum dos acionistas assume o objeto de intervenção da ANI como seu. Na realidade, temos dois ministros a dar instruções por entrepostas pessoas, sendo preciso um grande esforço para conseguir coerência e responsabilização política. Em alternativa, teremos uma ANI livre para definir os seus objetivos e conseguir uma dotação orçamental que lhe permita realizar a missão assumida.
O MECI irá provavelmente desenvolver uma política de inovação própria para influenciar as estratégias de investigação das instituições de ensino superior e das suas periferias. Podemos esperar que tenha êxito no reforço de uma perspetiva de prémio para os académicos que consigam aliar o reconhecimento do êxito no impacto académico internacional com o sucesso no impacto económico e social dos seus resultados académicos de maior nota. Mas isto exige uma ênfase diferente do processo de avaliação da ciência que se faz em todo o sistema de ensino superior, talvez se aproximando do que foi introduzido pelos ingleses com algum sucesso e também com um módico de controvérsia.
Campus Universitário da Maia, 4 de junho de 2024
José Ferreira Gomes